O Papa Francisco escreveu uma carta ao presidente dos Arautos do Evangelho, instando-os a aceitar a intervenção da Santa Sé naquela instituição, depois de o cardeal Raymundo Damasceno ter sido nomeado comissário pontifício, em nome da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica (CIVCSVA).
De acordo com uma notícia da revista espanhola Vida Nueva, Francisco enviou a carta em meados de janeiro, dirigida a Felipe Eugenio Lecaros Concha. Nela, faz saber que apoia a intervenção da CIVCSVA em todos os ramos dos Arautos, acrescenta a Vida Nueva.
A Congregação para a Vida Consagrada teve, neste caso, delegação de competências do dicastério para os Leigos e esta foi a razão para que os Arautos não reconhecessem a autoridade do cardeal brasileiro. O decreto da nomeação do cardeal brasileiro, recorda ainda a revista, falava dos Arautos como uma associação pública de fiéis quando, na realidade, são uma associação internacional de fiéis de direito pontifício, aprovada em 2001 pela Santa Sé.
O erro formal foi depois corrigido pelo Vaticano, que recordava ter sido a nomeação do cardeal aprovada diretamente pelo Papa que, com esta carta, vem confirmar não só a nomeação como o seu apoio a Damasceno e aos seus assistentes. O cardeal brasileiro começou o seu trabalho pelos dois ramos das sociedades de vida apostólica dos Arautos – o Virgo Flos Carmeli, masculino, e o Regina Virginum, feminino. Com a carta do Papa, Damasceno pode intervir também na associação internacional – caso isso não acontecesse, os seus membros incorreriam em clara desobediência ao Papa.
Notados em cerimónias litúrgicas pelas vestes em tons de castanho e botas altas, os Arautos estão desde 25 de setembro último sob a autoridade do cardeal Damasceno, arcebispo emérito de Aparecida (Brasil), mas já desde 2017 que o Vaticano vem investigando a instituição: há acusações de supostos delitos e irregularidades que teriam lugar no seu interior.
De acordo ainda com a Vida Nueva, estão na lista possíveis casos de abusos sexuais sobre menores, alienação parental, abusos de consciência e de poder, prática de exorcismos irregulares, culto fanático ao fundador e recolha de donativos sem autorização do bispo diocesano.
As acusações atingem, pelo menos indiretamente, o fundador da instituição, o padre brasileiro João Scognamiglio Clá Dias, nascido a 15 de agosto de 1939. Durante quatro décadas, João Clá Dias integrou a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada por Plínio Corrêa de Oliveira, como se recorda na página digital dos Arautos em português.
A TFP foi um dos movimentos que mais protagonizou a luta contra qualquer deriva de esquerda política no Brasil, alargando a sua ação a vários outros países.
“Quarenta anos de convívio fazem de Mons. João Sconamiglio Clá Dias, EP, a mais autorizada testemunha sobre a vida, a atuação, as virtudes e o pensamento de Plínio Corrêa de Oliveira”, lê-se na página, num anúncio da colecção de cinco volumes escritos por João Clá sobre o fundador da TFP.
“Observador atento e sistemático das ações de seu mestre, Mons. João oferece uma aula de teologia viva, personificada num varão virtuoso e providencial”, acrescenta o texto, sobre a obra, curiosamente publicada pela Libreria Editrice Vaticana e pelos Arautos.
A instituição tem negado desde o início as acusações, mas outros antigos membros dos Arautos que terão sofrido vários daqueles delitos, ainda segundo a VN, acusam a Santa Sé e a Justiça brasileira de não darem informação sobre o andamento das investigações.
Sob investigação do Vaticano, recorda a Vida Nueva, estão documentos como o manual Usos e Costumes, sobre a vida quotidiana dos membros e das crianças que estudam nos seus colégios. O manual chegará ao ponto de explicar como se deve rezar ou fazer o sinal da cruz, ou pormenores como dobrar um guardanapo, lavar as mãos ou lavar os dentes.
O manual inclui ainda inúmeras citações do fundador e de Corrêa de Oliveira e pretende, “glorificar a Deus por meio da beleza de cada uma das ações” do dia-a-dia, de modo a cuidar “o cerimonial, a compostura e a disciplina”.
A Vida Nueva entrevistou ainda José Miguel Cuevas, professor de Psicologia Social na Universidade de Málaga, especialista em em abuso psicológico e fenómeno sectário. Cuevas identifica várias práticas descritas por denunciantes como “claramente compatíveis com dinâmicas sectárias” – e que são explicadas com minúcia no texto referido – e que incluem o isolamento familiar e social dos membros da associação.
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