“Esta guerra quando vai acabar? Ninguém pode prever. Não sei se morro na praia. Não dá para a eletricidade. Tens reservas para aguentar meses, mas não podes aguentar a vida”.
O início de conversa com Enrique Castiñeira Pineiro, servido a frio, parece colidir com o motivo que nos levou ao restaurante Bonjardim, sito na Travessa de Santo Antão, em Lisboa.
Tem uma explicação. A preocupação deriva da pandemia do novo coronavírus. “Uma guerra”, como repetidamente alude. No entanto, o belicismo não é a razão da nossa presença. Há outra. E bem diferente. É para celebrar os 70 anos de vida deste espaço gastronómico [a 1 de agosto] que virou Loja Histórica. Está situado numa rua resguardada, perto, mas longe, do bulício da artéria que serpenteia entre o Hard Rock Café, o Politeama e o Coliseu dos Recreios, e desagua nas traseiras do Teatro Nacional D. Maria II.
Fomos atraídos pelo cheiro. Pelo caminho, fomos repetidamente abordados nas esplanadas de diversos restaurantes, com empregados de ementa, na mão e “lunch” e “quer almoçar” na exclamação.
Chegados, a postura é diferente. Bem distinta. Duas esplanadas, frente a frente, empregados de camisa branca e calça preta viajam, de máscara, de um lado para o outro.
De suspensórios e óculos escuros, Enrique estava à nossa espera. 13h30 foi a hora combinada. Os empregados escoltaram-nos da esplanada à sala. Troca de cumprimentos e sentamo-nos. Ao SAPO24 e ao anfitrião junta-se a filha, Inês Castiñeira, e o marido, Rui Correia.
As raízes galegas
Enrique, o senhor Enrique como é tratado, nasceu em Portugal, mas fala da nacionalidade na ótica do jus sanguinis [direito de sangue] e não jus soli [direito de solo]. A Galiza está bem presente. Na fibra que lhe corre nas veias.
“O meu pai [Manuel Castiñeira Martinez] nasceu em 1918. Um galego nascido no Brasil, “numa aldeia, como é que se chama... vê-se no mapa, entre a fronteira do Estado de São Paulo e Belo Horizonte. O meu avô, galego, foi capataz contratado para fazer a linha férrea que ligava os dois estados. Demorou 13 anos. A minha avó foi parindo pelo caminho”, conta, num tom de voz pausada.
“Aos sete anos, o meu pai foi para Galiza. Ficou até aos 14. E aí deu o pinote. Veio para aqui. Cheirava a guerra em Espanha. Casou-se com a minha mãe [Maria Esperanza], uma galega que veio com ele”.
Revira-se e aponta para a fotografia dos progenitores. Está situada em cima de um balcão. Uma espécie de altar, ou de anjos da guarda que observam, do alto, o funcionamento do restaurante que criaram.
Retoma a história da família. Em Portugal, “o meu pai começou por lavar pratos na Cervejaria Alemã”, um restaurante fundado em 1927, em Lisboa, na Rua do Alecrim. “Foi construída no local onde era um cabaret. Creio que se chamava o Gato Preto. Foi feito o trepasse. A decoração era alemã, o cozinheiro alemão”, recorda.
Subiu na hierarquia. “Ajudante de cozinheiro, andou pelas mesas e chegou a ser chefe de mesa. Os alemães, com a II Guerra Mundial, venderam tudo ao senhor Henrique Dias, chefe de mesa e meu padrinho de batismo, daí o meu nome. Sem filhos, largou para o meu pai”.
Com o afamado restaurante no portfólio, aos 32 anos arranca com o Bonjardim, após um trespasse (era uma Casa de Pasto). “Começou por vender passarinhos, a moda na altura. Depois lembrou-se dos frangos”, recorda. “Comprou um relógio de corda. Vinte minutos para fazer o frango”, era o tempo para a ave rodar até ao ponto.
Foi — e é — mais um restaurante de raízes galegas, que durante anos a fio predominavam em Lisboa e no Porto. Ali ao lado, a Solmar e o Gambrinus, ou, mais distante, a Cervejaria Ramiro, surgem como exemplos.
“Aqui estou há 54 anos. Já estou há mais tempo que o meu pai”
Começa a história do restaurante nascido há 70 anos. Tem o cognome de “Rei dos Frangos”, com direito a inscrição, na parede, em elementos cerâmicos alusivos à ave.
Terá sido o primeiro lugar de Lisboa a confecionar frango no espeto, de acordo com um artigo, datado de 1965, da revista Flama.
Sentados à mesa, o frango é o personagem principal de uma ementa. O xadrez da toalha, verde e branco no piso térreo, e azul e branco a condizer com os azulejos, no primeiro piso, são imagens de marca. Dá um ar de taberna italiana, mas é bem portuguesa. Toda a decoração.
“Lembro-me, em pequeno, de andar com a minha mãe pelos mercados todos de Lisboa a comprar frangos. Mortos e depenados, na altura. O meu pai alugou um aviário, em Carcavelos, para ter 20 ou 30 frangos por dia, não dava para fazer mais. E, nos anos 50, um técnico inglês montou de raiz um aviário, no Freixial. Geraldes Barba, empresário que trouxe a Coca-Cola, era o dono. Garantia os frangos que fossem necessários”, resume. “A minha mãe estava sempre na retaguarda. Vendia frangos e miudezas”, descreve.
Chegam as entradas. Queijo. Pastéis de bacalhau, sem “queijo da serra”, assegura, num sorriso matreiro e crítico às alterações das tradições gastronómicas.
Pede uma garrafa de vinho. E frango, sem acompanhamento de molho. Um molho, especial, que está na mesa para quem não o dispensa. “É jindungo [piri-piri] africano”, afirma. Picante quanto baste, “bastam umas pinceladas” muito ao de leve para apimentar o paladar, avisa. O prato é decorado com frango e batatas fritas. Há também esparregado e arroz à brasileira.
Enrique retoma o fio da conversa. Recua à infância. Nas férias, “enchia as garrafas de vinho. A pipa. O vinho da casa”. Desempenhava trabalhos apelidados de “menores”, refere. Acrescenta que “fez” a escola. Do liceu, em Ciências, saltou para a “primeira Escola Hoteleira, do Alexandre Almeida, na Sidónio Pais”.
Depois abraçou o restaurante. “Vim aos 20 anos para aqui. E aqui estou há 54 anos. Já estou há mais tempo que o meu pai, que morreu no ano de 1980, então com 62 anos”.
Bonjardim, Rei dos Frangos. Bonjardim, Frango na Brasa. Só um é Loja Histórica
Enrique não se dedicou só aos frangos. A diversificação de cozinhas imperava. Para além da Cervejaria Alemã, abriu a primeira hamburgueria em Lisboa, um ano depois de o pai falecer. E criou o Garden Burger, no Centro Comercial Amoreiras.
Recorda, com ironia, um episódio. “Convidaram-me para levar a Cervejaria Alemã para as Amoreiras. Disse que era uma coisa única e que não se podia levar. Disse, sim, que levava hambúrgueres e aceitaram. Depois puseram no jornal que a Cervejaria Alemã iria abrir uma casa de hambúrguer nas Amoreiras”, diz a rir.
Aos 70 anos, o Bonjardim é, atualmente, dos restaurantes mais antigos de Lisboa. Há “o Gambrinus, com cento e poucos anos. Era o Tavares. E a Cervejaria Alemã”. Acrescentamos duas cervejarias: Trindade e Ramiro.
O segredo do sucesso da longevidade pode explicar-se pela ausência de alterações ao longo dos anos. A receita do frango é a mesma. Usando o léxico do futebol, em equipa que ganha, não se mexe. É assim, desde o primeiro dia. “As outras casas são de frango espalmado. À africana. Eu gosto deste, é mais suculento”. Confirmamos à primeira dentada.
Bonjardim, Rei dos frangos. Bonjardim, Frango na brasa. É assim que são registados os dois restaurantes que olham um para o outro. O primeiro, mais antigo é Loja com História. O segundo, ainda não tem esse estatuto. Um tem 70 anos, o outro 57. “O processo foi metido ao mesmo tempo há dois anos. O prédio em frente está para venda. Pode ser hotel, não sei, mas agora calma...”. Mais umas palavras sobre a “tal guerra”.
No Rei dos Frangos, a casa primitiva, “está tudo original. Na parte de baixo e no primeiro andar. É uma Taverna histórica. Decoração à portuguesa”, narra. Em relação ao restaurante em frente, já não é o mesmo. “Fizemos obras há 25 anos, mudámos a sala de baixo, tinha muita madeira e azulejo pequeno, era feio, metemos painéis pintados à mão. No andar de cima mantivemos como portuguesa”, continua.
Recua no tema. “Antes de fevereiro saíam, de cada lado, 600 frangos por dia. Hoje [início de agosto] são 180. É uma diferença muito grande. Não sei se vou morrer na praia”. Volta a colocar a tónica na situação que se vive. “É uma guerra que não se sabe quando será o fim. Eu fui obrigado a meter gente em lay-off, há menos dinheiro e não se sabe o que vai acontecer”, refere.
Sobreviveu a várias crises. Intervenções do FMI e Troika. “Isso passou. Nem no 25 de Abril. Zero problemas. Aumentava o pessoal 10%. Ficavam contentes. Mas a inflação era 30%... ficavam a perder”. Destaca, no entanto, uma crise que equipara a atual. Gripe das aves. Ninguém comia frango. “Comiam peixe e carne”. Só. Numa casa em que o frango representa “90% dos pratos”.
Em 70 anos, só por uma vez o azar dos assaltos bateu à porta. “No dia dos 18 anos da minha filha Inês [18 de novembro], não sei que idade tem...”, assume, inquirindo, com o olhar, o genro, à espera da resposta que não surgiu. “É bom rapaz. Deu-me quatro netos, quatros miúdos espetaculares”, assume, orgulhoso.
Deixar o legado a alguém não está na sua mente. “Tenho de estar entretido. É bom para a mente e para tudo. Descanso quando morrer. Não me estou a ver em casa sem fazer nada”, afirma do alto dos seus 74 anos.
Nem em férias descansa da restauração. “Ao fim de oito dias de férias, nos primeiros dias está tudo bem. Leio livros. Depois, começa a ficar chato.” Deixou de ir de férias à Galiza, Província de Pontevedra, município de Tui, onde se fala um português arcaico e as suas origens. As férias eram sempre lá, mas “agora já não tenho família”.
Os elogios de Brandon Flowers antes da hora da sesta hispânica
A conversa decorre à medida que se degusta a razão de ali estarmos. Dois empregados, Luciano e Fonseca, têm a despesa de nos servir. Antigos, são de uma fidelidade canina. “Muitos saem daqui para a reforma”, interrompe a filha Inês. Alguns entraram com 12 anos como “moços de recados”, acrescenta o pai.
Luciano tem 37 anos de casa. “Vim para cá tinha 28 anos, tinha o senhor Enrique trinta e tal anos. Recordam quem os contratou. “O pai do senhor Enrique sentava-se em vários sítios. A Dona Esperanza tinha uma salinha. Ali junto aos azulejos [da Fábrica Santana] com uma fazendeira a dar comida aos frangos”, cita, de memória.
Fonseca, chefe de sala, desfila nomes que passaram e passam pelas mesas. Da política e do futebol. Enrique acrescenta outros. E, sempre atenta, Inês mostra um vídeo em que Brandon Flowers, vocalista dos Killers, assume, em entrevista, ter ali comido o “melhor frango do mundo”.
A clientela divide-se ao sabor das estações. No verão, mais estrangeiros. No inverno, a fauna é mais portuguesa. Enrique conta um episódio. “Um chinês mostrou-me um guia que dizia que o melhor frango da cidade era o Machado. Expliquei-lhe que o Machado era o oculista que está por cima do Bonjardim 2”, solta uma gargalhada.
Pede melão para sobremesa. Não tivemos hipótese de escolha. Um aparte: o melão estava uma delícia. Nessa altura, depois de responder a perguntas que cabem nas duas mãos, dispara uma. “Não se importa que fume um cigarro?
Anuímos à vontade expressa. “Desde que nasci fumo dois maços”. Emenda. “Comecei aos 18. Na escola hoteleira, a primeira escola para meninos e meninas que frequentei. Elas fumavam e eu não. Fui à tabacaria e pedi um maço”, exclama, acompanhando com um gesto, simulado, de um murro na mesa. A fibra galega não é de ficar atrás.
Pede, de seguida, um café e um moscatel. “Só bebo vinho tinto e moscatel”, esclarece. “Como pouco. Coordeno com o fumo. Morro magro e com um cigarro na boca”, sorri, sorrateiramente.
Janta, pontualmente, fora. “No Jockey, no Campo Grande. Pode-se fumar”, esboça novo sorriso.
Está todos os dias no restaurante. Este, está aberto todos os dias, à exceção da noite de 24 de dezembro. “Tenho um encarregado que abre o restaurante às 7h00. Chego as 8h30 e saio às 22h30. Quando ele está de férias ou folgas, estou cá eu às 7h00. Sabe bem. Dá saúde”, exalta.
A hora vai adiantada. O ponteiro aproxima-se das 15h30. Restam duas mesas, na esplanada, que ainda estão a ser servidas. Despedimo-nos. É a hora da “sesta do mundo hispânico”, explica. “Fiz sempre sesta para aguentar até à noite. Começo muito cedo”, termina.
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