Introdução

O meu pai tinha uma livraria. Cresci rodeado de livros. Através deles aprendi histórias sobre diferentes países, culturas e religiões. Sinto-me livre quando pego em livros, apesar de ter nascido num país cujo nome só é conhecido pela guerra e pela pobreza. Por vezes a vida pode ser tão difícil que perdemos completamente a esperança. Depois existem momentos em que nos sentimos como que puxados por algo. De manhã cedo, sempre que eu e o meu pai saíamos do apartamento, ele despedia-se da minha mãe e dos meus irmãos como se não nos voltássemos a ver. Perguntei-lhe por que é que ele fazia isto e ele respondeu-me: «Não sabemos o que nos espera lá fora porque todos os dias há explosões, já morreu muita gente».

Nunca fui como as outras crianças que gostam de brinquedos ou de jogos. Preferia os livros. Sou de um país onde a guerra reina há mais de 35 anos. Cresci com ela e com os livros. O meu pai sabia que um dia teria de fazer algo para termos um futuro: no Afeganistão ele não existe. Decidiu vender a nossa casa e a livraria. Não foi fácil. Só pude trazer duas coisas comigo. Trouxe dois livros, ambos de História.

Viajámos para o Irão e de lá para a Turquia, através das montanhas. Caminhámos durante 12 horas. É doloroso descrever os sentimentos que vivi. Fiquei ferido, parti o polegar e vi um cadáver de uma mulher no caminho. O pior estava para vir. Na viagem da Turquia para a Grécia, quando chegámos ao mar, estava escuro. Fiquei com medo quando vi tantas pessoas no barco. Sabia que tinha de ir, mas estava aterrorizado. Não sabia nadar. Éramos mais de 40 num barco que só dava para quatro ou cinco. No rosto dos outros passageiros vi medo e desesperança. A água começou a entrar lentamente. Vamos afundar. Rezei a Deus. Querido Deus, leva-me primeiro, porque não quero ver a minha família morrer. De repente, apareceu o homem milagroso. Salvou-nos. O meu pai abraçou-nos em lágrimas e disse-nos: «Conseguimos, estamos seguros!». Mas o que ele não sabia é que a nossa jornada só agora estava a começar.

Belal Waziri, 14 anos, afegão

Conheci Belal em 2016 num campo de refugiados na Grécia. Contou-me que o sonho dele era escrever um livro sobre a sua história e como é difícil ser refugiado na Europa. É a ele que dedico estas páginas.

Nota do autor

A mesma latitude no eixo da vergonha

O passado corre atrás como um tubarão sedento por sangue. Não há história que não trave a garganta. O futuro não existe enquanto os dias forem de bombardeamentos. Nove recém-nascidos são levados para a cave. Foi uma antecipação de sorte. Passavam cinco minutos das dez da manhã quando premiram o botão com o hospital debaixo da mira. Mulheres grávidas, médicos, enfermeiros e alguns auxiliares correm para o abrigo antes que os estilhaços consigam contar mais mortos. Lá fora, uma cratera de três ou quatro metros de profundidade acaba de ser aberta por mais um ataque russo. Estão a usar bombas de fragmentação. Ainda com os ouvidos a zumbir, algumas dezenas de vítimas saltam empoeiradas por entre os escombros. Têm a pele branca, com se um saco de farinha lhes tivesse sido despejado em cima. Lá dentro vão ser contados 28 mortos, mas cá fora o balanço é difícil de fazer. Um míssil com uma tonelada de explosivos pode evaporar a carne humana num segundo. É como um homicídio limpo, sem cadáver. Para muitas destas mulheres era um dia importante. Por causa da guerra, conseguir uma consulta de obstetrícia tornou-se quase impossível. Este hospital continuou a funcionar clandestinamente num edifício descaracterizado. Há uma grávida a sair levada em braços. Está ferida.

Livro: "A última fronteira"

Autor: André Carvalho Ramos

Editora: Oficina do Livro

Data de Lançamento: 20 de fevereiro de 2024

Preço: € 17,90

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Não é Mariupol. É Aleppo. Há seis meses que a coligação Putin-Assad massacra civis com ataques aéreos. Oito dos nove hospitais da cidade foram arrasados sem qualquer estima pela vida de quem ainda recuperava de ferimentos de outros bombardeamentos. Esta é a primeira ofensiva russa fora de países que tinham pertencido à União Soviética. Quinze anos depois do massacre de Grozny, na Chechénia, Putin deu a mão a Bashar Al-Assad. O regime estava quase a perder o controlo com uma primavera árabe que teimava em brotar e com um grupo de jihadistas extremistas, o autoproclamado Estado Islâmico, que aproveitava as brechas negras do confronto entre o regime e o Exército Livre da Síria, um grupo armado que nasceu em 2011, composto por civis e militares desertores. O inverno opressor não tardou a unir esforços para esmagar qualquer esperança de uma mudança na vida de milhões de sírios que protestaram nas ruas e perderam o medo de falar, esfomeados há décadas pela dinastia de sempre – entre pai e filho, os Assad estão no poder há mais de 50 anos. Nas cidades sírias foi usado todo o tipo de arsenal proibido. Nem as crianças escaparam a um ataque com armas químicas contra civis – uma linha vermelha que ninguém podia ultrapassar, segundo o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Mas essa linha foi ultrapassada e nada aconteceu. Ainda não há responsáveis castigados com sentenças internacionais por crimes de guerra e só no início de 2022 um tribunal alemão condenou um agente sírio por tortura e violações de Diretos Humanos cometidos em nome do regime de Assad.

O Carniceiro de Mariupol, hoje um dos mais conhecidos homens de guerra de Vladimir Putin, deu os primeiros passos na Síria para aprimorar a técnica. As semelhanças são muitas. Foi ele, Mikhail Mizintsev, que deu ordem para atacar a cidade ucraniana de Mariupol, incluindo o hospital pediátrico e o teatro que serviu de abrigo a centenas de menores. Tinham escrito a palavra «crianças» no chão, à volta do edifício, com letras garrafais, visíveis do céu, para serem poupados aos bombardeamentos aéreos russos. De nada valeu. Trezentas pessoas morreram. Esta alta patente militar é experimentada em massacres. Aos 59 anos, Mizintsev é apontado como o responsável pelo ataque a esta cidade do Donbass, mas, antes, foi também quem comandou os bombardeamentos intensos a Aleppo. A tática passou sempre por arrasar tudo, incluindo centros de civis durante 2015 e 2016.

Seis anos depois, durante a ofensiva no sul da Ucrânia, Mizintsev, o tubarão raivoso de Putin, tinha o arsenal debaixo do botão. Carregou sem parar. Louco por mais sangue. A comunidade internacional ficou horrorizada com as imagens de Mariupol. A sociedade civil prontificou-se numa resposta que nunca antes se tinha visto. A guerra na Ucrânia provocou a maior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Nas fronteiras do país, assisto a um batalhão de pessoas que multiplicam a ajuda de forma descoordenada perante a impetuosa solidariedade que chega de todos os cantos da Europa. As estradas enchem-se de camiões numa romaria a caminho da Polónia, Roménia e outros países fronteiriços. Nas televisões, nas rádios e nos jornais os relatos são constantes. Lá vai mais um grupo de camiões e autocarros desenfreados, organizados por mais um autarca português desesperado por ajudar aquelas mulheres e crianças. Cruzam dezenas de países em socorro de quem foge dos horrores da guerra. Imagino-os vistos de cima, como pelo olho de um satélite, num corrupio igual ao de formigas, a carregarem mantimentos maiores do que eles próprios para as fronteiras da Ucrânia. Recebo dezenas de mensagens de pessoas que querem saber como podem ajudar. Umas recolheram nas suas próprias casas quilos de alimentos, outras montaram recolhas de roupas, de mantas e de brinquedos. Muita desta solidariedade há-de estragar-se. Outra há-de chegar ao destino, ficando por usar.

Os países hoje abrem portas aos refugiados ucranianos – e bem –, dando provas de que afinal era possível acolher quem foge da guerra. A ajuda chega a todos os que cruzam a fronteira. Sem muros ou barreiras legais. Terá sido sempre assim?

Durante o pico da crise migratória da Europa, em 2015 e 2016, milhões de pessoas atiraram-se ao mar Mediterrâneo e ao mar Egeu. Várias organizações mobilizaram-se para ajudar, algumas colocando-se em risco de vida e em risco de acabarem com as costas coladas ao banco dos réus, constituídas arguidas com acusações de auxílio ao tráfico de seres humanos por res- gatarem pessoas do mar. Assim agem os Estados europeus, democracias finas e de primeira água. Estas mesmas organizações não-governamentais acabaram afogadas em burocracias de tal ordem que nada mais podiam fazer do que servir de consolo a quem aguardava há meses – por vezes anos – por uma resposta a um pedido de asilo. Ainda hoje recebo telefonemas de famílias desesperadas por uma resposta que nunca chegou, enquanto milhares de ucranianos são acolhidos alegremente e com publicidade. Há repórteres na televisão a descrever o cenário nas fronteiras ucranianas enquanto olham para as mulheres e proferem frases como «é uma refugiada muito bonita». O jornalismo que faz eco da beleza dos refugiados ucranianos é o mesmo que pobremente calou os horrores cometidos contra refugiados de outros lugares. Será relevante vincar a beleza de uma mulher quando está a fugir de uma guerra? Será ético e deontológico esta referência? Bonita em relação ao quê? Receberia uma mulher negra e de hijab o mesmo insalubre comentário do repórter? Não só os padrões de beleza não devem ser critério como não são dignos de menção, servirão apenas como prova de como olhamos para duas crises de diferentes formas. Revelam o olhar do repórter – que contribuiu para toldar a opinião pública. Sofrerão mais os loiros de olhos azuis do que os de pele escura e cabelos negros? No extremo oposto, durante a crise de refugiados do Médio Oriente, uma outra repórter foi filmada a pontapear um grupo de refugiados que faziam o seu caminho na Hungria, em 2015, na fronteira com a Sérvia. Uma das vítimas dos seus pontapés foi inclusivamente uma criança. Estes dois repórteres podem ser olhados como agentes individuais que agiram, mais ou menos conscientes, desta forma. Mas não deixa de ser curioso pensar como refletem o que está a acontecer neste exato momento. Os países que ergueram muros e arame farpado hoje rasgam as vestes para bradar: entrai por aqui, vós que sois os verdadeiros refugiados.

Durante o primeiro mês de guerra, em março de 2022, Portugal concedeu proteção internacional a quase 30 mil ucranianos, número que praticamente duplicará nos meses seguintes. Três anos antes, em 2019, o governo português assinou um acordo bilateral com a Grécia para receber mil pessoas que estavam retidas em campos de refugiados gregos. Destes, chegaram apenas cem. São pessoas que sofreram os mesmos males da guerra na Ucrânia. Aqui temos de acrescentar o trauma de ter de entrar em redes de tráfico humano, explorações, violações, raptos com pedidos de resgate chorudos, centros de detenção, tortura e, com sorte, uma passagem arriscadamente mortífera do mar Mediterrâneo ou do mar Egeu.

A máquina pesada e carrancuda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras revelou-se afinal muito eficaz quando quis. Conseguiu pôr a funcionar um mecanismo que permite aos ucranianos terem automaticamente estatuto de refugiado por um ano, renovável por mais um. Sem uma entrevista ou qualquer tipo de escrutínio. Outros, de países como a Síria, o Iraque ou a Turquia aguardam há anos por essa mesma oportunidade e cumprem todos os requisitos. A estes, enquanto cidadão, já não sei o que lhes dizer ou como explicar que ficaram para trás na gaveta das preocupações menores do Estado português. Há ainda outros que, já em Portugal, são obrigados a permanecer na ilegalidade porque o SEF demora tanto a responder que os cartões temporários de residência já estão caducados e, assim, não conseguem sequer ter acesso a uma conta bancária ou número de contribuinte. Se pensarmos bem, nem uma casa conseguem arrendar. Estão condenados à pequena caridade que oprime e revolta.

Não me recordo desta onda descontrolada de solidariedade política quando a Síria foi bombardeada pelos mesmos mísseis que agora chovem em Mariupol, Kharkiv, Kyiv e em muitas outras cidades. Também não me recordo de ver autocarros a caminho de Itália ou da Grécia para trazerem pessoas às centenas de campos de refugiados sobrelotados e pestilentos em que crianças dormiam no mesmo chão onde, dois metros ao lado, se acumulava lixo podre de vários dias sem recolha ou saneamento básico. O que move a esperança desta gente? Ainda em 2020, outros dois hospitais em Aleppo voltaram a ser bombardeados, incluindo uma maternidade. Era a última na cidade. Ninguém quis saber, o assunto tão-pouco foi alvo de notícia ou particular atenção. A notícia não foi impressa na primeira página de qualquer jornal ou abriu os noticiários das televisões à hora de jantar. O Programa Alimentar Mundial, entretanto Nobel da Paz, não consegue chegar lá. Há cerca de um milhão de deslocados internos na Síria, 85% são mulheres e crianças. Durante um ano, houve 78 bombardeamentos a instalações hospitalares. No inverno, em Aleppo, as temperaturas chegam aos dez graus negativos. Tanto frio como em Mariupol. Por que razão a guerra na Ucrânia dói mais do que a guerra na Síria? Ou no Iraque, invadido em 2003 pelo Ocidente? Ou no Iémen, onde a fome mata mais do que em qualquer outra zona de conflito? A Europa aprendeu com o passado ou está a expiar os pesos de consciência? Por que razão, então, sofremos tanto com a grávida de Mariupol e fechamos os olhos à grávida de Aleppo? Alguns dizem que é a «proximidade». Qual proximidade? Uma cidade parece estar tão perto, a outra estupidamente distante. Mas Mariupol e Aleppo têm exatamente a mesma latitude no mapa mundo. 36 mil graus. O que as separa só pode ser mais do que a geografia.