Vinte dias separam a última visita que Adriana fez ao pai – Martinho Miranda Ribeiro, de 79 anos, reformado, apaixonado pela música e residente em Vila do Conde, no distrito do Porto, - e aquele em que recebeu a notícia da sua morte.

Conforta-a saber que Martinho sabia que era amado e que a perda foi “uma inevitabilidade” em tempos da pandemia da covid-19. Sossega-a saber que o pai “teve uma boa vida”. Alivia-a saber que “fez tudo o que podia”, conta à agência Lusa, menos de um mês depois de um funeral no qual estiveram “talvez 10 pessoas”.

“O caixão chegou. Estávamos com máscara e afastados. Não escolhemos nada: nem caixão, nem flores, nada. Percebi que havia uma urgência das autoridades e da funerária em fazer o enterro. Enterrámos o meu pai e agora é isto. Viver com isto. O que me ajuda a fazer o luto é a própria personalidade do meu pai que dizia que quando morresse não queria luxos, nem preto, nem choros. Só queria música. Teve um funeral discreto como ele queria e como eu nunca imaginei que tivesse”, descreve.

Martinho Miranda Ribeiro, que tocava concertina no Rancho das Caxinas e tinha 12 irmãos, tinha gerido um café e um restaurante depois de regressar a Portugal vindo do Brasil. Morreu a pouco tempo de completar o 50.ª aniversário de casamento que aconteceria em maio e planeava a “grande festa que ia fazer” há um ano.

“Para a minha mãe, que perdeu o companheiro de 50 anos, tem sido difícil. Porque não o viu, não sabe se ele foi bem tratado. Pergunta-se: será que morreu sozinho? Será que sofreu?”, conta.

Estas são perguntas que o presidente da Delegação Regional Norte da Ordem dos Psicólogos (OPP-DRN), Eduardo Carqueja, conhece bem.

Em declarações à agência Lusa, o psicólogo explica que “o que está a acontecer [em tempos de pandemia] é que muitas famílias não conseguem despedir-se, não conseguem visualizar como é que o seu familiar morreu” e, por isso, “imaginam”.

“E a imaginação carrega sofrimento, o sofrimento de pensar que pode não ter sido como gostariam que tivesse sido. Quem trabalha no luto tem de estruturar isto muito bem. É importante que não se abandone estas pessoas enlutadas no tempo que vai chegar porque elas podem não ficar prisioneiras da covid-19, mas ficam prisioneiras de sentimentos de culpabilidade, impotência, abandono, com raiva dirigida para quem morreu ou para quem tratou de quem morreu”, descreve Eduardo Carqueja.

O presidente da OPP-DRN explica que “num processo de perda não há como não ter sofrimento” e que deve “desenganar-se quem acha que só com acompanhamento psicológico ou com fármacos deixa de sofrer”.

Adriana Miranda Ribeiro, 41 anos, mãe de uma menina de quatro à qual foi diagnosticada leucemia há um ano, situação atualmente em remissão, sabia que o pai ia morrer um dia apesar de a certa altura ter achado que ele era “imortal”.

“O meu pai foi internado em novembro depois de um enfarte. Teve consequências e aguardava reabilitação. Foi sempre resistindo. Teve várias infeções hospitalares, desde gripe A a uma no intestino (…). Foi operado. Trocaram-lhe parte do ‘pacemaker’. Resistia sempre. Sempre otimista. Foi preciso vir uma pandemia para o levar”, diz.

O Governo proibiu as visitas a hospitais a 08 de março. Adriana ainda viu o pai no dia seguinte. Internado por várias outras patologias, Martinho testou positivo ao novo coronavírus a 20 de março.

Foi transferido para o Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e morreu cerca de uma semana depois, e também depois de ter visto o filho mais novo, a quem, após estar “todo equipado”, foi permitido visitar o pai de madrugada, e ainda depois de uma videochamada que o permitiu ver a filha e a mulher.

“Recebi uma chamada depois das 23:00 – ninguém liga a essa hora se for para dar esperança – de uma médica espetacular do Pedro Hispano. Chama-se Margarida Oliveira. Quando tudo isto passar vou procurá-la. Se calhar dá conforto a 100 pacientes e a 100 famílias por dia, mas eu quero agradecer-lhe. E combinámos uma videochamada pelo telefone dela. Não sei se ele nos ouviu, mas dissemos o que tínhamos a dizer. De alguma forma despedimo-nos”, conta Adriana, que não se deslocou ao hospital por ser muito arriscado expor-se ao vírus tendo em conta o historial médico da filha.

A videochamada que a médica proporcionou a Adriana e à mãe é uma das estratégias que Eduardo Carqueja descreve como “vitais” num “momento como este em que a morte, o luto e a perda começam a ser falados com banalidade”.

“É um desafio que já nos está a merecer a todos uma reflexão e um olhar diferente sobre a última proximidade. Quem trabalha nesta área procura que exista uma última proximidade para tranquilidade, de quem morre e de quem fica”, descreve o psicólogo.

Eduardo Carqueja, que também dirige o serviço de psicologia do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto, acrescenta que também a “memória” é uma forma de “integrar a perda” e “fazer o luto”.

Indo ao encontro desta estratégia, num tempo em que as despedidas são curtas e os rituais são reduzidos ao máximo, Adriana recorda um pai “muito popular” que “provavelmente teria tanta gente no funeral que até seria difícil de gerir”, mas que morreu “porque o universo criou uma pandemia” que levou um “herói” ao qual só faltou “amassar um vírus que não lhe metia medo”.

créditos: MIGUEL A. LOPES/LUSA

Cemitérios fechados e rituais reduzidos geram dinâmicas novas em tempo de pandemia

Cemitérios fechados, funerais com poucas pessoas, rituais reduzidos ao máximo e a dificuldade de prestar um último adeus ou de velar um familiar ou amigo são situações que geram dinâmicas e sofrimentos novos em tempos de pandemia.

Humberto Sousa é tesoureiro da União de Freguesias Fânzeres/São Pedro da Cova, em Gondomar, distrito do Porto, e responsável pelos cemitérios locais, sendo que, em 15 anos de funções, “nunca tinha visto nada assim”, conta à agência Lusa.

“Hoje [quinta-feira da semana passada] estavam dois coveiros, dois armadores e eu nas cerimónias fúnebres. Aliás, não houve cerimónia. E a família, tal é o medo de contágio pelo [novo] coronavírus, nem apareceu”, descreve.

Já no dia anterior, num funeral de uma pessoa cuja morte está associada à covid-19, estiveram no cemitério de São Pedro da Cova oito pessoas, contando já com filhos e noras da vítima.

A uma realidade completamente nova, com ausência de rituais, sejam religiosos ou não, Humberto Sousa soma novos procedimentos.

“O fardamento das pessoas que tocam na urna – que já chega desinfetada e lacrada com fita – são completamente diferentes. Estão equipados com fato de proteção descartável que no final é colocado num contentor, viseira, luvas e calçado apropriado”, enumera.

Segundo o tesoureiro, as homenagens processam-se em “minutos muito rápidos”, esteja o funeral associado a uma vítima covid-19 ou não, e a capela mortuária nem é aberta quando está comprovado que a causa da morte foi o novo coronavírus que já provocou mais de 124 mil mortos e infetou quase dois milhões de pessoas em 193 países e territórios.

“As próprias famílias não querem. O distanciamento é obrigatório. Quase não se veem abraços nem beijos”, conta.

Por trabalhar há mais de uma década nesta área, Humberto Sousa recusa-se a olhar para a morte e para o luto de forma banal, mas essa é “uma tendência infelizmente natural”, observa o presidente da Delegação Regional Norte da Ordem dos Psicólogos (OPP-DRN), Eduardo Carqueja.

“Mais do que banal, este vírus transformou toda esta dimensão em algo assustador. Em outras condições, falávamos da morte também, mas parecia algo circunscrito a determinado momento ou a determinado acontecimento ou país. Agora é algo universal que nos chega de forma muito invisível. A presença do outro ou imaginar que o outro pode transmitir a doença assusta”, refere à Lusa.

O psicólogo, que é também diretor do serviço de psicologia do Centro Hospitalar e Universitário do São João (CHUSJ), no Porto, recordou a conversa recente com um doente covid-19 impedido de ir ao funeral da mulher ou as perguntas formuladas pela filha de um homem que terá dito, em vida, que não queria ser cremado.

“Um disse-me que queria prestar um último adeus à esposa. Já da senhora que perdeu o pai ouvi: já viu que nem o último desejo dele fui capaz de cumprir? Geram-se sentimentos de impotência e revolta que constituem um enorme desafio para quem ouve e cuida. O que temos de trabalhar é a integração da perda na realidade de cada pessoa”, apontou.

As respostas a estas perguntas e desabafos “não são banais nem uniformes”, refere Eduardo Carqueja, mas podem passar por “tentar transformar as dificuldades” na ideia de que “aquela pessoa morreu como uma heroína”.

“Sabendo que sendo sepultado traria mais perigo para a saúde pública, o seu pai, numa dádiva de solidariedade se estivesse cá agora, naturalmente escolheria ser cremado”, é uma das respostas possíveis, a par de estratégias de “conforto ou sossego” como a que lhe foi relatada por uma paciente que decidiu dar aos funcionários da funerária a fotografia do pai, pedindo-lhes que confirmassem o rosto da pessoa morta dentro do caixão.

“A nossa equipa de psicólogos está a trabalhar sem sábados nem domingos porque as pessoas não escolhem sábados nem domingos para morrer. E as pessoas continuam a morrer de outras situações e isso não pode ser descurado. Todos os rituais são muito rápidos e naturalmente isso traz consequências”, analisa Eduardo Carqueja.

Uma das consequências da necessidade de encurtar rituais até aqui habituais é visível na pergunta que Ana Vasconcelos, residente em Ermesinde (Valongo), faz no Facebook da União de Freguesias de Mafamude/Vilar do Paraíso, em Vila Nova de Gaia, numa publicação na qual é divulgado que os serviços locais colocaram coroas de flores nos portões dos cemitérios.

“Tiveram essa atenção em todos os cemitérios? Gostaria muito de saber pois tenho aí sepultadas duas pessoas importantes da minha vida: meus queridos avós”, questionou Ana Vasconcelos.

A resposta afirmativa é dada na página das redes sociais e à Lusa pelo presidente da Junta local, João Paulo Correia: “Decidimos colocar coroas de flores e fazer limpezas, pois sabemos a importância que estes rituais têm para as famílias. O objetivo é dar algum conforto a quem não pode fazer a sua visita habitual à campa de um ente querido”.

Já Eduardo Carqueja acrescenta o conselho de que estes desabafos não sejam “desvalorizados” ou “desrespeitados”.

“Para muitos as campas são locais de identidade, memória e culto. Não sabendo quanto tempo o confinamento vai durar, podemos abordar o sofrimento numa dimensão transitória e aconselhar a colocação de uma vela ou de uma flor junto a uma fotografia, ou a realização de uma oração quando em causa estão pessoas mais religiosas”, conclui.

Em Portugal, segundo o último balanço da Direção-Geral da Saúde, registam-se 567 mortos e 17.448 casos de infeção confirmados pelo novo coronavírus.

Portugal encontra-se em estado de emergência desde 19 de março e até ao final do dia 17 de abril.

* Paula Teixeira, da agência Lusa