
Em causa está uma situação que remonta ao ano de 2022, quando os Anjos interpretaram o hino nacional, 'A Portuguesa', numa prova do MotoGP no Autódromo Internacional do Algarve. Pouco depois desse evento, a humorista decidiu fazer uma piada em torno da atuação. “Será que foi para isto que se fez o 25 de Abril?”, escreveu Joana Marques na legenda de um vídeo que partilhou na rede social Instagram e no qual intercalava a atuação dos Anjos com imagens do júri do programa de talentos da SIC “Ídolos”, do qual fazia parte naquela altura.
Com base nos alegados impactos dessas imagens, os irmãos Rosado e duas empresas que os representam exigem uma indemnização de 1 milhão e 118 mil euros. De acordo com a revista BLITZ, as primeiras audiências estão agendadas para 17 e 18 de junho.
Mas, afinal, o que leva alguém a levantar um processo devido a um vídeo publicado no Instagram? No passado dia 31 de março, Sérgio e Nelson Rosado estiveram no programa "Dois às 10", da TVI, para esclarecer publicamente os motivos do processo judicial, nomeadamente danos causados às suas carreiras e vidas pessoais e às de outros profissionais que consigo trabalham na indústria musical.
"A Joana Marques não está a ser processada por nós e por mais duas empresas por uma piada. Está a ser processada porque adulterou, manipulou, uma informação digital e com isso gerou danos", afirmou Nelson Rosado, deixando claro que este processo não se limita a uma questão de humor, mas envolve também prejuízos concretos para a equipa dos Anjos.
"Nós sentimos uma onda de ódio, um discurso de cyberbullying que nós só ouvimos dos outros, parecia um filme, desde ameaças de morte, a nós e aos nossos", revelou Nelson Rosado. "Estavam a cancelar[-nos] trabalho precisamente por causa disso. Não faz sentido nenhum. Aquilo alavancou", reforçou depois Sérgio Rosado.
Ainda acerca dos prejuízos causados, Sérgio Rosado destacou o impacto devastador que a situação teve nas suas vidas pessoais e, inclusivamente, da família, nomeadamente da filha, na altura, de nove anos. "Sofreu bullying na escola. Como é que vais justificar a uma miúda que o pai e o tio, se calhar — porque isso falou-se — podiam ir presos?".
Nesta entrevista, Sérgio e Nelson explicam que, após a publicação do vídeo por Joana Marques, houve a tentativa de um contacto com a humorista com o objetivo de explicar "o que verdadeiramente tinha acontecido (…), a questão dos concertos cancelados", mas sem sucesso. Depois, foi enviada uma carta registada em que a humorista se defendeu com o direito à liberdade de expressão.
"Enviámos outra carta registada, agora já das advogadas, onde voltaram a explicar uma vez mais o que é que tinha sucedido e que o vídeo dela tinha sido adulterado. Aí já não respondeu e fomos obrigados a meter isto em tribunal", diz Nelson Rosado.
Contactado pelo SAPO24, o advogado Luís Mesquita, sócio da Albuquerque e Almeida Advogados, esclarece que um vídeo publicado numa rede social como o Instagram, como é o caso, "pode ser contra a lei". "De um modo geral, a publicação de um vídeo numa rede social pode ser contrária à Lei, dando azo a uma acção judicial, sempre que traduzir uma violação de direitos fundamentais ou direitos de personalidade. Será, particularmente, o caso dos direitos à imagem, ao bom nome, à reputação ou à reserva da intimidade da vida privada de terceiros. A publicação de conteúdos em redes sociais será também ilegal se implicar a violação de direitos de autor".
No caso do vídeo partilhado pelos Anjos, a humorista partilhava conteúdos disponíveis publicamente pela própria organização da prova desportiva no Autódromo Internacional do Algarve. Nestes casos, Luís Mesquita sublinha que podem estar em conflito duas situações possíveis: "se esses conteúdos estiverem protegidos por direitos de autor, a manipulação e divulgação dos mesmos por terceiros sem autorização do autor é, por regra, proibida. Já se o conteúdo em questão não estiver protegido por direito de autor, a utilização do mesmo, por terceiros, para editar e publicar vídeos já será lícita, exceto se implicar a violação de direitos fundamentais ou direitos de personalidade".
No caso concreto que leva Joana Marques e a dupla a tribunal, pode haver consequências — mas tudo depende das "circunstâncias concretas". "A finalidade humorística do vídeo pode, em abstrato, ser alegada como forma de demonstrar que o propósito do mesmo não foi o de ofender terceiros, desde que essa finalidade resulte evidente para quem assiste ao dito vídeo. E daí poderá resultar uma atenuação ou um afastamento da ilegalidade", garante o advogado.
Quais os limites da liberdade de expressão de um humorista no espaço digital?
Na segunda-feira, 24 de março, Júlia Pinheiro abriu as portas do seu programa 'Júlia' a Joana Marques, Inês Lopes Gonçalves e Ana Galvão, protagonistas do programa "Três da Manhã" na Rádio Renascença.
Entre vários temas, Joana Marques foi questionada sobre o processo judicial movido pela dupla de músicos e respondeu com humor, sem mostrar grande preocupação. "A maioria das pessoas acha que é pelo ‘Extremamente Desagradável’, eu percebo, que é o mais óbvio de ser. Mas foi só mesmo uma piada no Instagram. Mas sim, agora em junho teremos o julgamento e logo se vê", esclareceu.
Recorde-se que já em janeiro passado Joana Marques brincou com a situação no podcast “Extremamente Desagradável”, que apresenta, dizendo “o meu desejo é que chegássemos à sala de audiências e o juiz fosse o doutor Hélder Fráguas. No fundo, eu queria que a minha sentença fosse lida pelo meritíssimo de ‘A Sentença’”, afirmou, referindo-se ao magistrado de um programa de televisão da TVI.
No caso do humor partilhado legalmente nas redes sociais, a "limitação geral que se impõe à liberdade de expressão corresponde à violação de direitos de terceiros, designadamente os direitos fundamentais e direitos de personalidade", volta a esclarecer Luís Mesquita.
"Contudo, essas limitações à liberdade de expressão poderão ser atenuadas em função da pessoa visada pelos conteúdos em questão (por exemplo, uma figura pública ou que exerça cargos públicos está, por natureza, mais sujeita à crítica e ao escrutínio), ou em função da finalidade desses conteúdos. Neste último caso, pode defender- se que a liberdade de expressão será mais ampla sempre que uma determinada publicação tenha uma finalidade informativa (caso dos jornalistas) ou humorística (caso dos humoristas). Mas mesmo nesses casos a liberdade de expressão não é ilimitada. A específica medida destas limitações é alvo de debate e, como tal, difícil de definir em abstrato", refere.
Os Anjos podem alegar danos patrimoniais diretamente relacionados com o vídeo publicado por Joana Marques?
A dupla de cantores alega que, com base nos alegados impactos do vídeo partilhado pela humorista, tiveram danos patrimoniais no valor de 1 milhão e 118 mil euros, nomeadamente pelo cancelamento de concertos e presenças em Portugal e no estrangeiro devido ao impacto da polémica. Mas como provar estes danos?
O advogado esclarece que "não há um consenso absoluto sobre os pressupostos para se afirmar que um ato (ilícito) causou um determinado dano, no âmbito do regime da responsabilidade civil. Trata-se do designado 'nexo de causalidade', tema muito debatido. Segundo o entendimento maioritário, e de modo muito conciso, haverá um nexo causal relevante sempre que o ato em questão se considere adequado ou apto, tanto em abstrato como em concreto, para produzir o dano invocado pelo lesado. Ou numa formulação negativa: não haverá nexo de causalidade sempre que se demonstrar que o ato praticado foi indiferente para a produção do dano em causa".
Assim, "as partes podem socorrer-se de quaisquer meios de prova para demonstrar o dano e o nexo causal. Além desses meios de prova, o tribunal deve ainda ter em conta as regras da experiência comum – o que é normal acontecer – para concluir pela verificação, ou não, de um nexo causal relevante".
A dupla de cantores refere-se ao cancelamento de eventos que, no momento de publicação do vídeo, ainda não tinham acontecido. Porém, é na mesma possível alegarem em tribunal que perderam oportunidades de trabalho devido a consequências da partilha de Joana Marques, "desde que se demonstre o nexo de causalidade". "Nesses casos fala-se em 'danos futuros'. Para que os danos futuros sejam indemnizáveis, devem ser concretamente previsíveis e não meramente hipotéticos. Cabe ao lesado comprovar essa previsibilidade", sublinha Luís Mesquita.
E relativamente ao bullying, pode um humorista ser responsabilizado pelas reações individuais de quem vê um vídeo?
A dupla de cantores alega que o vídeo provocou bullying nas redes sociais e até ameaças de morte dirigidas aos próprios e aos seus familiares. Nestes casos, o advogado sublinha que, "de um modo geral, é difícil responsabilizar uma pessoa por atos praticados por terceiros".
"Apenas haveria lugar a essa responsabilização em casos excecionais, em que se demonstre que determinada pessoa incitou ou persuadiu ativamente terceiros a praticar os atos considerados lesivos", aponta Luís Mesquita. Ou seja, a responsabilidade de atos de bullying ou ódio digital é "unicamente imputável a quem diretamente os pratica", pelo que neste caso seriam os outros utilizadores das redes sociais ou quem, ao encontrar o vídeo, tiver uma reação menos positiva para com os cantores, a sua equipa ou a sua família.
Qual a importância do futuro deste caso?
Este não é o primeiro caso em que alguém processa um humorista em Portugal, nem será certamente o último. Porém, é um caso com características específicas, quer pelo valor pedido pela dupla de cantores, 1 milhão e 118 mil euros, quer pela particularidade do conteúdo que aparentemente causou danos: um vídeo na rede social Instagram e não uma rubrica humorística, um programa de televisão ou uma crónica publicada na imprensa escrita ou digital.
Para o advogado Luís Mesquita, em termos estritamente jurídicos, a decisão que vier a ser tomada neste processo (como em qualquer outro processo do mesmo género) "não vincula os tribunais a decidir do mesmo modo em processos semelhantes que venham a ser instaurados posteriormente".
Porém, em termos práticos, "a decisão que vier a ser tomada neste caso, qualquer que seja o respetivo conteúdo, pode vir a servir de referência para a apreciação de casos posteriores, sobretudo se estiver bem fundamentada. Além disso, é evidente que as decisões dos tribunais, sobretudo as que vêm a público, têm influência na conduta das pessoas que se encontrem em situações semelhantes", sublinha.
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