Em cinco dias de caminhada sentimos muitas coisas diferentes. Há uma contradição permanente, como se fossemos - ou se nos tivéssemos tornado - bipolares. Se o corpo está bem, o caminho é magnífico. Se o corpo está bem, as pessoas à nossa volta, mesmo as que menos conseguimos compreender ou relacionar, são simpáticas. Se o corpo está bem, é a melhor experiência de sempre.

O inverso é igualmente verdade. Se o corpo está mal, é absurdo que andemos a subir e a descer ladeiras e montes sem que nada nos obrigue a isso (para que foram inventados os carros, afinal?). Se o corpo está mal, as conversas dos outros incomodam-nos, não nos deixam concentrar nessa dor que é o que realmente interessa naquele momento. Se o corpo está mal, não há propósito ou sentido para o que estamos a fazer.

Tudo isto é temporário, efémero, binário.

E se há certeza que podemos trazer de uma peregrinação, seja qual for o móbil que nos levou até ali, é que nos muda. Ou que pelo menos muda qualquer coisa no que somos. Não fiquem entusiasmados com a ideia: se não há almoços grátis, também não há mudanças de borla. Esta mudança custa. Não é imediata e desconfio, a menos de 24 horas de ter terminado cinco dias de peregrinação, que está longe de ficar por aqui.

O que é que muda?

Voltando à contradição do corpo. Não há quem não experimente dor física durante cinco dias sempre a andar. Ao sol, à chuva, a subir, a descer, começando manhã cedo, dormindo em acampamento de campanha sem o conforto que as nossas casas nos dão. A dor está lá. Pode estar sempre, às vezes, doer mais, doer menos, mas está lá. Está lá e afecta-nos sobretudo quando estamos a andar porque é quando precisamos que não doa. Para andar mais. O que quer que seja de “mágico” - adjectivo tantas vezes ouvido durante o caminho - que acontece resulta dessa relação entre o corpo e o espírito. Resulta da resposta que cada um encontra para conviver com a dor, para superar a dor.

Quando o corpo se impõe, temos de tomar decisões. Ou nos concentramos na dor ou nos evadimos da dor. Nenhum destes estados é absoluto, até porque, dependendo da intensidade da dor ou da nossa resistência, mesmo quando nos evadimos, o corpo faz-nos regressar a ele. Mas a parte “mágica” é a outra. No meio do caminho, sem nenhuma outra distração que não seja andar, andar, andar, aquilo que nos ocupa somos nós próprios. Sim há paisagem. Sim estão lá outras pessoas (para quem vai em grupo). Sim continuamos a ter um telemóvel na mochila. Mas, acreditem, aquilo que nos ocupa somos nós próprios. E nessa ocupação fazemos escolhas: ou nos ocupamos com o corpo ou nos ocupamos com o espírito. Sem dor é relativamente fácil entregarmo-nos às delícias ou às provações do pensamento. Com dor, tudo passa para outro nível. O pensamento tem de vencer a dor se quiser que nos ocupemos dele. E nessa batalha que é tão mais titânica quanto maior a dor, quando o espírito ganha há uma espécie de esquecimento de nós enquanto corpo dificilmente explicável sem se passar por isso. E estranhamente bom. Estranho, mas bom.

Este é um retrato da peregrinação pela peregrinação. Mas uma peregrinação religiosa como é a que por estes dias milhares fizeram rumo a Fátima tem outros rituais.  Reza-se o terço. Entoam-se cânticos. E dificilmente se anda um quilómetro sem se falar de Deus e da Virgem Maria. E à medida que os dias avançam, quem ali está sem ser parte do grupo não consegue evitar questionar-se - e questionar os outros - sobre as premissas dos rituais, as crenças, o fim a que se propõem. Fazem-se perguntas que não são fáceis de responder - é um outro tipo de dor, a de quem pergunta e a de quem responde.

Fátima, é “já aqui”

“É só mais um bocadinho e estamos lá”, diz o padre Carlos Macedo logo pela fresca, de sorriso no rosto. É o quinto dia de caminhada e Fátima está “já ali”, a 25 quilómetros de Monsanto. As palavras de conforto são para Carla, que apesar de uma luxação há muito diagnosticada e de recomendações para parar, não quer deixar de fazer este último pedaço de caminho. Hora prevista de chegada a Fátima: 17h30.

O dia amanheceu cinzento carregado. Vai chover, já sabemos. Vamos subir e muito, não se cansam de nos dizer, mas hoje tudo parece custar um pouco menos. O corpo já se habituou ao esforço e já não se queixa tanto - ou talvez estejamos simplesmente a ignorar o seu queixume. Há muitos quilómetros que deixou de fazer sentido lamentar os pés que doem e os músculos que prendem. A quem não? Além disso, Fátima é “já ali” e este é o último dia de caminhada. Há outro ânimo, outro impulso. É a “força da fé”, muitos dirão, certamente indissociável da noção que, agora, não se vê só caminho, mas já se avista o destino. 

E se para uns a fé alimenta a caminhada, para outros - como nós - é a discussão sobre a fé dos homens, a igreja, a interpretação pessoal e coletiva do divino, sobre o inquestionável e a incapacidade de questionar que embala o caminho. É uma batalha perdida à partida, bem sabemos, porque a fé dos homens é isso mesmo, dos homens, pessoal. Mas a racionalidade obriga-nos a questionar o caminho, a caminhada, o sofrimento e o propósito. Providencial, ou não fosse a peregrinação um caminho de reflexão sobre a fé. 

E é impossível discutir fé sem discutir pessoas. A peregrinação está cheia delas, das que caminham, as que servem, as que curam. A chegada a Minde lembra-nos isso mesmo. Aqui, no pavilhão desportivo, está montado um posto médico de campanha. O brigadeiro António Alves, de 48 anos, é responsável pela equipa da Associação de Paramédicos de Catástrofe Internacional que dá apoio aos peregrinos. Entre tratar os pés e relaxar os músculos, há empatia e palavras de incentivo. Afinal, Fátima é “já ali”,

Esta é mais uma oportunidade de Carla ver o estado do pé, da luxação. A recomendação é que uma vez terminada a peregrinação consulte um médico de especialidade. Mais gelo, uma massagem, o combustível para terminar a caminhada.

A conversa é sensível, o sabemos, mas alguém precisa de a fazer. Perguntamos a Carla se está certa de que quer continuar. “Já estou tão perto, já andei tanto. Não posso parar agora”, diz-nos. Respeitamos. 

“A força de vontade das pessoas leva-as a todo o lado”, diz-nos António. Este ano ainda não tiveram de mandar ninguém parar de andar. Só o fazem “em casos extremos”, diz. “As pessoas têm tido mais cuidado, da roupa ao calçado. Lembro-me que no ano passado foi muito pior. Este ano os tratamento têm sido ligeiros, uma bolha ou outra”, detalha.  No pavilhão de Minde está o segundo posto de uma equipa que mobiliza cerca de 150 profissionais de saúde de forma voluntária. Aqui, recorda António, só na noite anterior à nossa conversa, foram atendidas mais de 400 pessoas. A jornada começa cedo, por volta das 8h00, e acaba de madrugada. António vê no servir o outro uma missão. “Se não formos nós a marcar a diferença ajudando o próximo, quem o fará?”.

A conversa com a equipa médica atrasa-nos, o grupo já partiu, há que recuperar terreno. A solução é recuperar dois ou três quilómetros de carro, mas um caminho de terra batida obriga-nos a largar as quatro rodas. Um telefonema, mais outro, estamos perdidos. O grupo fez um desvio pela estrada enquanto nós continuamos nos caminhos originais de Fátima. São bonitos, estão bem marcados, não há problema. Cátia e Hélder esperam-nos no carro de apoio mais à frente. “Se partimos juntos, chegamos juntos”, firma Hélder, numa convicção radiante. 

“Fátima dá as boas-vindas aos peregrinos”. As faixas na reta de Fátima cumprimentam quem caminha e cresce o alento de que o destino está próximo. Fátima é aqui, mas o Santuário é “já ali”. “Afinal isto não custa assim tanto”, confidencia-nos António, o músico, já com um sorriso largo, que antecipa o fim - e a conquista - da sua segunda peregrinação a Fátima.

Bandeira hasteada, grupo unido, chega-se ao Santuário orando, cantando e em lágrimas. As orações e pedidos que os levaram a caminhar são finalmente depositados aos pés de Nossa Senhora. Escolhem-se afinidades e celebra-se com o tradicional - e muito emocionado - abraço mariano.

Fátima, é “já aqui”.

Não é mais um abraço

Fomos sendo avisados ao longo do caminho sobre a chegada a Fátima. A chegada ao Santuário de Fátima. O abraço mariano. “Vais ver, vais ver …”.

A chegada a Fátima foi alívio. Chegámos.

A chegada ao Santuário foi confusão. Estamos lá.

Os primeiros minutos no Santuário não foram assim tão diferentes da peregrinação em grupo. Rezou-se, cantou-se, andou-se.

Continuámos a andar.

Vimos os que arrastam os joelhos, como nos disseram que veríamos.

Vimos os preparativos para o grande dia, como nos disseram que lá estariam.

Até que subitamente, sem que nada o fizesse prever, alguém nos abraça.

Não é mais um abraço. Não é só um abraço. É um abraço que cada um escolhe dar, a quem escolhe dar e como escolhe dar. E se num  grupo, virtualmente, todos acabarão por se cumprimentar - porque chegaram, porque cumpriram um propósito - não há dois abraços iguais. E isso é o que dá significado ao abraço mariano de que tanto nos falaram antes de lá chegar.

Também recebemos os nossos abraços marianos. E sabemos que não foram ao acaso. Recebemo-los de quem sabíamos, se tivéssemos percebido antes que era disso que se tratava, que íamos receber. E, quando olhámos à volta, percebemos que era assim que funcionava para todos. Abraça-se. Abraça-se primeiro, com mais força, com verdadeira emoção, aqueles que nos são mais próximos, mais especiais, com quem fez mais sentido chegar até ali. Esse é o abraço mariano - ou se quiserem, como recebemos o abraço mariano.

O dia chegava ao fim. Era hora de dispersar. Faziam-se as últimas despedidas.

Uma das veteranas do grupo - um dos meus braços marianos - recorda que esta é a a sua 16.ª peregrinação. Qualquer coisa como 2320 quilómetros percorridos para Fátima. “Todos os anos digo que é o último ano, mas volto sempre”. Volta sempre porquê? “Sei lá … a peregrinação na realidade é como a vida. Estamos bem, estamos mal, rimos, choramos, queremos desistir, queremos continuar. É como a vida”. Há uma doçura na voz que as palavras não fazem justiça. E porquê Fátima? “Porque aqui é o colo da mãe. Todos precisamos do amor de mãe. É colo”.

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