“Tenho para mim que, se o Papa sai de casa para ir a esses sítios [locais das jornadas], alguma coisa nova vai acontecer. Eu estou à espera de que haja alguma coisa nova, interessante, a acontecer em Lisboa, porque acho que Lisboa tem imenso potencial, é completamente diferente das outras cidades onde houve as outras jornadas”, diz Aura Miguel em entrevista à agência Lusa.
A jornalista destaca, nomeadamente, a proximidade de Portugal a África.
“Nós temos esta vocação universal. A nossa identidade fez-nos mestiços e, portanto, temos esta abertura, aliás, basta passearmos por Lisboa para perceber isso”, afirma, acrescentando estar convicta de que “essa dimensão pesou muito para a escolha da JMJ aqui”, recordando que uma das alternativas a Portugal era a Suécia.
“O argumento para vir para Lisboa terá passado pela proximidade de África e a abertura ao outro lado do Atlântico”, admite Aura Miguel.
Já quanto aos desafios com que os jovens — são esperados mais de um milhão dos cinco continentes — serão confrontados em Lisboa, o Papa já começou a desvendá-los no prefácio que escreveu para o último livro da jornalista, “Um Longo Caminho Até Lisboa”.
Nesse texto, “ele dá imensas dicas de novidade e a novidade também tem a ver com uma coisa que o preocupa e que já vem desde as últimas duas [JMJ] a falar nisso, que é [o facto de] os jovens não abraçarem a realidade, ficarem filtrados por ecrãs, pelo virtual”, diz Aura.
“Os chamados ‘nativos digitais’, os jovens do nosso tempo, correm diariamente o risco de se auto isolarem, de viverem grande parte da sua existência no ambiente virtual, acabando por ficar reféns de um mercado agressivo que induz a falsas necessidades”, escreve Francisco, convidando os jovens a viverem “experiências fortes de escuta e de oração unidas a momentos de festa e fazê-los juntos”.
E como será Lisboa com mais um milhão de jovens durante uma semana? Aura não tem dúvidas de que será muito positivo.
“Tenho a experiência de outras cidades. Em vários recantos, em vários sítios, há imensa escolha, há palcos que são montados, há momentos de música, há momentos dentro das igrejas, às vezes para maior reflexão, ou música clássica ou até conferências, ou momentos de oração. Há para todos os gostos e a cidade está toda envolvida. Acho que causa [uma sensação] um bocadinho forte (..), mas é um caos organizado, no bom sentido, portanto, há muita vida”, afirma a jornalista.
Aura Miguel sublinha que “há jovens por todo lado, mas vão sempre com alguém. São grupos que têm alguém sempre a quem seguir. (…) É muito interessante, porque estão divertidíssimos, mas têm a quem seguir e isso é que faz que um milhão de jovens não criem atritos”.
A jornalista assegura nunca ter visto “relatos de problemas, comas alcoólicos, violências”, o que se deverá à organização e preparação existente desde que é anunciada a jornada.
“É divertido e vai estar tudo cheio. Lembro-me que em Roma não cabiam. O momento de saudação do Papa é sempre na cidade. Aqui vai ser no parque Eduardo VII. Em Roma não havia uma praça onde coubesse toda a gente que já lá estava. Teve de haver dois momentos de saudação, um para os italianos e outro para o resto do mundo, um na Praça de São João de Latrão e outro na Praça de São Pedro”, recorda.
E o que leva um milhão de jovens a sair de casa, muitas vezes a milhares de quilómetros, para vir a um encontro destes?
“Acho que é a intuição original de João Paulo II, que sempre dizia que tinha uma opção preferencial pelos jovens. Foi ele que inventou as jornadas e ele tinha esta experiência de padre e bispo, e depois cardeal na Polónia, de levar a sério as inquietações dos jovens”, diz Aura Miguel.
Tendo em conta a sua experiência, aponta a explicação: “O homem tem um desejo enorme no seu coração, de plenitude. Muitas vezes não sabe explicar bem, mas tem sempre um desejo de mais, desejos grandes. Os jovens têm isso à flor da pele (…), desejos grandiosos de beleza, de verdade, de bem, e muitas vezes esbarram com os adultos, que dizem: ‘ainda não sofreste o suficiente, quando cresceres, vais ver’. Wojtyla dizia: ‘é para levar a sério esse vosso desejo’. Ele esforçava-se por reuni-los e dizer ‘isso está certo. Esses desejos (…) são mesmo para levar a sério'”.
“Quando foi eleito Papa, logo no primeiro Angelus, [João Paulo II] disse: ‘estou profundamente convencido de que se Deus me trouxe até aqui, é para que agora se reflitam a nível mundial as minhas intuições pastorais’. E ele, de facto, tinha uma preferência pelos jovens, além de ser muito divertido, furava os protocolos e falava com os jovens sempre que podia”.
Sobre o que se pode esperar para o pós-JMJ, Aura Miguel afirma que “esse é o grande mistério”.
“A João Paulo II perguntaram-lhe isso, ‘e agora?’ ‘Eu não preciso de saber. Eu lanço a semente, depois, os tempos da colheita e o que se passa no coração de cada um, isso só Deus é que sabe'”, recorda Aura Miguel, afirmando que gosta sempre de se surpreender, o que a leva a acreditar que o que Francisco dirá em Lisboa será de algo “fresco”.
“Não é mais do mesmo, de certeza, (…) precisamos do sangue novo dos jovens e da frescura deles. Acho que o próprio Papa também precisa disso e gosta imenso de se encontrar [com os jovens], é sempre um momento de entusiasmo, que faz bem ao Papa”, diz a jornalista que, como recorda Francisco no prefácio do seu livro, acompanhou todas as JMJ até agora realizadas, menos a primeira, em Buenos Aires, precisamente a única em que Bergoglio participara antes de eleito Papa.
A vaticanista portuguesa Aura Miguel, que já acompanhou 106 viagens papais enquanto jornalista, está convicta de que o Papa Francisco “não está a pensar resignar” nos tempos mais próximos.
“O Papa Francisco já disse que há um antes e um depois de Bento XVI, com esta grandeza que ele teve de lucidez de se ir embora, mas (...) acho que o próprio Papa Francisco acha que, para se ir embora, só mesmo se não tiver forças (…). Como o próprio médico dizia, é só no bilhete de identidade que tem 86 anos, porque, de cabeça e de vontade, tem 60. Portanto, eu acho que não vai, não vai resignar assim proximamente”, diz Aura Miguel em entrevista à agência Lusa, a propósito da próxima Jornada Mundial da Juventude (JMJ).
Segundo Aura Miguel, o Papa, como faz sempre quando lhe são feitas perguntas cujas respostas não quer desenvolver muito, já disse: “Eu ponho-me sempre perante Deus, mas, para já, [Deus] ainda não me deu nenhum sinal” no sentido da resignação.
Recuando a João Paulo II, e à sua debilidade física nos últimos anos do pontificado, Aura Miguel lembra que o papa polaco - que exortara a humanidade a “escancarar” as portas a Cristo -, tinha explicado que “todos os dias fixava os olhos em Jesus, que o tinha chamado para aquele cargo e que estava disponível a continuar até Ele desejar”.
“Quem escancara as portas a Cristo e dá tudo, não tem nada a guardar para si, portanto, não preservou a imagem que tinha”, sublinha a jornalista.
Com Bento XVI, aconteceu “exatamente o gesto oposto, também de grande liberdade, porque também largou tudo com discernimento e lucidez, percebeu que não tinha forças. Isso para mim é fascinante, porque os papas são completamente diferentes, mas têm esta coisa comum que é, quando dizem que sim, ficam mais livres”, afirma Aura Miguel.
“O Papa Francisco é igual, também no seu jeito tem uma certa liberdade que é dada porque não tem nada a perder. Ele até já tinha tudo tratado para passar a velhice numa residência de sacerdotes na Argentina...”, diz.
Com formação em Direito e o desejo de seguir a carreira diplomática, Aura Miguel enveredou pelo jornalismo e chegou à Rádio Renascença em 1985, para “fazer notícias de Igreja com linguagem normal”.
“Como João Paulo II viajava muito e era um Papa muito inovador em muitas coisas, passado uns tempos enviaram-me para fazer a reportagem – foi o meu batismo de Papa - no famoso encontro inter-religioso, a favor da paz no mundo, de jejum e oração pela paz no mundo, em que ele convidou representantes das 12 principais religiões” em Assis, recorda, acrescentando que, meses depois acompanhou o Papa à Polónia, “ainda no regime de Jaruzelski, ainda com o muro e com a influência soviética”.
Depois disso, seguiram-se mais 104 viagens, a maioria a bordo do avião papal, com Aura Miguel a não conseguir escolher a da sua eleição.
“É sempre um entusiasmo. Claro, há umas que são mais normais e há outras que são em contextos mais complexos. Por exemplo, (…) marcou-me imenso, e já ando nisto há muitos anos, [a viagem] à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, ou a que o Papa Francisco fez à República Centro-Africana, talvez essa tenha sido uma das mais impressionantes do pontificado. Não fui, infelizmente, à do Iraque por razões de saúde, mas houve outras viagens importantes, ao Líbano, por exemplo”, afirma.
“Depois, há outras históricas, como a viagem do Papa a Cuba, com Fidel Castro, estar lá naquele momento em que eles se encontram e João Paulo II grita que é preciso que o mundo se abra a Cuba e Cuba se abra ao mundo”, recorda.
Tendo convivido enquanto jornalista com três Papas, “todos diferentes”, recorda a “grande atratividade humana” de João Paulo II, “divertido, praticava desporto e que inaugurou esta proximidade com as pessoas”.
E foi com João Paulo II, que acompanhou em 51 viagens, que viveu um dos momentos mais importantes da sua carreira.
“O Papa em 2002, já muito mal, resolveu convidar 14 jornalistas para fazerem as reflexões da Via-Sacra do Coliseu na Sexta-feira Santa” e a Aura Miguel coube a reflexão sobre uma das estações.
E com Francisco, como é o ambiente a bordo do avião papal nas viagens apostólicas? “O Papa gosta muito de conviver, ele diz mesmo que se pudesse estava sempre no meio da rua a conviver, aliás, ele incentiva toda a gente a sair ao encontro de outros. Ele aproveita os voos para conviver connosco (…). Consoante o tempo dos voos e a dimensão do aparelho – quando são voos intercontinentais é mais de uma hora que ele demora connosco -, ele vai caminhando pela coxia e fala com um a um sem pressa. Foi nesse contexto que eu consegui pedir-lhe uma entrevista em 2015 e o prefácio para agora. Dá tempo para falar com ele”, diz Aura Miguel.
“Há muita gente que lhe leva coisas, há imensos gestos de ternura. Por exemplo, alguns combinam com os filhos, fazem pequenos vídeos e os filhos fazem uma dança e uma cançoneta para o Papa e ele vê, pacientemente, outros levam-lhe empanadas argentinas acabadas de fazer na véspera. Acontece de tudo, demora sempre imenso tempo”, enfatiza.
Nos últimos tempos “com os problemas do joelho, encontraram outra modalidade, que é, ele senta-se à frente e nós [jornalistas] fazemos uma fila indiana - ainda é melhor para nós, porque assim ainda podemos estar ali mais um bocadinho a falar até o assistente dele dizer: pronto, já chega. Ele quer mesmo conhecer-nos”.
Com muitos carimbos no passaporte, ainda há alguns países que Aura Miguel gostaria de visitar no âmbito de uma visita papal. Desde logo, a Argentina, país natal de Francisco e ao qual este não voltou desde que foi eleito. Mas, também, a Rússia e a China.
“Há muitos sítios onde gostava de ir. Por exemplo à China ou à Rússia. Desde que sou jornalista, à China ou à Rússia, fala-se constantemente que o Papa há de ir. João Paulo II tentou devolver pessoalmente o ícone de Kazan, que esteve aqui guardado, e levá-lo à Rússia. Nunca viu abertura. (…) Com a China, este Papa [Francisco] tentou um gesto de aproximação com o documento para permitir a nomeação de novos bispos, mas as coisas não estão a correr muito bem. Tem sido renovado esse acordo, mas enfim, do lado de Pequim não tem havido grande abertura para os católicos”, afirma a vaticanista.
Livro recorda entusiasmo e peripécias à volta do anúncio da escolha de Lisboa
O livro “Um Longo Caminho Até Lisboa” contém, em cerca de 300 páginas, os relatos das 13 jornadas mundiais da juventude vividas por Aura Miguel enquanto jornalista, desde Santiago de Compostela, em 1989, à Cidade do Panamá, em 2019.
E é no livro editado pela Bertrand Editora, no capítulo referente à jornada no Panamá, que a vaticanista relata o entusiasmo e dá conta de algumas peripécias vividas em torno da possibilidade de a jornada seguinte se realizar em Portugal.
“O cardeal-patriarca, D. Manuel Clemente, oficializou o pedido junto do Vaticano, mas há outras propostas apresentadas pelos arcebispos de Estocolmo e de Praga”, refere Aura Miguel, apontando que a decisão terá de ser tomada até ao encontro no Panamá, previsto para janeiro de 2019.
Eis senão que, em 30 de novembro de 2018, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na inauguração do bazar diplomático em Lisboa, “quando se aproxima da banca do Panamá, avança com entusiasmo e de braços abertos para a diplomata que o recebe. ‘En enero allí estaremos. En enero!’ (Em janeiro lá estaremos. Em janeiro!”.
Com a notícia a ser divulgada pela imprensa, “o desconforto de alguns setores da Igreja é evidente, pois a divulgação antecipada de uma possível vinda do Papa a Portugal pode estragar tudo”, o que leva o próprio padre Manuel Barbosa, secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, a afirmar que “o evento até pode nem ser realizado cá” e que a fuga de informação pode “levar o Papa a tomar uma decisão contrária”.
Enquanto isto, e segundo o relato da Aura Miguel no seu livro, “uma fonte do Palácio de Belém (…) afasta a hipótese de a fuga ter saído da Presidência" e que "Marcelo Rebelo de Sousa ficou surpreendido com o anúncio antecipado”.
Apesar deste percalço inicial, é conhecido todo o desenrolar do processo até ao anúncio oficial feito no dia 27 de janeiro de 2019, na Cidade do Panamá, no final da missa. Também este, um momento cheio de peripécias.
“No final da missa, o cardeal Kevin Farrell (…) dirige uma breve saudação ao Papa. Em seguida, de acordo com o guião distribuído aos jornalistas, Francisco deve anunciar pessoalmente a cidade escolhida para a próxima edição das JMJ. Mas nada disso acontece”, descreve a jornalista, acrescentando que Francisco, “não só não fala de Lisboa, como acrescenta: ‘Já foi anunciado o local da próxima Jornada Mundial da Juventude, peço-vos para não deixar resfriar o que vivestes nestes dias’”.
A missa “deveria terminar em apoteose, mas nada acontece. Durante uns bons minutos, há 700 mil pessoas em pausa, sem aplausos nem vivas, porque ainda ninguém anunciou nada”, descreve no seu livro, acrescentando que finalmente, “lá no altar, dão-se conta da gafe e, depois de falar com o Papa, o cardeal Farrell aproxima-se do microfone para anunciar publicamente a cidade escolhida para a próxima JMJ… mas também se engana”. Em vez de dizer Lisboa, disse Portugal.
Neste capítulo, Aura Miguel descreve a “explosão de alegria” que então viveram os jovens portugueses presentes, a subida de Marcelo Rebelo de Sousa ao palco para cumprimentar o Papa e o “desapontamento” de Fernando Medina, então presidente da Câmara de Lisboa, por não ouvir falar da sua cidade.
O dia viria a ficar ainda marcado pelo conhecido vídeo gravado por Marcelo Rebelo de Sousa, no qual afirma entusiasticamente: “Conseguimos! Esperávamos, desejávamos, conseguimos!”.
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