Discursando em Aachen, Alemanha, após receber o prémio internacional Carlos Magno pela sua defesa do modelo europeu de sociedade, do pluralismo, tolerância e diálogo, Guterres insistiu na necessidade imperiosa de uma agenda multilateral “nestes tempos de grande ansiedade e desordem geopolítica”.
E argumentou que a União Europeia tem uma responsabilidade acrescida na sua defesa, até por ser “pioneira, mas também um posto avançado do multilateralismo e o primado do direito”, valores cada vez mais postos em causa nos dias de hoje.
“Como secretário-geral das Nações Unidas, nunca senti tão claramente a necessidade de uma Europa forte e unida”, disse.
Guterres apontou que o mundo enfrenta atualmente “três desafios sem precedentes” que agravam os riscos de confrontação e exigem respostas vigorosas: as alterações climáticas – que classificou como sendo “hoje uma questão de vida ou morte” -, a demografia e migrações, e a era digital.
“O multilateralismo está sob fogo precisamente quando dele mais precisamos, e quando nunca foi tão adequado para fazer face a todos os desafios”, defendeu.
Apontando que “a UE constitui uma experiência única em soberania partilhada”, António Guterres comentou que se desenha atualmente “uma nova ordem mundial, com destino ainda desconhecido”, razão pela qual “o mundo parece hoje caótico”, e para uma nova ordem mundial multilateral é essencial uma Europa forte e unida.
“Mas mesmo que acabemos por ter um mundo multipolar, tal não é por si só uma garantia de segurança e paz comum”, disse, acrescentando que basta recordar a História antes da I Guerra Mundial, quando, “sem um sistema multilateral na época, uma Europa multipolar não foi capaz de evitar dois conflitos mortíferos”.
“Por tantas razões, e talvez um toque de saudade, gostaria que a Europa pudesse defender de uma forma mais decisiva a agenda multilateral. As Nações Unidas precisam de uma Europa forte e unida”, afirmou, advertindo “nunca as instituições do pós-guerra mundial e os seus valores subjacentes estiveram tão erodidos e colocados à prova” como hoje.
O secretário-geral da ONU enfatizou que os conflitos se tornaram “mais complexos e interligados do que nunca, produzem violações horrendas da lei humanitária internacional e abusos dos direitos humanos”.
“As pessoas foram forçadas a fugir de suas casas numa escala que não se via há décadas. E com as portas de um abrigo fechadas. Os princípios democráticos estão sitiados e o Estado de direito está a ser enfraquecido. As desigualdades estão a aumentar. O discurso de ódio, o racismo e a xenofobia estão a incitar o terrorismo através das redes sociais”, alertou.
Defendendo que “tanto as Nações Unidas como a UE são um legado dos valores do Iluminismo”, na sua opinião “o mais importante contributo europeu para a civilização mundial”, António Guterres afirmou que aquilo a que se assiste hoje na cena mundial, com o ressurgimento de “paixões nacionalistas, populistas, étnicas e religiosas”, é “a negação do Iluminismo”.
“Tendo crescido sob a ditadura de Salazar, testemunhei o verdadeiro valor da liberdade. Como antigo Alto Comissário da ONU para os Refugiados, durante 10 anos, vi as cicatrizes da deslocação e desenraizamento. E a História consolidou a minha forte convicção de que essas tragédias apenas podem ser evitadas através da prevenção de conflitos e desenvolvimento através da cooperação internacional”, afirmou.
Para tal, o mundo precisa mais do que nunca “dos dois maiores projetos de paz dos nossos tempos, as Nações Unidas e a União Europeia”, sustentou.
“Como secretário-geral das Nações Unidas, não tenho outros poderes senão a persuasão e o apelo à razão. Posso assegurar-vos que darei sempre o meu melhor na defesa apaixonada dos valores do pluralismo, da tolerância, do diálogo e do respeito mútuo par construir um mundo de paz, justiça e dignidade humana”, declarou, em português, no encerramento do seu discurso.
António Guterres é o primeiro português a receber o prestigiado prémio internacional, atribuído desde 1950 a personalidades que tenham contribuído para a unidade do continente europeu, e que no passado já distinguiu figuras como Winston Churchill, Robert Schuman, Jacques Delors, Bill Clinton, Jean-Claude Juncker, Angela Merkel e os papas Fancisco e João Paulo II.
Na cerimónia de entrega do prémio participam, entre outros, o primeiro-ministro, António Costa, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e o Rei de Espanha, Felipe VI, a quem coube o discurso laudatório.
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