Diário de um pai em casa. Dia 33


Estamos no zoom. Vivemos no zoom. Respiramos o ar do zoom. Reunimos no zoom. Falamos no zoom. Aprendemos receitas no zoom. Bebemos no zoom. Os nossos filhos fazem ginástica no zoom. E, acima de tudo, têm aulas no zoom. Vejo o mundo através do zoom. O zoom é a nossa vida. A minha vida toda cabe num zoom. Quem diz zoom, diz outra plataforma. O teams é o alter-ego do zoom. E também vive connosco.

O dia começa ao lado do meu filho de 6 anos. Os outros três está cada qual para seu canto. Antes mesmo de me aproximar do zoom já vi mensagens no WhatsApp. A professora, de véspera, prepara o sumário das aulas. Informa sobre o planeamento. Descarrega vídeos explicativos.

Um ecrã de um computador, um tablet na mão, um link, uma ID, uma password e uma sala de aula aos quadrados. No zoom.

Algumas mães, sem pedirem licença, perguntam, no grupo de WhatsApp criado para a sala, pela senha de acesso ao zoom. Não sabem. Não conseguem entrar, escrevem. É a mesma do dia que antecede. Será a mesma até o administrador avisar que mudou. Cai uma, duas, três, quatro mensagens com a informação. Segue-se o diplomático “obrigado” a que se juntam alguns “até já”. Alguém entra atrasado e pergunta a senha. Está quatro mensagens atrás. Segue-se quatro novas mensagens.

De repente, caras de crianças, com e sem headphones, entram pela minha casa dentro. Uns na sala, outros nos quartos. As meias-caras e antebraços de pais e mães são convidados que também aparecerem. A espaços.

Grandes planos e uma grande angular que reflete quadros, estantes, camas, sofás, televisores e um guarda-roupa meio desarrumado, meio escondido. No meu caso, no caso do meu filho António, somos originais. Estamos na cozinha. Não há estantes, nem brinquedos, nem tão pouco quadros de ardósia. Azulejos brancos é a imagem que enviamos para o mundo. Curioso, escrevemos e estudamos no mesmo espaço onde Luis Sepúlveda, escritor chileno que morreu hoje vítima da pandemia covid-19, gostava de escrever.

Uma professora do lado de lá. Alunos do lado cá. Deixo-o, sem a minha interferência, sentir-se como se estivesse do lado de lá. Interage através do microfone e esconde-se da câmara. Timidez. Estranha, por enquanto. Liga e desliga ambos, sem parar. Arrasta os dedos. É dono daquilo que faz. Vai fazer tantas vezes que deixará de ter medo do microscópio que projeta a sua cara.

Miúdos mordiscam lápis, abanam a cabeça como se estivessem a ouvir música e dizem os nomes uns dos outros a meio da aula. O meu filho, com o som desligado, informa-me que quer comer. A professora frena ímpetos. Tal como faz no meio onde se conheceram todos.

Recebo telefonemas de trabalho. Uma assessora de imprensa a perguntar se tinha recebido um email. O tema é o de sempre: pandemia e ofertas.

Zoom desligado. Fim de aula, ligeira pausa antes do começo de outra. Agora, autónoma. Cumprindo o plano do dia. Trabalhos feitos. Envolve correção a borracha e exercícios em plataformas digitais.

Mais mensagens de WhatsApp. Agradecimentos e manifestações dos estados de alma das crianças. Ou será de mães e pais. Despedem-se. Gostaram.

Mais uma mensagem. O Martim, ou será Salvador, faz anos. Vai querer algo virtual. Parabéns. Martim, ou Salvador. Não sei. E adivinharam. Chovem mensagens. No canal que deve ser utilizado para os sumários. E para a senha de acesso. Seja da professora de todos os dias, ou de outra, que aparece uma vez por semana.

Segundo zoom do dia. A professora é diferente da manhã. Vão falar inglês. Antes, alguém pergunta qual é a senha. As respostas caem, a conta-gotas.

Estou a trabalhar ao lado da pronúncia britânica de S, T e U. “You’ve got a message”. O SMS é da minha filha, Francisca, que, do quarto, pergunta a password do HBO. Como se eu não estivesse duas divisões ao lado. Ficou sem resposta. Dou-lhe ao final do dia.

Fim das aulas. Já não olho mais para o grupo de WhatsApp. Sei que, depois de uma conversa tida com a professora responsável pela sala do 1º ano, amanhã nascem dois grupos distintos: os que fornecem a senha, fechado, e o que tem as respostas sobre o acesso, aberto. Que também serve para dar o parabéns ao Martim. Ou será Salvador?

O dia terminou, como deveria terminar se estivéssemos em normalidade. Os pais de um amigo do meu filho António estavam de passagem pela nossa rua. Foram comprar pão. Ligaram. O Miguel queria ver o António. Fomos à janela. Escutei o saxofonista que tem uma escola de música ao virar da esquina. Tinha saudades do som.

Dissemos olá. Um cumprimento insuficiente. Frio e distante. Propus descermos. O António precipitou-se a vestir a camisola oficial da escola. Cruzámos a estrada. Mantivemos a distância. Os putos não correram lado a lado. Um foi à frente do outro. Pularam de alegria.

A confraternização durou até um aguaceiro decidir cair em cima de nós. Mais pulos e uma afirmação. “Já não necessito de tomar banho”, riu-se, o António.

Este foi o meu filme das 9h00 às 17h00. No dia em que o Estado de Emergência foi renovado até 2 de maio. Anúncio que chegou com a cozinha a ser invadida por outros três filhos vindos, cada qual, da sua sala de aula. Dos seus zooms.