Quando decidimos que, também nós, Startup Portugal, iríamos assinalar o centenário da fadista Amália Rodrigues, contactámos a sua Casa-Museu para tentar perceber se a maior cantora portuguesa de sempre era, também (e à sua maneira), uma empreendedora. Imediatamente nos avisaram, “Amália não se via como uma empreendedora e não iria gostar desse rótulo”. Respeitamos, mas continuamos a achar que esta mulher será sempre um exemplo de inovação, de adaptação, de perseverança e de visão.

A visita a esta casa, situada na Rua de São Bento, que terá sido a sua residência nos últimos 44 anos da sua vida, reforçou a nossa ideia.

Nascida em julho de 1920, Amália é conhecida, sobretudo, como fadista, sendo mesmo apelidada por muitos como a Voz de Portugal. Este título é-lhe atribuído pela vasta carreira, quer em Portugal, quer internacionalmente, como cantora de fado e não só.

Transformar a sua última morada em museu terá sido uma vontade explícita da cantora. Queria não só partilhar o seu lado mais íntimo e pessoal como continuar a promover o fado e a cultura portuguesa. A casa amarela já não se encontrará exatamente igual ao que deixou, mas só porque, ao longo da visita, vamos encontrando vestidos, joias e prémios que a mesma não teria exposto dessa maneira, segundo nos contam. Ainda assim, é fácil (e fascinante) perceber como ali vivia. Esta visita é acompanhada por uma guia que, à medida que nos mostra os vários recantos onde Amália terá cantado, gravado álbuns, festejado e armazenado o seu vasto espólio de vestidos e sapatos, nos conta ainda curiosidades do seu dia-a-dia, da sua vida, do seu segundo marido (com o qual terá partilhado esta casa até ao fim dos seus dias) e ainda do seu papagaio Chico, que ainda é vivo e que reclama por Amália se não for a sua música a que lhe é dada a ouvir. Pode ser visitada todos os dias, exceto às segunda-feira e feriados, promovendo também sessões de fado semanalmente.

Muito antes de chegar à dita casa amarela, Amália, que terá feito apenas a terceira classe, viveu com os avós em Lisboa e com 11 anos terá começado a trabalhar como bordadeira, tendo sido ainda engomadeira e operária. Também cedo começa a entreter aqueles à sua volta com as suas cantorias.

A definição de empreendedorismo está muitas vezes associada a negócios, e talvez seja esse o motivo para se acreditar que Amália rejeitaria o rótulo. Mas a definição não se resume a isso. É considerado empreendedor aquele, ou aquela, que, entre outras coisas, inova, assume riscos, mantém-se independente, tem carisma de liderança, capacidade de adaptação, reconhece oportunidades, aceita desafios e marca a diferença.

Hoje, no ano em que se celebra o centenário do seu aniversário, não há dúvidas: Amália Rodrigues marcou a diferença. No fado, no mundo do espetáculo e até na sua vida pessoal, que se inicia durante o período do Estado Novo e, portanto, numa atmosfera bastante conservadora.

Amália inovou no fado de várias formas. Desde os trajes que utilizava nas suas performances e que, por serem totalmente negros, contrastavam com o usado pelas artistas da altura, que usavam também manto negro, mas com vestidos mais coloridos; até à forma como cantava o fado.

Amália trouxe os grandes poetas para o género, cantando poemas de Camões, de David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Melo, Alain Oulman, entre muitos outros, e deu, ainda uma nova vida ao denominado fado-canção, que os puristas já não considerariam fado, mas que, ainda hoje, são considerados emblemáticos, tais como o "Fado do Ciúme" ou "A Gaivota".

As críticas que recebeu pela introdução de Camões no seu repertório demonstram não só a sua capacidade para assumir riscos, como a sua independência relativamente à forma como define o que, em linguagem financeira, chamaríamos de produto final. Por outro lado, a intemporalidade com que estas escolhas se imprimiram no fado, é a prova de que Amália era uma visionária e que o seu carisma é, também ele, intemporal.

A cantora mostrava ainda uma adaptabilidade à sua audiência (ou como nós chamaríamos, ao mercado). Exemplo disso é o facto da mais internacional das artistas portuguesas falar várias línguas. Não só levava a língua e os poetas portugueses aos quatro cantos do mundo, como cantava canções estrangeiras, conquistando, ainda mais, o público além fronteiras. Por outro lado, apesar da imagem de marca que cultivava, abria exceções ao habitual negro das suas vestimentas, como quando no Hollywood Bowl, em Los Angeles, EUA, em 1966, se vestiu de cores garridas. Afinal de contas, a artista, com 158 centímetros de altura, não poderia passar despercebida no meio dos músicos de casaca de gala escura que a acompanhariam.

Celebramos o seu aniversário hoje, dia 23 de julho, por ser o dia em que terá sido registada. Na verdade, a verdadeira data de nascimento de Amália permanece um mistério. Contou-lhe a sua avó que nasceu com as cerejas (e por isso mandou debruar a sua sala de jantar com desenhos de cerejas). Sabe-se que a época das cerejas pode ir de maio a julho, por isso, na dúvida, Amália escolheu celebrar no dia 1 de julho. Tinha a teoria que, por ser início do mês, receberia mais presentes. Amália podia não ser uma empreendedora, mas uma coisa é certa, sabia capitalizar as suas circunstâncias.

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