Ana Pires é uma cientista portuguesa cujo currículo nos permite pedir-lhe que nos ajude a ter uma ideia do que será o futuro nos próximos 10 anos na Terra, no mar e no espaço. Explicando melhor. É cientista convidada no Instituto Superior de Engenharia do Porto e investigadora no INESCTEC e tem um doutoramento em Geociências. Mas, voltemos, lá mais para trás. Quando era criança Ana Pires desejou ser astronauta por causa das histórias que a mãe e a irmã lhe contavam e que falavam de velhinhas na Lua, que olhavam para nós, humanos, lá de cima, do planeta-satélite da Terra.
Os anos passaram-se, Ana cresceu e, por influência do avô, acabou por escolher engenharia - a sua "grande paixão". E foi como engenheira que trabalho na área das geotecnologias e, depois disso, das tecnologias do mar. "No nosso laboratório, juntamente com os colegas da robótica, desenvolvemos robôs subaquáticos para trabalhar e explorar o mar e não só, também pedreiras inundadas, minas inundadas ...", conta.
Até que um dia resolveu concorrer ao projeto PoSSUM, um programa apoiado pela NASA. "Tentei a minha sorte e fui selecionada", é como descreve o processo que a levou a testar os seus limites, vestir um fato espacial e simular voos suborbitais. Uma experiência dura mas que não hesitaria em repetir, nomeadamente como pioneira na nova era de exploração do espaço que acontecerá nos próximos anos.
O facto de já ter simulado a sensação de estar no espaço e de ver a Terra a partir de lá muda a sua perceção do que é o planeta Terra?
Sim, muda – sendo que fique claro que nunca fui ao espaço. Nunca se sabe, estou a preparar-me para isso, gostava, se calhar estou mais preparada do que estava há uns anos, mas sim muda completamente. Há áreas na indústria espacial que nem tinha noção e que tive oportunidade de aprender. Por exemplo, a fisiologia humana e os sistemas de suporte de vida. Como engenheira e como investigadora, a curiosidade foi aumentando, isto é um vício. E, de facto, muda completamente a nossa perspetiva em termos de engenharia, em termos de tecnologia, e daquilo que podemos fazer.
Tendo formação de base na área da engenharia falou de biologia e de fisiologia. Olhando para a exploração espacial, o nosso desafio enquanto humanos é mais do lado da engenharia ou do lado da biologia e da fisiologia?
Eu sou engenheira geotécnica de base, portanto, a rocha está dentro de mim já há muitos anos e durante uma grande parte da minha vida a investigação foi ligada aos recursos geológicos ou geo-recursos, à geotecnia pura e dura. Mas, de facto, estes desafios são uma fusão das duas áreas. Se repararmos bem quando se fala nestas missões à lua, nas missões a Marte, estamos a falar de grandes missões, grandes períodos de tempo nestas missões, e há uma vertente tecnológica que passa por desenvolver sistemas de comunicação, mas depois também há a parte de sistemas de suporte de vida para preparar as pessoas que vão passar grandes temporadas no espaço.
Do ponto de vista das pessoas comuns que não são astronautas nem cientistas e que um dia poderão estar a habitar noutro planeta, terão necessidade desses suportes todos? Ou é possível que a ciência nos tenha encontrado um caminho em que não é necessária tanta preparação, por um lado, e tanto suporte tecnológico para estarmos fora do nosso planeta?
Provavelmente já não vai ser no nosso tempo, provavelmente já não vamos ver estas coisas que são dignas quase de um filme de ficção científica, mas acredito que sim, que um dia chegaremos lá. Se calhar os fatos espaciais quando fazemos uma atividade extra-veicular cá fora, com os seus sistemas de suporte de vida atrás, se calhar não vão ser necessários; se calhar vão ser fatos mais biónicos, mais leves e que nos preparam para fazer as mesmas atividades. Mas mesmo que sejam turistas espaciais, se calhar precisam de fazer treinos e daí às vezes o perigo desta história de querermos levar os turistas a fazerem um voo suborbital e a estarem durante 30 minutos em gravidade 0. Um astronauta passa um ano, dois, três anos da sua vida a preparar-se para isto.
Falando da sua experiência mais em concreto, o que é que lhe custou mais no treino de astronauta?
Usar o fato espacial não é fácil, a primeira sensação é um bocadinho de claustrofobia, estarmos ali fechados, porque o fato tem muitas componentes, desde as luvas às botas; depois está continuamente a ser bombeado com pressão e o oxigénio e tudo aquilo faz um bocadinho de impressão no início. Mas depois a emoção é tão extraordinária e é tão incrível que nos esquecemos e conseguimos fazer as atividades a que nos propomos.
Quanto tempo é que ficava com o fato vestido?
As pessoas não têm noção, mas só para vestir o fato demora cerca de 45 minutos, mais ou menos. Temos uma pinça ao lado da nossa máscara e do nosso capacete e vamos compensando a pressão nos ouvidos, vamos testando a comunicação, vamos colocando as luvas, portanto, tudo tem de estar preparado até irmos para o simulador cerca de 45/50 minutos.
Quanto tempo é que dura o voo?
Este voo demora mais ou menos cerca de 30 minutos, é o tempo de subirmos até à mesosfera, estarmos um minuto a fazermos a nossa experiência, colocarmos a sonda cá fora, recolhermos as amostras, recolhermos novamente a sonda e entrarmos novamente em queda livre na nossa atmosfera.
Portanto, é o que acontece nos voos suborbitais normais?
Normais, mais ou menos. Aquilo que vimos, no final de 2018 a Virgin Galactic fazer, é um voo suborbital. É isso que a Virgin Galactic pretende fazer: colocar astronautas no espaço através de um voo suborbital, ir até à mesosfera que é o limite entre a nossa atmosfera e o espaço.
A quantos quilómetros?
Há uma grande discussão entre cientistas, mas vamos dizer mais ou menos cerca de 90 quilómetros. É aí que eles voam, ficam durante 20 minutos a sentir a gravidade zero e voltam a entrar em queda livre novamente para a nossa atmosfera.
O que é que a mesosfera tem de especial para que estas viagens tenham interesse científico?
A mesosfera é muito importante, porque dá-nos pistas não só em termos de alterações climáticas, quando estudamos as nuvens noctilucentes que são as nuvens que brilham nesta camada em determinadas alturas do ano, mas também para as reentradas das naves-espaciais.
Separe só as duas coisas. Em primeiro lugar, estas nuvens noctilucentes o que é que são?
São nuvens, assim de uma forma muito vulgar, que de facto brilham. A NASA em conjunto com o projeto PoSSUM lançou um balão para angariar e fazer recolha de dados na mesosfera para tentar perceber dados de temperatura que podem ser úteis para perceber o tipo de atmosfera, o tipo de ambiente, porque é muito semelhante àquilo que poderemos encontrar na Lua e em Marte. Por estarmos no limite entre o espaço e a Terra, é também importante. Quando fala com verdadeiros astronautas, o que mais dizem é que é muito difícil a entrada no espaço e a reentrada, quando voltam para a Terra, em termos de pressão. Estudar a mesosfera em termos geocientíficos e atmosféricos é importante, precisamente para tentar perceber como minimizar estas reentradas e como é que poderemos melhorar a própria nave espacial.
“Queria ser astronauta porque a minha mãe e a minha irmã contavam histórias da lua e diziam que havia velhinhas a olhar para nós”
Sempre quis ser astronauta quando era pequenina?
Acho que passei por essa fase sim. Passei por várias fases, quis ser professora primária, depois passei por uma fase de facto em que queria ser astronauta porque a minha mãe e a minha irmã contavam histórias da lua e diziam que havia velhinhas a olhar para nós. Por influência do meu avô, acabei por seguir engenharia e ainda bem que o fiz, porque de facto é a minha grande paixão, mas nunca me passou pela cabeça estar ligada tão diretamente e a trabalhar com colegas ligados à indústria espacial. Sou investigadora há muitos anos, trabalhei na área das geotecnologias e, mais recentemente, das tecnologias do mar. No nosso laboratório, juntamente com os colegas da robótica, desenvolvemos robôs subaquáticos para trabalhar e explorar o mar e não só, também pedreiras inundadas, minas inundadas. Tentei a minha sorte e foi quando fui selecionada, e ainda bem.
Olhando para as duas áreas onde tem estado envolvida, o mar e o espaço, aquilo que é mais parecido entre ambos é o desconhecido. Onde é que sabemos menos, no mar ou no espaço?
É verdade, é um denominador comum o desconhecido. Outro é também o facto de serem ambientes extremos, que é algo que nos inquieta e nos suscita curiosidade. No caso do mar, se pensarmos bem, apenas três pessoas desceram até às profundezas do mar, até cerca de 10/12 quilómetros, só três é que exploraram o fundo do mar. No espaço, estamos a falar de mais de 12 astronautas que foram até à Lua e umas dezenas que já foram até ao espaço e que fazem o seu trabalho científico na estação internacional espacial. Não há um mais desafiante que o outro, são os dois muito desafiante. E, se calhar, interligam-se, porque nesta interação espaço-Terra-espaço-mar há muita coisa que fazemos em termos de investigação no mar que poderá ser útil para o espaço e vice-versa.
Desde há uns anos, olhamos para o espaço como uma alternativa à vida na Terra. Acredita que esse horizonte é um horizonte fazível ou alcançável nos próximos 10 anos?
Costumo dizer que temos os pés bem assentes na terra, se calhar nos próximos 10 anos não. Os próximos 10 anos vão ser muito desafiantes em termos tecnológicos, em termos de engenharia, em termos de exploração para tentar perceber como é que podermos habitar a Lua, habitar Marte. Vão ser anos desafiantes e cruciais, talvez não por uma necessidade, não porque a Terra vai desaparecer, mas pela curiosidade, porque é algo que é intrínseco à humanidade.
Se hoje fosse possível, oferecer-se-ia para ser uma dessas pioneiras?
Sem hesitar. É evidente que será muito difícil ir ao espaço, mas acredito que um dia um português há de ir, um jovem que se esteja a preparar hoje em dia, atualmente, e que um dia há de ser o primeiro português ou primeira portuguesa a ir à Lua ou ir até Marte.
“O grande desafio é perceber qual é o limite do corpo humano”
Quais são os principais obstáculos que precisamos de vencer para conseguir essa permanência no espaço de forma mais continuada?
Para mim, o grande desafio passa pela habituação do corpo humano à radiação, daí nós termos cada vez mais os astronautas mais tempo na estação internacional espacial para tentar perceber qual é o limite do nosso corpo humano. E passa por desenvolver tecnologia para minimizar estes efeitos da radiação, mas principalmente, em termos de sistemas de suporte de vida.
“Isto é uma guerra tecnológica de quem vai gastar os milhões para conseguir rapidamente pôr a primeira pessoa em Marte”
Durante o século XX assistimos a uma evolução que foi significativa para a humanidade. Atingimos um marco que foi a chegada à Lua, mas ao longo do século XX, na verdade, a exploração do espaço foi lenta. O que é que fez acelerar nos últimos 10 anos a forma como estamos a explorar o espaço?
Se pensarmos bem, estivemos a festejar e ainda estamos no rescaldo dos 50 anos da Apolo. Eu não vivi isso. Estamos a viver uma nova era, ainda por cima para Portugal com a recente agência portuguesa espacial, a Portugal Space. A história diz-nos que vivemos uma guerra entre nações para a exploração espacial, e agora eu vejo 50 anos depois uma guerra não entre nações, mas entre multimilionários e estamos todos ansiosos por ver qual será o resultado, qual será o primeiro multimilionário que vai conseguir pôr alguém na Lua ou fazer uma missão a Marte ou ir ao espaço. Isto é uma guerra tecnológica de quem vai gastar os milhões para conseguir rapidamente pôr a primeira pessoa em Marte.
“Quase que temos soluções low cost para resolver problemas que há uns anos eram investimentos de milhões”
Já vamos falar de Elon Musk, Richard Branson e mais alguns, mas o que mudou as regras do jogo foi o facto de hoje, por exemplo, ser muito mais barato colocar um satélite no espaço? De haver empresas tecnológicas nomeadamente startups que em vários níveis foram desenvolvendo tecnologias que tornaram tudo isto mais acessível? Ou há mais alguma coisa além disto?
Isto deve-se a um grande investimento científico que levou a uma evolução tecnológica, quase que temos soluções low cost para resolver problemas que há uns anos eram investimentos de milhões. Estamos a falar de satélites, de microssatélites, não são missões com humanos, são missões que podem levar experiências, payloads, experiências científicas, colocar satélites, redes de comunicação no espaço. Pode não ser tão problemático em termos de risco humano, mas estes milhões que estão a ser gastos por estes multimilionários é com o sentido de colocar humanos e aqui o risco que vejo é na preparação nesta corrida muito rápida de quem vai ser o primeiro e que poderá passar por não termos as pessoas bem preparadas para estar no espaço.
Olhando para os multimilionários. Temos o caso do Elon Musk e da SpaceX. Temos há mais tempo o Richard Banson com o turismo espacial, foi provavelmente a primeira vez, do ponto de vista mais do cidadão comum, que ouvimos falar de um empresário mundialmente conhecido a querer levar pessoas para o espaço. E temos também o dono da Amazon, Jeff Bezos, que neste momento quer construir inclusive fabricas no espaço. É muito dinheiro para gastar para conseguir ter algum controlo sobre o espaço. Esta pergunta é menos para a cientista, mais para a cidadã, que presumo também se interesse por estes temas, a quem é que pertence o espaço? Quem é o dono do espaço?
Eu acho que neste momento se calhar a resposta correta é de quem o reivindicar, mas é evidente que já pensei muitas vezes nisso. Se calhar daqui a muitos anos, provavelmente já não vai ser no nosso tempo, vai ter de haver jurisdição. Vão ter de haver leis da humanidade em conjunto, tal como fez para o mar, para a navegação, para nos regermos. Para já o espaço não pertence a ninguém, mas, como vê, isto assusta um bocadinho quem vê as notícias todos os dias, porque começamos a ver nomes que estão na iminência de se reivindicar como donos do espaço. O espaço não pertence a ninguém, mas vamos ter de pensar no ordenamento do espaço, muito provavelmente a humanidade vai ter de sentar os países, os líderes dos países, e pensarem se calhar numa lei para todos nos regermos. Estou a imaginar Marte com várias colónias de vários países, com várias missões, com vários propósitos, mais científicos, mais turísticos, quase um filme, uma odisseia no espaço que é incrível de imaginar, mas se calhar está muito mais perto do que o que nós imaginávamos.
Dentro dessa lógica de que hoje em dia o espaço é de quem o reivindicar e quem o está a reivindicar neste momento é quem tem mais poder financeiro, sendo que ao mesmo tempo temos cada vez mais pessoas a trabalhar em temas ligados ao espaço, quer na área da engenharia, na área das ciências, tecnologias. O espaço vai tornar-se mais democrático ou mais elitista?
Numa fase inicial estamos a sentir que é mais elitista, porque se a Rute tivesse dinheiro e eu tivesse dinheiro íamos as duas ao espaço e podíamos levar as experiências que quiséssemos, poderíamos experienciar e fazer investigação no espaço como quiséssemos. Neste momento é mais elitista, mas julgo que daqui a uns anos provavelmente vai democratizar-se.
“Temos um potencial enorme em Portugal, não só de investigadores, mas de empresas”
Nessa democratização, Portugal tem um papel a desempenhar? Ou seja, com o conhecimento que existe neste momento no país, nomeadamente a nível da investigação, acha que Portugal pode ser um país com algum peso nesta nova etapa de exploração do espaço?
Não tenho dúvidas nenhumas. Temos um potencial enorme em Portugal, não só de investigadores, mas de empresas. Daqui a uns anos Portugal vai estar no mapa e vai ser um dos potenciais países, se calhar quem sabe até preparar uma missão até com humanos. Para já estamos a falar da construção de um porto espacial nos Açores, estamos a falar de lançamentos de satélites e microssatélites. Julgo que vamos ter uma palavra e vamos de certeza fazer coisas fantásticas nesta área.
Há um risco de militarização do espaço?
Penso que sim, está tudo encadeado. Quase estamos a escrever um filme de ficção científica, porque repare, no momento em que alguém reivindicar o espaço, no momento em que a humanidade tiver de se sentar e de facto pensar em criar leis, em criar um ordenamento do espaço, vamos ver se calhar militares a fazer com que essas leis sejam aplicadas. Não é no sentido de haver guerras, mas no sentido de se fazer aplicar a lei espacial. Apesar de vermos estes multimilionários quase numa corrida, numa guerra, para ver quem há de chegar primeiro ao espaço, quem há de ser o primeiro a colocar o pé em Marte, isto também é uma corrida e uma concorrência que faz com que desenvolvam mais rapidamente em termos tecnológicos, que cheguem lá rapidamente. É outro tipo de guerra.
Acredita que algures por aí há vida inteligente? Que há outra vida que não apenas aquela que conhecemos na Terra e nomeadamente outras espécies que não apenas as que conhecemos até hoje?
Se não pensássemos isso nunca teríamos ido à Lua, porque é isso que nos faz explorar e querer navegar.
É essa é razão principal para nós irmos para fora do nosso planeta?
É tentarmos perceber se há vida noutros planetas, se há outro tipo de seres. Penso que o facto de querermos saber se há vida no espaço e não sermos os únicos neste universo que é tão grande, é isso que nos incentiva a querer explorar.
E acredita que existe?
Eu acredito que sim, eu gosto de acreditar que sim.
Até porque pareceria um bocadinho estranho num universo tão grande não haver mais nada.
Sim, seria estranho sermos os únicos. Nós vivemos os 50 anos da Apolo, mas também estamos a viver os 500 anos da circunavegação, e se pensarmos há 500 anos se os navegadores portugueses pensassem o mesmo e dissessem “não existe mais nada a não ser Portugal”, se calhar não navegavam até outras terras. Julgo que é isso que motiva o humano, é esse o principal fator, a curiosidade, o querer saber se de facto não haverá mais nada para além da Terra e para além de nós próprios.
Provavelmente não vamos saber nos próximos 10 anos, mas vamos esperar para saber o que aí vem.
Uma coisa sei: é que nos próximos 10 anos vamos viver de certeza momentos incríveis e vão ser cruciais para aquilo que se segue, se calhar não vai ser neste nosso tempo, mas de certeza que estes 10 anos vão ser cruciais para aquilo que se segue.
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