Depois dos incêndios, as necessidades das pessoas "não se confinam ao vestuário, à alimentação e à reconstrução das casas". "As pessoas também precisam de palavras", de as dizer e de as ouvir, afirmou à agência Lusa o diretor artístico do Trigo Limpo, José Rui Martins.

Nesse sentido, a companhia de teatro sediada em Tondela vai tentar dar uma resposta a algo imaterial, não quantificável e que não está presente "nos relatórios", criando laços de proximidade e ajudando, em conjunto com as pessoas afetadas, a encontrar "um outro alento para vencer as dificuldades", sublinha.

Para lá da reconstrução das casas e da reposição da atividade das empresas, é também preciso "uma reflorestação humana", refere José Rui Martins, que considera que a cultura pode atuar nesse sentido - "sobre a alma, sobre o coração, no sentir e no estar atento".

A partir de fevereiro e durante todo o ano de 2018, o Trigo Limpo vai levar o espetáculo poético-musical "20 dizer que estou contigo" (o espetáculo até agora chamava-se "20 dizer"), de José Rui Martins e Luísa Vieira, até às aldeias, em espaços informais da vida coletiva, como o largo da localidade ou o espaço onde se fazia o vinho ou o azeite.

"Queremos espaços com sinais de memória", frisa o responsável, explicando que o evento vai misturar humor com emotividade, que não se quer "um espetáculo-carpideira, mas algo que traga para cima a força das pessoas e a vontade de prosseguir".

Para cada espetáculo, José Rui Martins e Luísa Vieira vão afinando o repertório de poemas e textos musicados "consoante os corações", num momento que se quer aberto à participação dos próprios habitantes.

Se alguém quiser pegar na gaita-de-beiços ou dizer umas quadras poderá fazê-lo e poderão até ser desafiados pelo Trigo Limpo para serem "convidados especiais" noutras aldeias por onde vão passar.

A partir do segundo trimestre do ano, a companhia também vai às secundárias dos três concelhos para desafiar os alunos a fazerem "poemas ou prosas" que depois serão integrados no espetáculo.

Para além de levar o espetáculo "20 dizer que estou contigo" aos três concelhos, o Trigo Limpo vai ainda realizar uma série de pequenos espetáculos de teatro e sessões de contadores de contos pelas freguesias de Tondela.

"Hoje não é combater só as tragédias provocadas pelo incêndio. Queremos dar visibilidade a uma desertificação que estava instalada. Havia um lado exótico de ver as velhinhas e os velhinhos como peças de artesanato com braços e pernas. Com isto, mostra-se que são gente com um coração imenso e uma capacidade de resistência incrível", conta o diretor da companhia, que gosta de assumir a interioridade "sem complexos", rejeitando a ideia dos "desgraçadinhos".

E o que pode a cultura fazer? "A cultura tem este lado do sentir, do estar, da partilha da palavra, da partilha da emoção. É uma grande responsabilidade e não se confina a atos simbólicos para angariar fundos. É ter esta visão de humanidade e de proximidade com as pessoas", vinca José Rui Martins.

É sobre o património "humano, sentimental" que o Trigo Limpo quer trabalhar e muito dele perdeu-se com o incêndio - seja uma árvore plantada há cem anos ou um objeto com um "valor incrível".

"A cultura tem em mãos esta responsabilidade imensa de revelar todo este universo de coisas, de dar valor, de estar ao lado das pessoas, com carinhos, com palavras, com afetos", disse José Rui Martins.