João Rocha tem 63 anos e vive no bairro há 23, tempo suficiente para reconhecer a urgência de demolir as barracas e o positivo de ter hoje “uma casinha”.

Acontece que as pessoas não vivem só dentro de apartamentos e João vai-se entretendo com caminhadas, acompanhado pelo seu velho companheiro ‘pitbull’, a que dá uma fatia de fiambre diariamente. “A gente quer ir a um café ou quer sentar-se ao pé do prédio, não há [onde]. Não há um café aqui, não há um bancozinho para sentar”, lamenta.

Ainda para mais, João sabe que “noutros bairros há” mais espaços para a comunidade. “A gente sente-se muito em baixo”, desabafa.

Uns metros abaixo, três crianças pequenas fazem corridas de triciclo rua fora, repetindo a ação vezes sem conta. “[Também] não há nada para as crianças brincarem, brincam nas estradas, o carro vem a passar, a bola vem a passar, bate no carro”, relata.

Há muito que a população pede um campo de futebol para o bairro, situado na freguesia do Beato. Iuri Ramos, de 18 anos, está certo de que esse espaço tiraria os jovens da rua.

“Há várias lojas fechadas, que não servem para nada. (…) Fartamo-nos de lutar para abrir um espaço para jovens”, assinala.

A associação de moradores Viver Melhor No Beato é o único local de convívio do bairro, onde não há nenhum comércio aberto, nem qualquer espaço a que se possa chamar verde.

Criada em 2011 sobretudo para atender a população mais idosa, recebe também jovens e crianças. “Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado, é um bocado complicado”, assume Iuri, um dos pintores do mural que quis “dar cor” ao Bairro Branco e que preserva a memória do espaço antes da intervenção do Programa Especial de Realojamento (PER), criado há 30 anos para erradicar as barracas das zonas metropolitanas de Lisboa e Porto.

O bairro “tem um bom convívio”, destaca Iuri, que se sente “abandonado” por um Estado que “não está presente” ali. “A única coisa que fizeram corretamente foi abrir um espaço para os idosos, mais nada”, aponta.

“Não temos margem para fazer mais”, reconhece Filipa Valente, voluntária da associação de moradores, recordando que chegou a haver um campo de futebol — atrás da creche fechada há mais de um ano — que foi demolido para criar o parque de estacionamento.

Os espaços comerciais dos prédios nunca foram atribuídos, nem para cafés, nem para lojas. Estão fechados ou ocupados: há moradores que fazem deles arrecadação, para evitar que sejam usados para outros fins. Uma das garagens — com porta para a estrada de acesso ao bairro — serve de abrigo ao consumo de droga.

Filipa vivia no Casal do Pinto quando foi realojada ali e lembra-se que, inicialmente, havia assembleias de condomínio para falar dos problemas no bairro e a manutenção dos prédios. “Há muito, muito tempo que essas reuniões deixaram de existir”, lamenta.

“O que nós sentimos, como moradores, é que este bairro está abandonado, completamente”, confirma. Além disso, “perdeu-se a essência” de comunidade. “Está cada um por si e Deus por todos”, partilha.

Amandine Bouillet, coordenadora da associação de moradores, não se deixa contaminar por esse estado de espírito. Nas ruas, é reconhecida por todos, que cumprimenta e ouve, registando queixas e reparos e comprometendo-se com respostas. As possíveis, claro.

A Gebalis, empresa responsável pela gestão da habitação municipal, “não foi sempre um parceiro muito ativo”, mesmo quando o bairro foi incluído no programa camarário BIP/ZIP, para zonas de intervenção prioritária.

“Há muito tempo que a Gebalis não andava no bairro, com várias desculpas. Ah, não se pode, daqui a pouco vamos, não está seguro para nós, vamos um dia…”, relata Amandine, confessando que a aproximação “não foi fácil” e que sentiu “uma falta de vontade”.

Nos últimos três anos, a associação inundou a Gebalis de perguntas e pedidos, em nome dos habitantes, garantindo, assim, “outro nível de resposta”.

Os 1.500 habitantes que se estima que vivam no bairro chamam à associação “a loja do cidadão, porque tem tudo e mais alguma coisa”.

Ser a associação a pedir respostas “mudou um bocadinho as coisas”, embora o resultado ainda não seja muito visível e continue a ser “muito complicado” com a gestão municipal. Mas, hoje, a Viver Melhor No Beato é “quase um minigabinete de Gebalis de proximidade”, ironiza Amandine.

Mas, recentemente, conquistaram lugar num programa municipal que vai possibilitar a renovação de lotes, resolver alguns dos problemas dos prédios e recuperar as assembleias de condomínio. “Tenho a certeza de que o bairro não fazia parte dos bairros escolhidos para este programa”, assume Amandine.

Há todo um historial que justifica a descrença. “As obras cabiam à Gebalis, à Câmara Municipal de Lisboa. (…) Em mais de 20 anos que o bairro tem, nunca foram feitas, praticamente, obras de reabilitação (…). Ainda temos neste bairro coberturas de fibrocimento”, denuncia Nuno Santos, presidente da associação de moradores, constatando que “todo o edificado está em muito mau estado de conservação”.

Quando a autarquia de Lisboa começou a preparar as comemorações dos 30 anos do PER, “há cerca de um ano”, contactou a associação para ouvir os moradores e pediu sugestões com urgência.

A associação assim fez, enviando “várias propostas” — pintar os três prédios com ‘graffiti’ a toda a altura, construir um campo de futebol e um polidesportivo, criar jogos para crianças, porque “atualmente não há nada”.

Em dezembro, houve nova reunião, com “várias promessas”, mas, desde então, “zero”. Pediram notícias todas as semanas e a autarquia respondeu há dias que “está a estudar” se as propostas já não estão a ser financiadas por outros projetos. Amandine indigna-se face ao atestado de incompetência e aponta a “desmotivação dos moradores” face às “expectativas”. E garante que o bairro “não vai largar a câmara municipal até ter uma resposta”.

Entretanto, João vai continuar a embarcar nas excursões organizadas pela associação às terras natais dos habitantes do bairro, que nunca mais lá voltaram e não veem os seus familiares há anos. E o bingo continuará a entreter os mais velhos, na esperança de que ao bairro saia, um dia, a sorte grande.

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