“Só tenho de pena que sejas uma mulher, se fosses um homem tudo seria mais fácil”, dizia-lhe o pai a caminho da escola. “Olhem aqui para a minha ciganinha, é tão bonita que não parece cigana”, repetia a professora primária às colegas, a julgar que se tratava de um elogio. Entre estes dois mundos crescia Sónia Matos.
Quando completa 10 anos, o equilíbrio altera-se e um dos lados ganha mais peso que o outro. “No quarto ano a minha rotina mudou. A professora para me incentivar dizia ‘se tu não te aplicas, não passas’. Entretanto, já estava desmotivada, já sabia que era o meu último ano na escola. A minha mãe tinha tido uma bebé pequenina e eu andava maluca com a minha irmã. Para mim era uma bonequinha. Então disse: ‘olha mãe, a professora diz que eu já não passo, já não vou no último mês'. E pronto. Foi assim que saí da escola”.
Longe das salas de aula, a infância de Sónia, tal como a de muitas meninas ciganas, é desenhada com os lápis da tradição. “Quando terminamos a quarta classe, retiram-nos da escola para nos prepararmos para sermos mães, esposas e domésticas. O mesmo que exigiam à mulher da comunidade maioritária há 40 anos atrás”. Assim, Sónia começa então a aprender as tarefas de casa, bem como a tomar conta dos irmãos mais novos. Nos tempos livres, encontrava as amigas na rua - que temporariamente se transformava num campo de futebol ou num palco de competição de saltos à corda.
Com o passar da idade e a adolescência a florescer, as brincadeiras mudam. “Com 15 anos, as minhas amigas começaram a receber pedidos de noivado e eu não me sentia preparada para casar”. Ainda que já soubesse de cor os afazeres que uma casa exigia, Sónia procurava qualquer coisa diferente. “Comecei a juntar todos os tostõezinhos que me sobravam das compras do almoço para comprar livros, o que me permitia entrar noutro mundo, num mundo imaginário”.
Quando as primeiras inquietações se misturam com a vontade de ler dá-se, finalmente, o clique: “Comecei a questionar porque é que os rapazes podiam tudo e as raparigas não podiam estudar. Eu queria ter um trabalho, ter autonomia, poder escolher aquilo que queria ser, sem deixar de ser cigana. Isto abriu uma batalha dentro de mim”.
"O meu percurso escolar foi acompanhar o percurso escolar do meu irmão."
No verão, Sónia deixava a rotina por umas semanas para ir visitar os avós no Alentejo, e é também nas brincadeiras do tempo de meninice que conhece Alzinda Caramelo. “Éramos amigas de infância. Eu vivia no Alentejo e brincávamos lá. Depois vim também para o Seixal porque no Alentejo só havia feira de mês a mês e cá o negócio era melhor”, lembra Alzinda, que também deixou a escola no quarto ano.
Entre os seis irmãos — três rapazes e três raparigas — era tratada como a “menina” por ser a mais nova das meninas. Ainda que as lides domésticas recaíssem primeiro sobre as raparigas mais velhas, cedo Alzinda ficou encarregada de tomar conta do percurso escolar do irmão mais novo. “Todos os dias levantava-me, arranjava o meu irmão, dava-lhe o pequeno-almoço e levava-o à escola. Voltava para lhe levar o lanche, porque ele era o menino, e para o ir buscar para o almoço. O meu percurso escolar foi acompanhar o percurso escolar do meu irmão”.
Aos 22 anos, por ser beneficiária do Rendimento Social de Inserção, conhece uma assistente social que ousa perguntar: “E tu, Alzinda, o que gostavas de fazer?”. Surpreendida com a pergunta, que lhe tinha sido colocada pela primeira vez, confessa que sonhava “trabalhar, subir a escolaridade, tirar a carta, ser independente, e conseguir fazer algo que deixasse marca para outras mulheres”.
“Tinha outra prioridade. Empoderar-me e empoderar outras mulheres.”
Também Maria Noel Gouveia, ao contrário do que seria esperado pela comunidade, não fantasiava com o dia do casamento. “Tinha outra prioridade. Empoderar-me e empoderar outras mulheres”. Depois de, como as outras, ter sido retirada da escola no quarto ano de escolaridade, Noel ia treinando a leitura — e a imaginação — com os ‘calhamaços’ que faziam o lugar de amigos.
“Adorava ler. Sempre que podia ia à biblioteca, ou pedia livros às minhas vizinhas. Elas queriam-me oferecer vestidos mas eu pedia-lhes romances”. O gosto pela leitura tinha sido herdado da mãe, Olga Mariano, que, já em pequena, nos anos 1950 e 60, lia os “livros das meninas ciganas”, como os do espanhol Carlos de Santander. “Não íamos buscar outro tipo de leitura”, assegura.
Quando atravessava um período de luto pela morte do marido, com três crianças para cuidar, Olga não se pode resguardar na casa dos pais durante o primeiro ano de luto — como é costume na cultura cigana. Levantava-se, então, todos os dias para vender nas feiras, onde “tanto podia fazer 5 euros ao dia como 40”.
Contudo, ao contrário da maior parte das mulheres, Olga deslocava-se no próprio carro. “Fui a primeira mulher cigana em Portugal a ter a carta, nos anos 60”. Na altura, como os irmãos mais velhos já viviam nas suas casas e o pai precisava de ajuda na correria entre as feiras, calhou a Olga o “privilégio” de ter a carta, uma miragem para outras mulheres ciganas na altura.
No princípio do novo milénio, Sónia Matos e Alzinda Caramelo encontram-se com Maria Noel Gouveia e Olga Mariano. Foram chamadas a fazer testes para a integração do curso de mediação sociocultural. “O curso era administrado pelo centro de Estudos e Migrações. Era destinado a pessoas que recebiam o Rendimento Social de Inserção, como nós, e houve uma grande seleção. Nós acabámos por entrar todas para o curso, porque tivemos notas muito boas”, conta Noel.
O curso tinha a duração de um ano e ocupava todos os dias de semana, das nove da manhã às cinco da tarde. Tratou-se de uma questão de tempo até estas mulheres se começarem a destacar. “Fomos todas para o curso com a auto estima [educacional] baixa, porque o nosso percurso era completamente diferente do resto das pessoas que lá estavam, mas nós tínhamos sempre das melhores notas”, conta Alzinda.
Com a consciência de que o curso podia mudar o rumo das suas vidas, abraçaram, com um empenho e interesse ímpares, todas as atividades propostas. “Esta foi a única oportunidade que me deram e eu tive de a agarrar”, conta Noel. “O curso era muito importante para nós, meninas solteiras ciganas, que até então não tinham voz e não podiam sonhar mais ou ambicionar mais do que trabalhar em casa”, acrescenta Sónia.
Na comunidade cigana, as mulheres são tratadas como uma flor: sempre recatadas, sempre protegidas e sempre acompanhadas. Mas nunca com nome próprio.
Depois de 6 meses de aulas, o professor Bruno, “que tinha um estilo assim meio hippie”, apercebeu-se de que o curso podia ser só o início para estas mulheres. Lançou-lhes um desafio: “Vocês, que são mulheres com tanta garra e com faixas etárias diferentes, porque é que não se lançam e criam uma associação?”.
Todas com “20 e poucos anos”, à exceção de Olga, nunca sequer tinham ouvido falar de algo parecido. “Para nós foi muito estranho. Na altura nem sabíamos o que era uma associação, tão pouco para o que servia”. Por outro lado, não restavam dúvidas de que todas queriam o mesmo: “ser mulheres autónomas, independentes, com estudos, e permitir que as outras mulheres também o fossem”, conta Noel. “Um dia reunimo-nos e começámos a pensar que podia ser possível termos uma associação. E assim nasceu a AMUCIP, a primeira associação para o desenvolvimento das mulheres ciganas portuguesas”.
Desde o primeiro dia, conta Alzinda, a prioridade era trabalhar com as mulheres e as crianças. “As crianças porque são o futuro, e as mulheres porque precisamos de dar o grito” — grito que não implica o rompimento com a cultura cigana.
Pelo contrário, todas tecem elogios ao que, segundo elas, a sua cultura tem de melhor, como o respeito pelos mais velhos e pelas crianças, a honra do nome e o valor da palavra, o respeito pelas leis de apaziguamento — feitas pelos homens mais velhos, considerados sábios e honestos — e a preservação dos laços familiares fortes. Contudo, reconhecem também a atitude profundamente patriarcal e machista que têm de enfrentar. Na comunidade cigana, as mulheres são tratadas como uma flor: sempre recatadas, sempre protegidas e sempre acompanhadas. Mas nunca com nome próprio.
Perante o contexto castrador de que eram alvo, urgia empoderar, dar força, às mulheres ciganas, pondo-lhes nas mãos as ferramentas para serem aquilo que quisessem, sem que isso implicasse deixar de fazer parte da comunidade. Era esta uma das principais bandeiras no plano de atividades da associação que, durante cinco anos, foi trabalhado e discutido nas reuniões que tinham lugar no porta bagagens de cada uma. A vontade férrea de ajudar outras mulheres não vergava, porém, confessa Olga, enquanto estivessem confinadas a este “escritório alternativo” era difícil “fazer fosse o que fosse”.
Em 2006, depois de alguma insistência, teimosia e jogo de cintura, a câmara municipal concede um espaço à AMUCIP, localizado no Bairro da Cucena, no Seixal. “Era um bairro muito problemático, mas nós queríamos resolver problemas reais. Não queríamos um espaço para ficar sossegadinhas”, clarifica Noel.
A AMUCIP ganha, assim, outra dimensão quando arranca com o primeiro projeto, o “Pelo sonho é que vamos”, com a duração de 4 anos. As portas estavam abertas a todos, com o objetivo de combater a segregação e isolamento das pessoas do bairro.
Começaram a organizar tertúlias para onde levavam diretores de várias entidades — centro de emprego, centro de saúde, câmaras municipais — para junto dos habitantes, para que eles pudessem expor diretamente as suas dúvidas. Além disso, para tornar a informação de vários serviços mais entendível para as pessoas com baixa escolaridade, elaboraram um documento que explicava vários processos de cidadania com uma linguagem mais simples e democrática.
“A falta de escolaridade faz com que as pessoas fiquem com uma auto estima baixa e que, com vergonha, não perguntem uma segunda vez algo que não perceberam. Este documento é uma das soluções para esse problema”, explica Alzinda.
Por outro lado, a associação não só ajudava as pessoas do bairro como procurava fazer daquela zona da Cucena um espaço mais cuidado, organizando limpezas das ruas com a colaboração da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal, e mais harmonioso, apaziguando o clima de disputa que se sentia entre os jovens e a polícia. “Organizámos jogos de futebol que traziam a polícia aos bairros e que levavam os miúdos à polícia”.
Sempre com as atenções viradas para os mais novos, a AMUCIP começa a tentar perceber como é que o absentismo escolar podia diminuir no bairro. “Começámos a fazer trabalho no terreno para perceber o porquê de tanto absentismo escolar. Reparámos que a escola mais próxima era a quatro quilómetros, que a maior parte das pessoas não tinha carro, que não existiam autocarros, que o caminho do bairro até à escola era em terra batida e que quando chovia as crianças ficavam todas sujas”.
Feito o diagnóstico, começaram a reunir-se com as escolas e a câmara municipal para escrutinar aquilo que podia ser feito. Com a colaboração de todas as entidades, o espaço da AMUCIP começa a oferecer acompanhamento escolar gratuito às crianças do bairro, com uma condição: para as crianças frequentarem o espaço, os pais tinham de garantir que elas não faltavam à escola.
Assim, resolviam-se dois problemas de uma só vez: as crianças ganhavam um novo incentivo para não faltar às aulas, e os pais ficavam descansados por saber que, quando terminava a última aula, os filhos iam para um local seguro. “As coisas começam a funcionar, vinham muitas crianças. Além de conseguirmos fazer com que fossem à escola, as crianças, como passavam cá algum tempo e tinham o acompanhamento, começavam a ter mais sucesso escolar”, continua Alzinda.
O absentismo escolar é um problema recorrente entre os jovens da comunidade cigana. Em 2014, o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas indicava que, entre as 1.559 pessoas ciganas inquiridas, 52% revelava não ter frequentado o 1.º ciclo; e 27,1% não sabia ler nem escrever.
Por outro lado, só 0,1% dos inquiridos tinha ingressado no ensino superior — número que tem vindo a aumentar com o programa Opré Chavalé, que oferece bolsas de estudo a meninas ciganas. Em 2009, com a alteração dos anos de ensino obrigatório — a Lei n.º85/2009 estabeleceu que a escolaridade obrigatória devia aumentar do 9.º para o 12.º ano — as clivagens educacionais entre a sociedade maioritária e a comunidade cigana tornaram-se ainda mais gritantes, sendo que na última apenas 2,3% diz ter completado o 12.º ano.
Ainda que a escolaridade seja, no geral, baixa, verifica-se que as raparigas saem da escola mais cedo que os rapazes, sendo raros os casos em que vão além do ensino básico, como se lê no relatório. Uma das razões que leva as famílias a retirar as meninas da escola quando terminam o quarto ano de escolaridade é evitar que estas se relacionem com os rapazes da sociedade maioritária.
Na comunidade cigana, não é bem aceite que uma rapariga possa ter vários namorados; quando esta começa a ter um contacto com um rapaz, passam a ser considerados um par, o que, seguindo o percurso tradicional, tem como resultado natural o casamento. Segundo o mesmo relatório, os casamentos na comunidade cigana continuam a consagrar-se precocemente (51,9% casa entre os 15 e os 19 anos). Ainda que, ao contrário do que é perpetuado, as mulheres não sejam obrigadas a casar com ninguém escolhido por terceiros.
Contudo, mesmo tendo os rapazes maiores níveis de escolaridade que as raparigas, a abstinência escolar é uma realidade geral e incontornável dentro da comunidade cigana. Mais complexo do que pode parecer, este problema tem várias frentes por examinar.
Muito ligada ao negócio das feiras, a comunidade cigana não atribuía extraordinária importância à escola — situação que se tem vindo a alterar precisamente pelo facto de as feiras já não conseguirem sustentar uma família.
Assim, para além da valorização da escolarização na comunidade cigana ser algo novo e, por isso, muito vagaroso, quando existem casos de sucesso em que as crianças conseguem efetivamente continuar os seus estudos, estas são confrontadas como uma instituição “muito castradora de outras culturas, o que acaba por provocar um sentimento de rejeição”, como explica Olga Magano, professora e coordenadora da licenciatura de Ciências Sociais na Universidade Aberta e Investigadora do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia e do Centro de Estudos e Migrações e Relações Interculturais
"Há professores que consideram um castigo ficar com a turma que tem os meninos ciganos."
Para Olga Magano, embora, do ponto de vista legal, sejamos uma sociedade democrática, que defende que todos os cidadãos e cidadãs são iguais perante a lei, na prática não estamos todos no mesmo degrau no que diz respeito ao acesso a certos direitos. “A sociedade, da forma como está estabelecida, define quase um tipo de padronização do que é o cidadão médio, o cidadão aceitável e os que não o são. Aqueles que cumprem as regras padrão, que se enquadram dentro daquilo que está previsto, são aqueles que conseguem fazer a escolarização com maior sucesso”, comenta Olga,. “Os jovens da comunidade cigana acabam por enfrentar outras dificuldades por não fazerem parte daquilo que se considera o padrão, o que acaba por conduzir a um maior insucesso escolar”.
A falta de abertura a outras culturas dentro do contexto escolar deve-se, desde logo, à formação deficitária dos professores. “Os manuais escolares e os professores estão muito formatados para fazerem a sua lecionação seguindo um determinado modelo de ensino. Quando são confrontados com uma turma em que têm meninos de várias proveniências, ciganos ou de outras culturas, torna-se mais complicado. Até porque os professores, muitas vezes, não têm formação noutras culturas. Os professores não conhecem a cultura cigana e não conseguem lidar com ela. Aliás, há professores que consideram um castigo ficar com a turma que tem os meninos ciganos”, acrescenta a investigadora.
Assim, as crianças ciganas que conseguem, excecionalmente, continuar os estudos não são valorizadas nem estimuladas pela comunidade escolar; ao contrário do que seria esperado numa sociedade igualitária, são recebidas e tratadas com “uma atitude castradora de culturas” que acaba por fazer com que se afastem da escola ou se concentrem em turmas PIEF (Programa Integrado de Educação e Formação) e cursos profissionais.
E, aqui, perpetua-se o preconceito. Se as crianças são conduzidas para percursos escolares alternativos, se são impedidas de aceder a educação superior, vão ter dificuldade em integrar-se. Se são postos em turmas especiais, se seguem programas especiais, não vão estar com a comunidade maioritária. E a comunidade maioritária não vai estar com eles.
"A cultura cigana é muitas vezes confundida com a cultura de bairro."
As críticas são apontadas ao Ministério da Educação “que podia estar a fazer muito mais”. “Na verdade, existem muitas políticas educativas no papel, mas isso não significa que sejam eficazes na prática. É preciso começar a divulgar e a promover a cultura cigana nas escolas, ter programas escolares mais inclusivos, porque a comunidade cigana é uma percentagem do povo português”.
Reconhecendo o mesmo problema, a AMUCIP avançou com o projeto Romano Atmo, um kit pedagógico que explica a cultura cigana às crianças, incluindo informação sobre contos tradicionais, os costumes, explicações da língua romano, e ainda um espaço para desvendar mitos e dar a conhecer várias curiosidades da cultura cigana. “O objetivo é que as crianças conheçam o lado bom da cultura cigana, que é muitas vezes confundida com a cultura de bairro”, explica Alzinda.
Apesar da atitude “castradora” de culturas diferentes, na escola, é entre os colegas, principalmente os mais novos, que as relações são desprovidas de preconceitos. Carolina, filha de Noel, “está completamente integrada e dá-se muito bem com os professores e com os amigos”. Ainda assim, Noel recorda o dia em que a filha contou aos colegas que era cigana. “Cigana? Mas os ciganos são lixo. Tu és lixo, Carolina?”, perguntou-lhe um colega. “Ela disse-me: ‘mãe, eu não quero mais dizer aos meninos que sou cigana porque eles não percebem’. Ou seja, ela entendeu que eles não tinham feito por mal, que eles tinham uma ideia errada do que ela era e que não tinham culpa, que é uma mensagem que lhes foi incutida. E minutos a seguir está a abraçar o amigo e é isso que eu gosto de ver nela”. Por outro lado, Noel também já recebeu “conselhos sem maldade” de várias pessoas da sociedade maioritária, que lhe dizem para não dizer a ninguém que a filha é cigana. “Ela nem parece”, justificam.
Como Carolina resulta de um casamento intercultural, acaba por ter um pé nos dois mundos. “Para os ciganos pode ser vista como não cigana, mas para a sociedade maioritária é sempre a ciganita”.
“Muitas vezes ouço ‘vão para o vosso país’, mas que país? Eu sou portuguesa."
Carolina trata as coisas com a leveza que os seus 9 anos lhe permitem. “Quando ela vai para algum lado, explico-lhe que há quem a possa tratar por cigana e ela diz logo ‘eu sei mãe, eu tenho as duas coisas. Qual era a piada de uma sandes só com queijo ou fiambre? Giro é uma sandes mista”, replica.
Ignorando as diferenças entre os dois mundos, Carolina dedica-se àquele que é o seu: a escola. “A minha filha vai poder ser tudo aquilo que ela quiser, e a escola vai ser sempre o primeiro mundo dela, sem deixar de ser quem é, sem deixar de transmitir os seus costumes e sabendo enfrentar com naturalidade as diferenças”.
“Devíamos matar os ciganos pelas crianças, que é para acabar com a espécie”
Uma das mais recentes explicações sobre as migrações de ciganos — que são originários das regiões do Punjal e Rajastão, no noroeste do subcontinente indiano — diz que começaram a emigrar em direção ao Ocidente sensivelmente entre 500 e 1000 d.c. A comunidade cigana chega a Portugal em 1510, há 508 anos. Os primeiros documentos que revelam a presença de ciganos no país são um poema de Luiz da Silveira, no Cancioneiro de Garcia de Resende, escrito no início do século XVI, que relata um episódio em que um cigano engana as outras pessoas e uma peça de Gil Vicente, escrita em 1521, chamada “A farsa das Ciganas”.
"Primeiro sou a Maria Alzinda, e depois é que sou cigana. Eu respondo por mim não por uma comunidade."
Hoje, a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas estima que habitem por todo o país entre 40 e 60 mil ciganos. Ainda que vivam em Portugal há mais de 500 anos e que a maior parte seja português, os ciganos continuam a ser um grupo não reconhecido pela sociedade portuguesa maioritária. No estudo Nacional das Comunidades Ciganas, realizado em 2014, pode-se ler que “os ciganos não são reconhecidos nem como uma minoria nacional, nem como uma minoria étnica, assumindo-se, então, os ciganos como cidadãos nacionais sem direitos, garantias ou proteção do caráter especial”. “Muitas vezes ouço ‘vão para o vosso país’, mas que país? Eu sou portuguesa, os meus pais são portugueses, os meus avós são portugueses. Toda a minha família é portuguesa”.
Perante este cenário, os primeiros quatro anos da AMUCIP foram turbulentos, tendo o espaço sido assaltado e vandalizado. Queriam apenas empoderar as mulheres ciganas, que são esquecidas e desvalorizadas, mas ninguém as percebeu. Para a comunidade cigana, não eram ninguém para falar em nome dos outros; para a sociedade maioritária — que muitas vezes acusa a comunidade cigana de se fechar em si mesma — não havia espaço para elas.
Para além de a associação ter sido recebida com desconfiança e hostilidade por parte da sociedade maioritária, estas mulheres, no seu próprio país, calçam diariamente sapatos que não são fáceis de usar — e que provocam dores que só quem os calça sente. “Não é nada fácil ser cigana, ser mãe e ouvir um homem a dizer ‘devíamos era matar os ciganos pelas crianças, que é para acabar com a espécie’”, desabafa Noel, assumindo sentir muito mais racismo hoje do que antigamente.
Uma das razões para o aumento e perpetuação de preconceitos é a constante generalização do mal e a incapacidade de se conseguir olhar para as pessoas como um singular. “Eu primeiro sou a Maria Alzinda, e depois é que sou cigana. Eu respondo por mim, não por uma comunidade. Todas as comunidades têm o bom e o mau. Não podemos pôr tudo no mesmo saco. É a mesma coisa que se uma pessoa da sociedade maioritária matasse isso significasse que todas as pessoas eram assassinas”.
Alzinda conta que, quando as pessoas a conhecem e se apercebem de que a sua personalidade não condiz com os preconceitos que tinham, a resposta é sempre a mesma: “Mas tu és diferente. Não pareces cigana”. “É impressionante. Quando as pessoas nos conhecem e percebem que nós fazemos o bem, já não somos ciganos!”.
Enquanto não for possível encarar uma pessoa da comunidade cigana como um indivíduo que só responde por si, diz Alzinda, vai ser difícil as coisas mudarem. “Há mau e bom em todo o lado. Nós não podemos passar todos pelo mesmo. Porque por uns pagam outros”.
Em 2014, no Estudo Nacional das Comunidades Ciganas é referenciada a existência de “diferenças significativas entre as condições de vida dos ciganos portugueses e a população portuguesa em geral, persistindo as velhas e novas formas de desigualdade social expressas em pobreza, más condições de habitabilidade, baixos níveis de escolaridade, dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, rendimentos incertos e, por vezes, dependência de prestações sociais”. Mas, não obstante “as pessoas ciganas continuam a apresentar níveis de desfavorecimento assinaláveis face aos demais cidadãos nacionais, sobretudo no acesso e permanência na escola, no acesso à formação profissional, no acesso ao emprego e à habitação (mercado formal), nos serviços públicos e à justiça”.
Tudo isto aprofunda a distância entre a comunidade cigana e a sociedade maioritária. É que, sem acesso às mesmas condições de partida, os jovens ciganos não têm as mesmas oportunidades. E, sem elas, ficam arredados do resto dos direitos dos portugueses.
E se continuam a ser diferentes, continuam a não se integrar. Continuam a ser recusados para as vagas de emprego disponíveis, continuam a ser discriminados nas escolas, continuam a não ter acesso às mesmas oportunidades. E fecham-se.
Por se fecharem, são olhados de lado. São vítimas de preconceito, racismo. Cidadãos portugueses de, legalmente, pleno direito, que não são considerados — pelo poder, pela imprensa, pela sociedade maioritária — como tal.
Diante das desigualdades sociais colossais, os objetivos atuais da União Europeia em matéria de integração dos ciganos assentam em quatro domínios fundamentais: o acesso à educação, ao emprego, aos cuidados de saúde e à habitação, sem esquecer o empoderamento social e o combate ao anti-ciganismo. São as tais condições de partida.
Ainda que não sejam o público-alvo de nenhuma medida de política social, acabam por ser abrangidos por algumas delas, como acontece na saúde. O Sistema Nacional de Saúde assenta no princípio da universidade e gratuitidade no acesso aos serviços e cuidados.
Contudo, ainda que na lei seja obrigatório um tratamento igualitário a todas as pessoas, Noel conta-nos que nem sempre isso acontece. “Uma vez a minha mãe sentiu-se mal e eu fui com ela ao hospital e mal chego ao hospital ouço logo vozes a dizer ‘devem pensar que é tudo vosso’. Eu já chego ao hospital com a minha mãe desmaiada, estou nervosa, e ouves comentários destes… eu só pensava ‘vou deixar passar se não quem sofre é a pessoa que está lá dentro’. Tens de calar e baixar a cabeça”.
“Há condomínios que já têm nos seus livros a dizer que nenhum dos condóminos pode vender a casa a um cigano."
No que diz respeito à habitação, ainda que em 1993 se tenha implementado o Plano Especial de Realojamento, concebido como uma solução face às carências habitacionais e com a intenção de realojar as famílias de bairros sociais e não só, ainda há aspetos críticos no contexto habitacional da comunidade cigana.
Olga Mariano conta-nos que existe uma atitude discriminatória para com os ciganos quando se trata de lhes conceder uma coisa. “Há condomínios que já têm nos seus livros a dizer que nenhum dos condóminos pode vender a casa a um cigano e isso é inconstitucional”.
Olga Magano clarifica que além de grande parte da comunidade cigana ser colocada em bairros sociais, com casas “com pouca qualidade” e que “ficam facilmente sobre ocupadas”, continuam a existir vários acampamentos ciganos, nomeadamente em Paredes, Agrijó, Damaia, Alentejo, Beja, Évora ou Algarve.
Essa realidade chegou à imprensa pelas mãos do vento. No passado domingo, 4 de março, o tornado que atingiu a cidade de Faro, no Algarve, desalojou uma comunidade cigana de 100 pessoas, numa zona conhecida como Cerro do Bruxo, localizado numa das entradas da cidade.
Estas famílias viviam em estruturas precárias, construídas com madeira e telhas. E vão continuar a viver nessas condições. É que, depois de terem sido provisoriamente realojadas num pavilhão desportivo, a autarquia argumenta que, sem condições para dar uma casa a estes munícipes, vai dar-lhes madeira e outros materiais para que reconstruam as barracas. “Logo que as condições o permitam, vão ter que regressar aos locais onde permanecem há muitos anos — estamos a estudar soluções para o futuro, mas não temos nenhuma solução para todas as comunidades ciganas que temos no concelho”, disse à imprensa Rogério Bacalhau, presidente da autarquia.
“As pessoas que recebem o Rendimento Social de Inserção não podem vender nada nas feiras nem ter outro tipo de negócio. Isto conduz a que as pessoas não façam nada, fiquem ali à espera a viver da prestação. Há uma indução à inatividade”.
“Espero um dia ter soluções que não serão para todas as comunidades [uma dúzia, no concelho], mas pelo menos para algumas”, acrescentou o autarca, que sucede a Macário Correia. Este último foi o presidente que, há oito anos, quando um temporal destruiu também as estruturas onde estas famílias estavam alojadas, entregou tábuas para que as pessoas refizessem as construções.
A Constituição da República Portuguesa prevê, no artigo 65.º, que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” E responsabiliza-se a, entre outros, “promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais”.
Para além da dificuldade no acesso ao direito constitucional à habitação, também o direito ao emprego (igualmente previsto na lei portuguesa) levanta vários problemas.
Com a escolarização baixa, a maior parte das pessoas da comunidade cigana não consegue concorrer com o resto da população na entrada no mercado de trabalho, o que faz com que dependa de subsídios, como o Rendimento Social de Inserção. Contudo, Olga Magano também aponta defeitos ao modo de funcionamento do Rendimento Social de Inserção. “Em primeiro lugar, as pessoas que recebem o Rendimento Social de Inserção não podem vender nada nas feiras nem ter outro tipo de negócio. Isto conduz a que as pessoas não façam nada, fiquem ali à espera a viver da prestação. Há uma indução à inatividade”.
Ainda existe outro problema estrutural: o enorme desfasamento entre a realidade e as ofertas do IEFP. “A Segurança Social obriga as pessoas a estarem inscritas no centro de emprego, o que podia ser uma boa solução, contudo, uma vez que as pessoas ciganas não têm qualificações, estão no centro de emprego mas não podem ser chamadas quando surgem propostas, que exigem sempre o cumprimento da escolaridade obrigatória”, explica. “O IEFP pode oferecer formações às pessoas da comunidade cigana, mas estas formações não dão equivalência a um diploma escolar. Assim, temos um instituto de emprego e formação profissional que não tem ofertas de trabalho que se coadunam com as qualificações daquelas pessoas. E vamos continuando aqui um bocadinho ao jogo do empurra”.
Resumindo: por não terem acesso a educação em condições de igualdade (por opção cultural, no caso das raparigas, e por consequência da discriminação nas próprias escolas, nos restantes casos), estas pessoas ficam em posição desigual no acesso ao emprego. Por não terem emprego, são obrigadas a recorrer ao RSI. Para beneficiar do RSI não podem trabalhar e têm de estar inscritas no IEFP. Mas, sem a escolaridade mínima obrigatória e sem equivalências, ficam arredados das oportunidades de emprego disponibilizadas pelo próprio Instituto do Emprego e Formação Profissional, o que lhes podia resolver o desfasamento inicial. É uma bola de neve.
1 solução, 8 mulheres, 16 braços
Depois de atravessar um mau período, onde foi confrontada com todo o tipo de problemas, a associação volta a ganhar força em 2010. “A AMUCIP para mim é o filho que nunca tive. Entre nós percebemos que não podíamos deixar a AMUCIP morrer”.
Mantendo a missão de empoderar as mulheres, começam a organizar atividades com um grupo de mulheres ciganas mais velhas, com idades a partir dos 30, que “não conheciam o próprio concelho onde viviam”. Organizavam passeios de barco pelo Seixal, idas à biblioteca ou piqueniques, onde aproveitavam para falar da importância do voto. “Conseguimos que a maior parte destas mulheres fossem votar [nas autárquicas] do dia 1 de outubro”, diz Alzinda.
Para as mulheres assumirem uma cidadania mais ativa, foi também organizado um curso de “empreendedorismo no feminino” que ensinava a 11 mulheres, por exemplo, como se podia preencher a declaração de IRS ou como se pedia autorização para abrir um espaço público de vendas.
Entre todos os projetos que marcaram o renascimento da AMUCIP, destacou-se o “Levar o sonho à ação”, que tinha a duração de quatro anos. Financiado pela Calouste Gulbenkian e com a Rede Jovem para a Igualdade como entidade promotora. O objetivo era trabalhar com as mulheres ciganas, oferecendo-lhes a oportunidade de aumentar a escolaridade. Como a mediação neste projeto era crucial para o respetivo sucesso, a AMUCIP foi chamada a fazer parte, sendo Alzinda o “elo de ligação” entre a comunidade e o projeto.
Desde então, na avenida Carlos de Oliveira, na Arrentela, há um espaço dedicado às formações e atividades com as mulheres ciganas. “Queríamos oferecer um espaço onde as mulheres pudessem ter um momento para elas, onde elas são protagonistas, onde podem intercambiar informações e onde podem encontrar um conjunto de conhecimentos novos”, conta-nos Carolina Leão, formadora da Rede Jovem para a Igualdade.
Com as portas abertas, era necessário arranjar quem quisesse por lá entrar. “Comecei a arranjar jovens que tinham entre os 18 e os 30 anos, a maioria delas era casada e com filhos, tive de fazer a mediação com as famílias e os maridos, para poderem participar no projeto. Eu ia aos bairros falar. Dizia-lhes ‘não há compromisso nenhum. É uma coisa diferente, vais lá uma vez e vês, experimentas, se não gostares és livre de sair, agora quero que saibas que isto existe e que tu podes beneficiar disso”, conta Alzinda. Todo o contacto estabelecido era feito com cautela para nunca as pressionar. “Pelo contrário, eu queria aliviar. As miúdas ciganas já têm uma carga em cima muito grande, são mães, donas de casa e vendedoras”.
O projeto começava logo por uma formação externa de três dias num hotel na Costa da Caparica, o que implicava uma tarefa difícil: fazer com que 11 mulheres tivessem de passar dias fora de casa. “Aquilo teve de ser muito bem mediado. Eu assegurava as deslocações e as crianças”, continua Alzinda.
Vitória tem 22 anos e foi uma das raparigas que beneficiou da formação. Reconhece enorme importância às sessões de estudo que ocupavam os dias. Porém, aquilo que recorda com mais nostalgia é a ida à praia. “Alguma vez eu pensei ir para a Costa, sozinha, sem marido, sem filhos, só com as raparigas do curso? Nós estávamos lá e estávamos malucas. Sozinhas num hotel! Quando acabavam as sessões de estudo, íamos passear, íamos à praia todas juntas. Nós ali quebrámos uma barreira”. Na verdade, para Vitória, não era comum andar na rua sem a família — mesmo com 17 anos, era raro andar de autocarro sozinha ou apenas com amigas.
“As coisas da vida”, como diz Alzinda, fizeram com que algumas raparigas fossem abandonando a associação, ficando apenas oito a fazer parte do espaço e das atividades.
Estas mulheres procuravam o espaço para desabafar, partilhar os seus problemas, aumentar a escolaridade, procurar emprego ou resolver qualquer problema que lhes tivesse aparecido. “Por exemplo, quando a assistente social ameaça cortar o rendimento [RSI] porque diz que os miúdos têm faltas na escola. E a escola, por outro lado, diz que o miúdo não tem faltas. Este é um problema. Elas falam connosco e nós ajudamos a digitalizar documentos, a fazer uma carta. Acompanhamos a situação para as ajudar”.
Como as oito mulheres mostravam vontade de aumentar a escolaridade, o projeto conseguiu interligá-las, este ano, ao Programa Qualifica, que tem como objetivo melhorar os níveis de educação e formação de todos.
"Sei que o meu futuro está aqui. Eu quero marcar a diferença.”
Manuela, de 24 anos, também beneficiária do projeto, diz estar “entusiasmada” com a oportunidade e espera conseguir tirar o nono ano. “Eu gostava mesmo muito de ter o 12.º, mas já sei que isso já é um bocadinho mais complicado”. Em casa, conta, a vontade de querer estudar não levantou problemas. "Eu tenho autoridade para dizer: ‘olha, marido, vou estudar’ — e foi isso que aconteceu. E ele até me perguntou ‘mas para que é quer queres isso?’ — e eu disse: ‘quero, quero ter escolaridade’. Ele disse-me logo: 'está bem, faz o que quiseres'”. Se calhar as meninas solteiras não têm tanta liberdade, mas também tem a ver com os nossos maridos que têm mentes abertas. São assim uns ciganinhos mais modernos”.
Já Cláudia, também beneficiária do programa, reforça a atitude moderna com que os maridos tem lidado com a vontade de serem escolarizadas. “Eu sou casada e o meu marido é cigano, vivemos a vida do cigano, estamos integrados na comunidade e eu disse-lhe disse: 'olha vou-me juntar à Zinda [Alzinda], vamos criar ali qualquer coisa nova'. ‘Estás com a Zinda estás bem’, foi logo o que ele me disse. Ele nem me perguntou o que eu ia fazer, só disse se ‘estás com a Zinda estás bem, estás em boas mãos”.
Andreia tem 35 anos e uma vida que não dá tempo para descanso. Vida que a leva a reforçar a vontade necessária para fazer parte do projeto. “Eu já tenho netos, tenho um filho pequenino com ano e meio, tenho o meu marido, as minhas tarefas de casa, sou pastora evangélica, mas não abandono este projeto, porque sei que o meu futuro está aqui. Eu quero seguir com isto. Eu quero marcar a diferença”.
Nos encontros, na Arrentela, as mulheres falam de sonhos e de fantasias. Entre as oito, perceberam que existiam três pontos de interesse. Umas gostavam de cuidar de crianças, outras de cozinhar e ainda havia quem gostasse de ter um salão de estética. Comum aos três, existia a mesma vontade: ter um espaço, ter um local de trabalho, uma fonte de rendimento própria, independente do salário do marido.
"Eu não fui educada para ser doutora."
No dia 22 de janeiro, o sonho chegou à ação e estas mulheres abriram o Espaço Romi — que significa cigano. No dia da inauguração, a casa estava cheia e entre os vários convidados estavam Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade de Género e Manuela Tavares, presidente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta).
Um enorme arco de balões marcava o dia de festa. Comida e bebida davam conta dos festejos do estômago. As atenções, porém, não saíam destas raparigas. Cláudia, presidente do Espaço Romi, apresenta-o aos convidados. “Este espaço é aberto a todos. Existe uma área dedicada às crianças, temos uma cozinha onde fazemos fabrico próprio e um espaço de estética”. Ainda que, no dia da abertura, não existissem espaços vazios, Cláudia alerta para a necessidade de dinamizar o espaço. “Abrimos agora o espaço, mas ele continua muito vazio. Ainda está tudo no início. Vamos começar a organizar coisas para acontecer aqui”, como um desfile com raparigas ciganas, mostrando a todos as roupas que, convencionalmente, só são vistas em festas privadas ou em casamentos.
Com as crianças a correr de um lado para o outro, os discursos não podem tomar demasiado tempo. Quando Rosa Monteiro se alonga nas palavras, a inquietação das crianças, em murmurinhos que segredam junto das pernas das mães, avisa que está na hora de o encurtar. E, no fim das diplomacias protocolares, há tempo precisamente para elas: um teatro infantil com a peça do patinho feio.
Na plateia, juntas e em fila, as crianças escutavam a história do patinho feio — parábola da discriminação. Lá estava o filho de Vitória a ver a mãe representar; ela que é conhecida por ser o “Filipe Lá Féria do sítio” e para quem este dia representa uma enorme felicidade e uma viragem. “O nosso sonho enquanto mulheres [ciganas] é casar e ter filhos. Como mulher estou realizada porque foi para isso que eu fui educada. Eu não fui educada para ser doutora. Nós fomos educadas para isto. O sonho da mulher é ser mãe, ter filhos e casar. Os nossos limites eram estes, não tínhamos outros, nem podíamos ter outros. Hoje já penso diferente. Eu posso ser mãe, ser casada mas posso estar aqui, posso sonhar mais alto. Posso tirar a carta, posso ter este espaço, posso ter dinheiro próprio e não depender do ganho do meu marido”.
"Não sou a ciganinha da sociedade maioritária, nem a doutora da comunidade cigana. Sou simplesmente Sónia Matos."
Ainda que sejam aplaudidas por grande parte da comunidade cigana, Cláudia sabe que há quem lhes aponte o dedo. “Nós dizemos que numa casa a cabeça é o homem, a mulher é só o pescoço. A mulher só ajuda, é o encosto. Quando uma mulher é falada, quem se envergonha é o homem. E para nós a opinião do outro conta muito. Às vezes tenho medo de aparecer na televisão e algum amigo do meu marido diga alguma coisa, que critique, e que ele não goste de algum comentário. Ele pode não gostar, pode sentir-se mal. Mas nós temos a noção de que não estamos a fazer mal nenhum e eles também. Tanto que nos permitem estar aqui todas juntas”.
Passados 17 anos “a levar com o pão que o diabo amassou”, o reconhecimento começa a florescer, ainda que vagarosamente. Provaram o que sempre prometeram: não romper com nenhuma cultura, não ocupar o lugar de ninguém, apenas ajudar as mulheres a poderem ser aquilo que quiserem. “Agora, já somos procuradas pela comunidade cigana, já nos pedem ajuda. E a sociedade maioritária também já nos vê de outra forma”, conta Alzinda.
A mudança, dentro da comunidade cigana, vai acontecendo devagarinho, quase tão devagarinho quanto a abertura de mentalidades da sociedade maioritária. Ainda assim, Alzinda, agora com 40 anos, sublinha as boas exceções. “Com a AMUCIP e não só, com outras associações como o Opré Chavalé, começo a ver mulheres empoderadas, mulheres nas faculdades, mulheres viúvas a trabalhar, mulheres ciganas com um percurso escolar muito diferente do meu”. “Tudo valeu a pena, a AMUCIP é o filho que eu nunca tive”.
Sónia, que balanceava entre os dois mundos, sabe agora perfeitamente quem é. “Eu encontrei-me. Não sou a ciganinha da sociedade maioritária, nem a doutora da comunidade cigana. Sou simplesmente Sónia Matos”. A Sónia Matos que se faz de si, sem existir outra igual e sem carregar uma cultura às costas. Agora, casada e com dois filhos, continua a dedicar a atenção aos mais novos, trabalhando em programas de ação educativa. Conseguiu tirar o 12.º quando completou 28 anos, com a ajuda do pai. “Ele sempre viu algo mais em mim. Ele disse-me ‘já que enveredaste por esse caminho, gostava muito de te ver com o canudo na mão. É algo que quero fazer por ele”.
Noel Gouveia, que sonha em ver a mudança na filha, continua a achar que a educação é a solução para todos os males. A estudar à noite, conseguiu tirar o 12.º e tirar um curso de formação de formadores, onde transmitiu a sua “experiência com a igualdade de género e cultura cigana”. Com um currículo sem espaços vazios e uma média de 16,7 valores, conseguiu, em fevereiro deste ano, entrar para o curso de Sociologia do ISCTE-IUL. “É um sonho tornado realidade”.
Muito “achincalhada” no início, Olga Mariano, agora com 68 anos, é uma mulher muito respeitada pela comunidade. Depois de conseguir tirar o 12.º através do programa Novas Oportunidades, ingressou na licenciatura em Educação Social da Universidade Aberta. Contudo, só conseguiu terminar um semestre, afastando-se por questões de saúde. Além de pertencer à AMUCIP, Olga preside a associação Letras Nómadas, onde trabalha diariamente com raparigas ciganas, o que fez com que se voltasse a candidatar. “Foi mais por causa das raparigas. Eu queria mostrar às mães que, se eu já tenho esta idade e sendo viúva podia estudar, elas não tinham de estar preocupadas com as suas filhas”.
Quem a veja não lhe reconhece fragilidade. O rosto é ríspido e a voz não treme. Aprendeu a ser assim, a nunca exteriorizar o que se acumula. “Perdi o meu marido muito cedo. A partir daí há sempre uma falha. Não se dividem as fraquezas, as incongruências da vida, os obstáculos. Para os meus filhos eu só dou o bom, não partilho o mau”. A partilha, essa, só é feita quando está rodeada de pessoas e de barulho. Não é que partilhe com ninguém, mas a azáfama fá-la transportar-se para um outro mundo, que se faz de papel e tinta.
“A poesia para mim é um escape de tudo, é a única forma de me exprimir”. Escreve sobre os seus estados da alma, sobre o que gostava de fazer e não fez, sobre o que fez mas não devia ter feito. Não raras as vezes, a sua poesia teima em tentar encontrar o fundo das gavetas que julgava fechadas. Destas gavetas se faz uma vida. De todas as lutas e de todas as mulheres se faz um poema. Principalmente este, escrito há 17 anos. No momento em que as flores floriram, romperam o chão, para que hoje todos pudéssemos crescer.
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