Trinta anos, foi este o tempo que decorreu desde que a TAP fechou a Air Atlantis, criada em 1985 para fazer voos não regulares, e é há 30 anos que um grupo de ex-trabalhadores reclama na justiça o direito a uma indemnização. A primeira ação demorou 16 anos, a segunda já vai nos 14 e ainda está a decorrer, agora no Supremo Tribunal de Justiça, onde acaba de dar entrada um recurso.

Inicialmente, dos 300 trabalhadores envolvidos no despedimento coletivo entraram com uma ação na justiça contra a Air Atlantis e a TAP, acionista maioritária, 172 funcionários. Hoje restam 39 e a ação é agora contra o Estado português, a quem começou por ser pedida uma indemnização de 154 milhões de euros.

Os valores apresentados e confirmados por peritagem referem-se a danos passados até 2014, diferença em salários e em reformas para quem já se tinha reformado, e danos futuros até à morte. No entanto, estes valores terão de ser atualizados em função do número de trabalhadores que aderiu à última acção actual.

Muitos desistiram por falta de dinheiro, tempo e paciência. "A justiça é cara e demora muito tempo", disse ao SAPO 24 um dos "sobreviventes" que, como quase todos, prefere não ser identificado. Afinal, três décadas é mais de uma geração, tempo suficiente para mudar de vida, de advogados, de juízes, reformar-se ou até morrer.

"Sou um peão e chegou a um ponto que não consegui continuar, tive de sair para manter a minha sanidade mental", desabafa um piloto que desistiu do processo já na segunda ação. A gota de água foi quando o tribunal de primeira instância ignorou, na sua opinião, o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, que em setembro de 2015 considerou que os trabalhadores deviam ser indemnizados . Mas já lá vamos.

"Não temos um poder judicial neutro, digam o que disserem. E o custo das ações não é para todos", diz. "Além de as ações serem caríssimas, ainda temos de pagar aos advogados. Isto sem falar que o Tribunal de Justiça da União Europeia - cujas decisões têm valor vinculativo - nos deu razão mas, é inacreditável, Portugal não acatou o que foi dito. Isto é do além, uma juíza pegou no parecer do TJUE e foi julgá-lo, sobrepôs-se ao tribunal europeu. Podemos apelar, mas isto não é vida". Este ex-trabalhador da Air Atlantis ainda não tinha 30 anos quando se juntou há companhia e hoje tem mais de 60. Como ele, muito desistiram nesse dia.

"Eles ficaram com os nossos aviões, os nossos clientes, os nossos equipamentos. Mas dispensaram-nos"

Tudo o que a Air Atlantis tinha era da TAP. "Eles ficaram com os nossos aviões, os nossos clientes, os nossos equipamentos. Mas dispensaram-nos". A indemnização deste piloto deveria ultrapassar, de acordo com os cálculos apresentados, o milhão de euros. Sobrou-lhe uma conta em custas de tribunal e advogados que deve rondar os "14 mil euros. E os que ficaram, já a contar com a decisão negativa do Tribunal da Relação, deverão ter de pagar perto de 30 mil euros. A carga financeira e a falta de energia já são brutais".

O que está em causa desde o início é o facto de os ex-funcionários considerarem o despedimento da Air Atlantis ilegal. Garcia Pereira, advogado especialista em Direito do Trabalho, explica uma parte: "Quando a União Europeia autorizou a TAP a receber um financiamento de 180 milhões de contos, sob a condição de não fazer despedimentos - note bem a diferença para os tempos modernos -, a TAP decidiu também, para não dizer sobretudo, externalizar algumas áreas de negócio".

Assim, os trabalhadores, pelo mecanismo da transmissão de empresa ou estabelecimento, passaram a ser formalmente trabalhadores de outra empresa, abatendo no quadro de efetivos da TAP.

"E fez isto criando uma empresa charter, a Air Atlantis, dizendo que era uma oportunidade de negócio, porque a companhia não teria apenas a TAP como cliente, poderia operar no mercado aberto. Com isto, foram sendo passados da TAP para a Air Atlantis aviões, licenças de voo, instalações, equipamentos e trabalhadores. Curiosamente, os administradores mantiveram o vínculo com a TAP", afirma o jurista.

"Anos mais tarde, não sei se os mesmos, se outros cérebros brilhantes da TAP, chegam à conclusão que em vez do outsourcing deviam fazer outra vez o insourcing. Então, primeiro conduziram a Air Atlantis à situação de falência técnica, designadamente através da imposição do abastecimento de aeronaves na TAP, assim como de tripulação, cobrando o preço que entendia. A empresa foi ficando deficitária e, com fundamento nisso, a Air Atlantis é encerrada e é feito o despedimento coletivo dos seus trabalhadores. Depois, a TAP vai buscar de volta os aviões, as licenças de voo, as instalações, os equipamentos. Tudo menos os trabalhadores", recorda Garcia Pereira.

Foi então que os ex-trabalhadores meteram uma ação no Tribunal do Trabalho de Lisboa para declarar que havia uma reversão da transmissão do estabelecimento e, se tudo regressava à TAP, eles também tinham de regressar, pelo que o despedimento era ilícito.

TAP foi contratar fora em vez de integrar trabalhadores da Air Atlantis

Para os ex-funcionários o mais escandaloso é que a TAP os despediu, mas continuou a contratar fora pessoal para as mais diversas funções. "Quando, em 1993, a TAP resolve encerrar a Air Atlantis, manda-nos todos para o desemprego e, curiosamente, continua a admitir pilotos para o seu quadro próprio, uma prática extensiva a todo o tipo de trabalhadores, como pessoal de cabine", confirma um ex-funcionário.

A Air Atlantis é criada pela TAP em 1985, mas operava com tripulações TAP. Só em 1989 a companhia charter, num acordo com a TAP e com o sindicato dos pilotos, passou a admitir pilotos para o seu quadro próprio. Mas esses pilotos fizeram toda a formação na TAP e as condições de admissão eram exatamente as mesmas. Por isso, aliás, "sempre que era necessário fazíamos voos para a TAP", diz um comandante já reformado.

Há pilotos que contam à boca pequena que, depois de os trabalhadores terem ganhado a ação do trabalho na primeira instância, tentaram chegar a acordo com a TAP, sugerindo que se não tivesse lugares no imediato, ficariam numa lista de espera. Mais: como muitos acreditam ter sido preteridos em relação aos filhos de alguns comandantes de longo curso que estavam para entrar, "o que era prática comum", tentaram até negociar uma espécie de escala, "entram seis vossos, entram seis nossos, vamos alternando". Não aconteceu.

Quem supervisiona os tribunais e a aplicação da lei?

Depois de os trabalhadores terem ganhado a acção do trabalho na primeira instância, a TAP recorreu para o Tribunal da Relação, onde a decisão lhe foi favorável. Daí o grupo de trabalhadores apelou para o Supremo Tribunal de Justiça, que não lhe deu razão. Mas que manifestou dúvidas em relação à aplicação do direito comunitário, motivo suficiente para o caso ser enviado para o Tribunal Judicial da União Europeia, o que não aconteceu.

O reenvio prejudicial, assim se chama, apenas pode ser feito pelos tribunais. Não restou aos trabalhadores outra opção que não abrir nova ação, desta vez contra o Estado português, por erro judiciário. Nova ação, novo processo. De volta aos tribunais, a primeira instância pede então o parecer do TJUE. Estávamos então já em 2009.

O TJUE viria a corroborar a opinião dos trabalhadores e dos seus advogados no já mencionado acórdão de setembro de 2015, em que esclarece e responde às perguntas feitas: primeira, entendeu que havia transmissão de estabelecimento; segunda, afirmou que houve erro judiciário; terceira, confirmou que os Estados são obrigados a indemnizar as pessoas por erro judiciário.

Garcia Pereira não representa nenhuma das partes (a ação contra o Estado saiu da sociedade PLMJ e está agora nas mãos da Cruz Vilaça Advogados), mas tem seguido o processo com alguma atenção. "O Tribunal de Justiça da União Europeia condena o Estado português num acordão absolutamente humilhante, considerando que o Estado, através do seu órgão de jurisdição máximo, o Supremo Tribunal de Justiça, tinha violado por duas vezes o direito comunitário, primeiro quando denegou o reenvio prejudicial para o TJUE, depois porque face aos elementos provados era óbvio que havia uma retransmissão de estabelecimento", considera o jurista.

Para Garcia Pereira, "a grande questão está em que quando o Estado português é condenado ninguém tira consequências disso. Nem os responsáveis pela situação que levou à condenação do Estado são chamados à pedra, nem se reflecte sobre o que é necessário fazer para a situação não se repetir no futuro".