Braços robóticos automatizados, bustos do Batman que surgem em impressões 3D, óculos de realidade virtual capazes de fazer viajar para outras geografias, um pequeno robô que segue os comandos colocados no terreno à sua frente e outro, bastante maior, que serpenteia com autonomia entre as pessoas. Este pode ser o futuro das salas de aula portuguesas, mas, por enquanto, trata-se de uma promessa cada vez mais próxima de se cumprir.
De 23 a 25 de novembro, o átrio da escola Dona Filipa de Lencastre, em Lisboa, serviu de antecâmara para este tipo de tecnologia, colocada ao serviço da educação. Fruto de uma parceria entre a empresa Beltrão Coelho e este agrupamento escolar, a entrada do edifício virou um stand que convidou à participação de todos os interessados, miúdos e graúdos.
Quando o SAPO24 chegou à escola, pelo final da manhã, estava montada uma grande azáfama, com vários grupos de alunos do 6.º ano a circular pelas diferentes estações, com o entusiasmo apenas refreado pelos pedidos atentos dos professores para manter alguma ordem no espaço.
“É bué assustador”, ouve-se gritar. O olhar segue a direção do som e vai parar ao espaço onde as crianças esperam pela sua vez para utilizar os headsets de realidade virtual. O ecrã mostra que um grupo está a experimentar ver a zona ribeirinha do Dubai a partir de uma perspetiva aérea de 360 graus. A sua postura deixa escapar o sentimento de desorientação de ter o corpo num sítio e a cabeça noutro — três meninas, aliás, agarram-se entre si com medo de cair, não obstante as indicações de se manterem “à distância de um braço”, para evitar colisões.
“Parece mesmo que estamos lá”, partilha Mariana, de 11 anos, acompanhada das colegas Madalena e Beatriz. “Quando clicava no botão para andar em frente, batia em tudo”, confessa entre sorrisos. Mais tarde, o mesmo menu de seleção das experiências mostra como é estar dentro do cockpit de um caça a voar ou uma galeria onde é possível ver partes do corpo anatomicamente precisas.
Ao lado, depois de se passar por cadeiras e mesas de ergonomia trabalhada para garantir o conforto na sala de aula, chega-se a outra das grandes atrações do átrio, o Kubo. Com um tabuleiro de uma cidade por baixo, este pequeno robô responde a comandos com base em peças montadas como um puzzle, sendo destinado a expor os alunos aos princípios básicos da programação. Um conjunto de peças encadeadas com setas fornece os comandos para que o autómato sorridente se movimente, ao passo que peças com números e símbolos matemáticos permitem fazer operações simples de aritmética. Caso se acerte no resultado, o robô fica com a cara iluminada a verde e rodopia numa dança vitoriosa; se a operação estiver errada, abana a cabeça e fica com a cara a vermelho.
“É uma forma mais fácil de aprender”
Estas foram apenas algumas das ferramentas expostas na escola Dona Filipa de Lencastre, havendo ainda braços eletrónicos capazes de examinar cubos e empilhá-los consoante o tamanho e a cor, assim como kits de robótica destinados a alunos mais velhos, munidos de guias práticos e tutoriais de aprendizagem recorrendo a programação gráfica e a linguagem Python.
Aguardando pela sua vez, algumas alunas iam trocando os cromos do Mundial2022, enquanto outros iam passando o tempo com brincadeiras. Ao SAPO24, Miguel, um dos estudantes presentes no local, partilhou o seu fascínio pelo robô Kubo e pelas suas potencialidades.
“É inteligência artificial, não é uma coisa que vemos todos os dias”, diz, considerando que a sua implementação na sala de aula fá-lo-á sentir-se “mais empenhado” porque este tipo de ferramentas “entretêm mais”. “É uma forma mais fácil de aprender, porque os professores podem exemplificar”, justifica, não sem recordar que o Kubo não substitui o ensino já vigente. “Eu faço as contas à minha maneira e depois o robô diz-me se acertei ou não”, aponta.
De volta ao posto da realidade virtual, dois alunos destacam-se pela altura. É normal, estão no 12.º ano e encontram-se ali a dar apoio e a orientar os mais novos como parte de um programa de voluntariado vigente na escola. Sebastião, de 17 anos, é um deles. Apesar destas ferramentas se direcionarem sobretudo à área das STEM — acrónimo em inglês para “Ciência, Tecnologia, Engenharia, Matemática —, este estudante, que optou pela área de economia, considera que estas soluções podem ser uma mais-valia para todos.
“Acaba por ser muito mais interativo e cativante. Nós tiramos partido deste tipo de ensino e eu consigo ver o seu potencial no futuro”, diz, defendendo que o uso desta tecnologia na sala de aula vale tanto para os alunos mais novos — “todos os miúdos que estiveram aqui ficaram super entusiasmados”, comenta —, como para os estudantes no Ensino Secundário.
O despontar deste tipo de soluções surge numa fase particularmente singular no ensino nacional, marcado por dois anos de pandemia onde foi necessário recorrer ao ensino à distância e aos modelos híbridos das aulas — ora presenciais, ora por videoconferência, ora em simultâneo para diferentes alunos. A esse respeito, Sebastião diz que foi também o que fez o digital conquistar o seu lugar à mesa da sala de aula em definitivo.
“Mesmo quando acabou o estudo à distância, essas tecnologias não desapareceram, ficaram um bocado no nosso dia-a-dia. Até mesmo os profs sentiram-se muito mais à vontade com as tecnologias e isso é uma boa oportunidade, agora que já percebemos que têm um lugar no ensino e que podem ser usadas,”, explica.
Apesar do alerta de que ainda há “uma grande barreira entre os professores e as tecnologias”, o estudante de 17 anos prevê, ainda assim, que “num futuro próximo, os professores se sintam cada vez mais confortáveis e que as escolas comecem a implementar nas aulas. Acho que era uma boa ideia, se os professores conseguirem assimilar esse tipo de tecnologias, ia ser benéfico para os alunos”, conclui.
“Não vemos o ensino como um robô a dar aulas”
A deixa de Sebastião dá azo então à pergunta: “mas estarão então os professores portugueses dispostos a ‘assimilar’ este tipo de tecnologias”? Bruno Coelho, responsável da secção de robótica da Beltrão Coelho, garante que há uma minoria cada vez mais numerosa a trabalhar para que a dita ‘sala de aulas do futuro’ se torne uma realidade.
“Temos algumas parcerias com associações de professores que pensam nos conteúdos a serem aplicados. Por exemplo, os óculos de realidade virtual que vocês viram têm muitos conteúdos. É importante que os professores possam dizer quais são os mais interessantes, escolhê-los e até desenvolvê-los. Há muitos que desenvolvem conteúdos que depois podem ser partilhados com a comunidade de professores naquela disciplina”, explica ao SAPO24.
Um dos exemplos que dá é o da já mencionada galeria com partes do corpo humano. “Em vez de se recorrer ao típico esqueleto que as salas de aula tinham, com os óculos de realidade virtual é possível ver o coração numa dimensão, aproximar-se mais ou menos o coração, ver os pormenores”, descreve. Além disso, o equipamento inclui um cubo cujo movimento os óculos reconhecem e cuja manipulação tem várias funções. “À medida que vão rodando o cubo, o coração está a rodar também. Se aproximarem o cubo dos óculos, veem mais perto, e se o afastarem veem mais longe”.
A Beltrão Coelho, de resto, não é alheia às particularidades do ensino. Fundada há mais de 70 anos, a empresa do ramo das Tecnologias da Informação tem estado ligada a vários programas de digitalização das escolas. Nomeadamente, forneceu equipamentos às primeiras salas TIC e, durante o Plano Tecnológico da Educação implementado em 2007, fez auditorias às redes das escolas e muniu-as de projetores de vídeo e quadros didáticos.
Agora, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, o Governo tem o objetivo de investir um total de 480 milhões de euros na criação de “Centros Tecnológicos Especializados” (CTE), tendo como objetivo reequipar e robustecer a infraestrutura tecnológica de estabelecimentos de ensino com oferta de cursos profissionais. Ao todo, pretende-se criar 365 destes CTEs até 2025 e a primeira fase de candidaturas a estes apoios — decorrida de 20 de junho a 31 de agosto — teve 311 participações para 108 vagas.
Além disso, a dotação às escolas deste tipo de equipamentos vistos no átrio da escola Dona Filipa de Lencastre também é possível através do Programa Impulso Jovens STEAM, outra iniciativa do PRR. Esta “prevê o reforço da promoção do ensino experimental das ciências e técnicas e da cultura científica no ensino básico e secundário, e ensino profissional, através do reforço da Rede de Clubes Ciência Viva na Escola, através da integração de 650 novos Clubes Ciência Viva na Escola, de todo o território nacional”, como se lê no primeiro aviso do Governo à fase de candidaturas, da qual resultaram 465 projetos aprovados.
Explicado o contexto, regresse-se ao papel da Beltrão Coelho perante estes apoios. “Neste contexto, fazia todo o sentido continuarmos a acompanhar aquilo que são as tendências mais atuais e poder apresentá-las nas escolas e estar presentes com eles neste caminho”, explica Bruno Coelho.
Na esteira do que fez a BCN — empresa portuense que já fez parte da Beltrão Coelho e entretanto autonomizou-se, mantendo ambas, ainda assim, relações próximas — na região norte, onde já fornece material a perto de 50 agrupamentos escolares, a Beltrão Coelho começou a lançar as bases nas zonas centro e sul.
O responsável pela robótica da Beltrão Coelho sublinha, contudo, que é importante desde logo garantir a recetividade da classe docente, para não correr o risco de “vir o dinheiro do PRR, comprar-se [os equipamentos], investir-se milhões em tecnologia, entregar-se às escolas e depois ficarem lá fechados dentro de um armário”. Daí a preocupação em “dar formação aos professores para que se sintam confortáveis, mesmo aqueles que já têm outra idade, para que possam sentir-se confortáveis para usar a tecnologia nas suas próprias aulas”.
O próprio contexto da pandemia, não obstante todas as suas consequências nocivas, ajudou a proporcionar essa transição, conforme falado com o jovem estudante Sebastião, algo que colhe concordância de Bruno Coelho.”Veio fazer com que já não seja tão estranho se um professor disser que a aula vai ser um formato misto”, por exemplo, e mesmo os professores que “à partida não estariam disponíveis preparados para isso, tiveram de se adaptar”.
É por isso que, segundo Bruno Coelho, a recetividade junto dos professores tem vindo a aumentar, particularmente daqueles ligados à iniciativa de ter CTEs nos seus estabelecimentos de ensino. E, para o responsável pela robótica da Beltrão Coelho, tal postura é essencial porque a exposição a estes materiais permite “ que as crianças saiam mais bem preparadas para o mercado profissional, prepara-as para aquilo que vai ser essencial, que é a programação”.
No entanto, há também a conceção da parte do entrevistado de que não só estas iniciativas têm de evitar pressupor que as STEM devem sobrepor-se por completo às humanidades e às artes, como também de que isto significa que o ensino deva tornar-se automatizado. Pelo contrário, deve ser “um complemento”.
“Não vemos o ensino como um robô a dar aulas. Eu pelo menos não gostava que isso acontecesse”, declara Bruno Coelho. “A componente humana de dar o sentimento necessário, ter o bom senso de perceber se aquele aluno naquele momento precisa de mais atenção ou não, o robô não vai conseguir fazer isso”, garante.
Com a tecnologia à mão, os professores passam a ser “os orquestradores de tudo”
Professores e autómatos, lado a lado, a ensinar os alunos do amanhã. Uma ideia futurista, quase utópica, mas será que bem recebida pelos docentes do presente? No que depender de Laura de Medeiros e Maria José Mira, sim.
“Isto não substitui os professores, mas é uma excelente ferramenta de apoio. Os professores deixam de ser os únicos transmissores de saber, eles e os livros. Os miúdos têm de saber procurar, porque o futuro deles não começa hoje, começou ontem ou anteontem”, diz a primeira, diretora do agrupamento de escolas Dona Filipa de Lencastre, ao SAPO24.
“Os nossos alunos vão ter profissões que ainda hoje não existem e as quais não conhecemos. A escola é o laboratório das profissões deles. E, portanto, cada vez mais, em vez de ser só apenas transmitir conhecimento, porque eles são ‘barras’ a pesquisar, o nosso papel é ajudá-los a filtrar isso, de sermos nós os orientadores, os orquestradores de tudo”, completa a segunda, professora de português e francês nesta escola, além de coordenadora de cidadania do 6.º ano, em colaboração com o projeto a Fábrica de Histórias.
Há, então, um entendimento conjunto de que o ensino apoiado por estas tecnologias passa não por desresponsabilizar o professor das suas funções, mas por dotá-lo de novas capacidades. Questionada se o facto de um robô poder ajudar a compreender a matéria de uma disciplina retira o docente de um certo pedestal pedagógico, Laura de Medeiros diz que, pelo contrário, torna a profissão “mais exigente”.
“Deixam de fazer sentido as aulas preconcebidas por um manual qualquer, por uma editora qualquer, não é? Já não são as aulas programadas em abstrato. Não, é aquele contexto, aqueles alunos ou aquele aluno”, explica, o que “dá um papel ao professor de uma maior relevância no sentido em que não é o único que transmite saber, é aquele que orienta”.
Em última análise, o uso dos meios digitais em sala de aula pode tornar o ensino especificamente orientado consoante as necessidades educativas de cada aluno, o que, segundo a diretora, vai ao encontro da máxima do agrupamento que gere. “Não somos para todos, somos para cada um dos alunos, e por sermos para cada um é que somos para todos, porque há diferenciação”, define.
O uso de ferramentas tecnológicas, adianta ainda, contribui ainda para a “autorregulação do próprio aluno daquilo que sabe”, ou seja, dá-lhe a capacidade de ir medindo o seu próprio progresso e permite-lhe comparar o seu grau de aprendizagem com os colegas numa lógica de colaboração.
Tudo isto, adiantam as duas responsáveis educativas, permite que se altere o tipo de modelo de ensino expositivo, em que o professor fala e os alunos ouvem, para formas de lecionar potencialmente mais recompensadoras. “A melhor aula é aquela em que o professor é completamente dispensado”, diz Maria José Mira, que cita o seu próprio exemplo enquanto docente de uma cadeira de cinema, lecionada aos alunos do 9.º ano da escola. “Quando eles já estão a fazer as curtas metragens, vou de grupo em grupo perguntar se precisam da minha ajuda. Ninguém precisa, estão na deles”, garante.
Isto porque, completa Laura de Medeiros, o elemento colaborativo na sala de aula é essencial. “Mais do que serem autónomos, eles precisam é uns dos outros, ajudam-se mutuamente. Há uma co-aprendizagem que é excelente”, afirma, considerando que o uso de tecnologia cria “ambientes inovadores de aprendizagem que são ferramentas de auxílio a muitas coisas que já fazíamos anteriormente. E como nenhum de nós aprende da mesma maneira, isto ajuda os alunos a autorregularem o que sabem, o que devem fazer. Porque o saber não é só saber coisas, tratam-se também de saberes procedimentais, e isto é que levam para a vida”.
Esta vontade de inovar, porém, não implica a abolição completa do modelo expositivo, que é útil e necessário em determinados contextos. Mas este, aponta a diretora, “não desenvolve competências, por exemplo, relativamente à pesquisa, relativamente à dúvida, relativamente ao traçar do seu próprio projeto”.”E a avaliação aí é certificativa, ou o aluno sabe ou não sabe, não serve para ajudar nada”, completa.
E é nessa lógica, acrescenta Maria José Mira, que é necessário que os docentes aceitem que há mudança tem de ser um todo. “Não adianta mudar só o espaço, só o equipamento ou só as tecnologias”, porque, se não houver uma mudança de mentalidade, vai “haver sempre professores que, mesmo sendo o manual digital, vão entrar, sentar-se na sua cadeirinha, e em vez de dizer, ‘abram um livro na página 99’, dirão ‘abram o livro digital na página tal’”.
Por outro lado, assume esta professora, os responsáveis educativos têm de “perder o medo de errar” no que toca à sua abordagem às tecnologias, pois o “percurso é o mais importante”. “Se eu tiver um aluno que sabe mais do que eu quanto a uma ferramenta qualquer, qual é o problema? Eu própria quase que sirvo de exemplo, passe-se a vaidade, porque mostro como é que eu aprendi com ele. E isso serve de incentivo aos outros, porque estamos todos lá a trabalhar para o mesmo”, justifica Maria José Mira.
Pela amostra do que viram nestes três dias no átrio da escola, os alunos — quer pelo fator brincadeira, quer pelo fator novidade — aceitam estas inovações de braços abertos, sendo a sua motivação o elemento mais recompensador. “No primeiro ciclo, os miúdos foram procurar livros, porque estiveram aqui, entraram nestas dimensões 3D. E foram à procura de mais informação relativamente a esta matéria”, garante Laura de Medeiros.
O reverso da medalha é que agora, depois de mostrar estes equipamentos, há a pressão acrescida de torná-los parte do quotidiano da escola. Quanto a isso, este agrupamento, não tendo ensino profissional, parte atrasado nas candidaturas. Mas Laura de Medeiros assegura que o Dona Filipa de Lencastre está a preparar-se para obter os apoios possíveis, tal como fez com o programa Fazer Acontecer, da Câmara Municipal de Lisboa, com o propósito de criar “aquilo que pomposamente chamamos a Sala do Futuro”.
O plano quer garantir que, pelo menos, há uma sala na escola com estas funcionalidades, plantando-se a semente para projetos vindouros, para que os alunos pelo menos se vão acostumando a estas tecnologias, frisa Laura de Medeiros. "Não podemos criá-los com uma linguagem do passado, porque eles estão no futuro. Mas fazer esta ponte é importantíssimo, sobretudo com os professores", conclui.
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