Toda a informação consta do relatório publicado pela organização de defesa dos direitos humanos na madrugada desta quinta-feira, 5 de dezembro, ao qual o 7MARGENS teve acesso em primeira mão. Para Agnès Callamard, secretária-geral da AI, é muito claro que as conclusões da investigação “devem servir de alerta para a comunidade internacional: isto é genocídio. Tem de acabar já”. E os testemunhos de algumas das centenas de entrevistados no âmbito da investigação falam por si.

“Aqui em Deir al-Balah [cidade situada na região central da Faixa de Gaza], é como um apocalipse. Não há espaço para poderes montar uma tenda; tens de montá-la perto da costa… Tens de proteger os teus filhos dos insetos, do calor… e não há água potável, nem casas de banho. Tudo isto enquanto os bombardeamentos nunca param. Sentes-te subumano aqui.” A descrição é feita por Mohammed, um pai de três filhos, de 42 anos, que falou aos investigadores da AI em junho deste ano sobre a sua experiência de deslocação de Rafah para Deir al-Balah. Trata-se de um entre os muitos testemunhos citados no documento e foi ele que inspirou o título escolhido para o relatório agora divulgado: “You Feel Like You Are Subhuman” [Sentes-te como se fosses subhumano]: O genocídio de Israel contra os palestinianos em Gaza.

Mas não é o mais forte. Os relatos das condições de vida, dos assassinatos, das lesões corporais ou mentais graves que têm sido infligidas deliberadamente aos civis palestinianos em Gaza sucedem-se ao longo das perto de 300 páginas do documento.

Ahmad Nasman, outro pai de três filhos, perdeu-os a todos – e também à sua esposa, irmã e pais – num ataque israelita que destruiu completamente a casa onde haviam procurado refúgio, depois de se terem deslocado de Gaza para Rafah numa carroça puxada por cavalos, através do chamado “corredor seguro”, que descreve como um “corredor do inferno”. A viagem aterrorizou os seus filhos, especialmente quando os soldados israelitas presentes no caminho efetuavam revistas corporais.

No dia do ataque, a 14 de dezembro do ano passado, Ahmad estava num mercado próximo e correu para casa depois de ouvir a explosão, encontrando-a em chamas. “Estava tudo completamente destruído… só havia ruínas, fumo e pedras”, conta. Foram precisos quatro dias para retirar dos escombros o corpo da sua filha bebé Ayla, que só conseguiu reconhecer pela roupa. A explosão decapitou a sua filha de cinco anos, Arwa.

“Quando a guerra começou, eu só tinha uma missão na minha vida: proteger os meus filhos. Gostava de ter estado com eles quando a casa foi atingida… O meu corpo sobreviveu, mas o meu espírito morreu com os meus filhos, foi esmagado com eles debaixo dos escombros”, diz Ahmad.

Ao longo do seu trabalho de investigação – que examina em pormenor as violações cometidas por Israel em Gaza durante nove meses, entre 7 de outubro de 2023 e o início de julho de 2024 – a Amnistia Internacional entrevistou 212 pessoas, incluindo vítimas e testemunhas palestinianas, autoridades locais em Gaza e profissionais de saúde. Realizou também trabalho de campo, analisou uma vasta gama de provas visuais e digitais, incluindo imagens de satélite, e ainda as declarações de altos responsáveis governamentais e militares israelitas, bem como de organismos oficiais israelitas. E concluiu que, quando vistos isoladamente, alguns dos atos de Israel constituem violações graves do direito internacional humanitário ou do direito internacional dos direitos humanos. “Mas se olharmos para o quadro mais amplo da campanha militar de Israel e para o impacto cumulativo das suas políticas e atos, a intenção genocida é a única conclusão razoável”, afirma o relatório.

Os crimes do Hamas não podem justificar o genocídio

“O relatório da Amnistia Internacional demonstra que Israel levou a cabo atos proibidos pela Convenção sobre o Genocídio, com a intenção específica de destruir os palestinianos em Gaza. (…) Mês após mês, Israel tem tratado os palestinianos em Gaza como um grupo subhumano indigno dos direitos humanos e da dignidade, demonstrando a sua intenção de os destruir fisicamente”, afirma Agnès Callamard, secretária-geral da organização, citada na apresentação do relatório.

“A nossa investigação revela que, durante meses, Israel persistiu em cometer atos genocidas, plenamente consciente dos danos irreparáveis que estava a infligir aos palestinianos em Gaza. Continuou a fazê-lo, desafiando os inúmeros avisos sobre a situação humanitária catastrófica e as decisões juridicamente vinculativas do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) que ordenavam a Israel que tomasse medidas imediatas para permitir a prestação de assistência humanitária aos civis em Gaza”, prossegue a responsável.

E quanto aos argumentos de Israel indicando que as suas ações em Gaza são legais e podem ser justificadas pelo seu objetivo militar de erradicar o Hamas, Callamard considera-os inaceitáveis. “Tendo em conta o contexto pré-existente de desapropriação, apartheid e ocupação militar ilegal em que estes atos foram cometidos, só pudemos chegar a uma conclusão razoável: a intenção de Israel é a destruição física dos palestinianos em Gaza, quer em paralelo, quer como meio para atingir o seu objetivo militar de destruir o Hamas”, afirma. E por isso defende que “os crimes de atrocidade cometidos em 7 de outubro de 2023 pelo Hamas e outros grupos armados contra israelitas e vítimas de outras nacionalidades, incluindo assassinatos em massa deliberados e tomada de reféns, nunca podem justificar o genocídio de Israel contra os palestinianos em Gaza”.

Antes de chegar a esta conclusão, a AI analisou as alegações de Israel de que as suas forças armadas visavam legalmente o Hamas e outros grupos armados em toda a Faixa de Gaza e que a destruição sem precedentes e a recusa de ajuda daí resultantes eram o resultado de uma conduta ilegal do Hamas e de outros grupos armados, como a localização de combatentes entre a população civil ou o desvio de ajuda.

Mas “a organização concluiu que estas alegações não são credíveis. A presença de combatentes do Hamas perto ou dentro de uma área densamente povoada não isenta Israel das suas obrigações de tomar todas as precauções possíveis para poupar os civis e evitar ataques indiscriminados ou desproporcionados”, afirma o relatório, acrescentando que “Israel não o fez repetidamente, cometendo múltiplos crimes ao abrigo do direito internacional para os quais não pode haver justificação com base nas ações do Hamas”.

O relatório sublinha ainda que “muitos dos atos ilegais documentados pela Amnistia Internacional foram precedidos por funcionários que incitaram à sua execução”. Tendo analisado102 declarações emitidas por funcionários governamentais e militares israelitas que desumanizavam os palestinianos, apelavam ou justificavam atos genocidas ou outros crimes contra eles, a Amnistia Internacional identificou 22 feitas por oficiais superiores responsáveis pela gestão da ofensiva que “pareciam apelar a, ou justificar, atos genocidas, fornecendo provas diretas da intenção genocida”. Esta linguagem foi frequentemente reproduzida, inclusivamente por soldados israelitas no terreno, como demonstram os conteúdos audiovisuais verificados pela Amnistia Internacional onde surgem soldados a apelar ao “apagamento” de Gaza ou a torná-la inabitável, e a celebrar a destruição de casas, mesquitas, escolas e universidades palestinianas.

“Os governos têm de deixar de fingir que são impotentes”

De acordo com os dados avançados pela AI no relatório, a ofensiva militar de Israel na sequência dos ataques mortais do Hamas em 7 de outubro de 2023 matou mais de 42 mil palestinianos, incluindo mais de 13.300 crianças, e feriu mais de 97 mil, até 7 de outubro de 2024, “muitos dos quais em ataques diretos ou deliberadamente indiscriminados, muitas vezes eliminando famílias inteiras com várias gerações”.

Esta ofensiva, destaca o documento, “causou uma destruição sem precedentes, que, segundo os especialistas, ocorreu a um nível e a uma velocidade nunca vistos em qualquer outro conflito no século XXI, arrasando cidades inteiras e destruindo infraestruturas críticas, terras agrícolas e locais culturais e religiosos. Deste modo, tornou inabitáveis grandes extensões da Faixa de Gaza”.

As condições de vida impostas por Israel em Gaza criaram, assim, aquilo que a Amnistia Internacional descreve como “uma mistura mortal de subnutrição, fome e doenças”, expondo os palestinianos que ainda subsistem a “uma morte lenta e calculada”. Além disso, Israel “submeteu centenas de palestinianos de Gaza a detenção em regime de incomunicabilidade, tortura e outros maus-tratos”, acrescenta o relatório.

Nos últimos dois meses, alerta a organização não governamental, “a crise tornou-se particularmente aguda na província de Gaza Norte, onde uma população sitiada enfrenta a fome, a deslocação e a aniquilação, no meio de bombardeamentos implacáveis e de restrições sufocantes à ajuda humanitária que pode salvar vidas”.

Perante este cenário, é preciso agir urgentemente, apela a Amnistia Internacional. “Os governos têm de deixar de fingir que são impotentes para pôr fim a este genocídio, que foi possibilitado por décadas de impunidade das violações do direito internacional por parte de Israel. Os Estados precisam de ir além das meras expressões de pesar ou consternação e tomar medidas internacionais fortes e sustentadas, por mais desconfortável que uma conclusão de genocídio possa ser para alguns dos aliados de Israel”, afirma Agnés Callamard.

Reconhecendo que os mandados de captura do Tribunal Penal Internacional contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o antigo ministro da Defesa Yoav Gallant por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, emitidos no mês passado, “oferecem uma esperança real de justiça há muito esperada para as vítimas”, a responsável assinala que é agora necessário que os Estados demonstrem “o seu respeito pela decisão do tribunal e pelos princípios universais do direito internacional, prendendo e entregando os procurados pelo TPI”.

Agnés Callamard deixa também um apelo ao Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional para que “considere urgentemente a possibilidade de acrescentar o genocídio à lista de crimes que está a investigar e para que todos os Estados utilizem todas as vias legais para levar os autores à justiça”. E acrescenta: “Não se deve permitir que ninguém cometa genocídio e permaneça impune.”

A Amnistia Internacional apela também à libertação incondicional de todos os reféns civis e à responsabilização do Hamas e de outros grupos armados palestinianos responsáveis pelos crimes cometidos a 7 de outubro. A organização pede ainda ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que imponha sanções específicas contra os responsáveis israelitas e do Hamas mais implicados em crimes à luz do direito internacional.