A presença de cães nas ruas de Cabo Verde, particularmente na cidade da Praia (ilha de Santiago), é visível mal se chega à capital. Muitos apresentam feridas e é raro o que não mostra sinais de agressão ou atropelamento.
Vivem nos campos, dormem nas praias, ocupam as entradas dos prédios ou das lojas, fogem do calor debaixo dos carros. Há cães velhos, embora raros, cadelas grávidas ou com sinais de parto recente, cachorros mal-escondidos em buracos de terra e cães menos jovens e adultos.
A população canina tem-se revelado uma dor de cabeça para as autoridades que se deparam com uma forte oposição dos que estão contra a forma como estes animais são capturados, mantidos após captura e abatidos, por eletrocussão.
Até há pouco tempo, o método de abate dos cães era o envenenamento por estricnina, disse à agência Lusa o vereador da Cultura, Ambiente e Saneamento da Câmara Municipal da Praia, António Lopes da Silva.
O autarca assume que os animais são capturados e, quando não são resgatados, abatidos por eletrocussão. É um tema difícil e desconfortável para a autarquia.
“Temos a consciência plena de que não é a abater os cães que se resolve o problema”, afirmou António Lopes da Silva, assegurando que a captura só acontece nos bairros sem campanhas de esterilização, que são a maioria.
Aí, os cães reproduzem-se e, ciclicamente, são capturados e levados para a lixeira onde serão eletrocutados se ninguém os for resgatar, a troco de 3.000$00 (cerca de 28 euros) por cão.
“Há bairros onde as campanhas de castração não chegam e o número de cães é tão elevado que, perante as queixas de moradores, a câmara tem de determinar a sua captura”, afirmou o vereador.
António Lopes da Silva garante que o que a autarquia faz é legal e está previsto no Código de Posturas Municipais, aprovado em 2014. E até reconhece alguma evolução em relação ao envenenamento.
As associações que defendem o bem-estar animal têm uma leitura diferente, como o movimento Comunidade Responsável que está a promover uma petição pelo fim do abate dos cães na Praia, a qual na sexta-feira contava com perto de 700 assinaturas.
Maria Zsuzsanna Fortes, voluntária do movimento, disse à Lusa que são cada vez mais as pessoas indignadas com o que se passa, que é de “uma crueldade fora do comum”.
“Os animais pagam o preço da negligência humana”, disse, contando que os cães estão a ser capturados como se fossem lixo. Um vídeo recente, publicado nas redes sociais, mostra a captura de um cão que é depois atirado para dentro de um camião do lixo, tal como outros produtos inertes. O seu destino: a lixeira.
Na lixeira municipal, contou Maria Zsuzsanna Fortes, os cães ficam instalados num espaço com quatro divisões, sem água, sem comida, em cima das fezes, às vezes ao pé de cadáveres, já que vão assistindo à morte dos animais.
O vereador António Lopes da Silva garante que quem recolhe os cães trabalha para a autarquia e teve formação para tal. No entanto, têm sido visíveis na cidade da Praia carrinhas de caixa aberta, onde são colocados animais por cidadãos que os recolhem e que não estão fardados como os funcionários municipais.
As denúncias nas redes sociais contam com testemunhos de jovens desempregados que recebem cerca de 300 escudos (2,7 euros) por cada animal capturado, situação não confirmada pelo autarca, que garante ser essa uma tarefa a cargo de funcionários responsáveis.
Nos últimos dias, alguns moradores indignados têm mesmo saído em defesa dos animais e conseguido libertar alguns que já se encontravam no interior dos veículos.
No texto que acompanha a petição contra a morte dos animais na Praia, o Movimento Comunidade Responsável recorda que “a eletrocussão é internacionalmente proibida por convenções internacionais, dos quais Cabo Verde faz parte”.
“A eletrocussão é proibida por causar um extremo sofrimento aos animais. No ânus dos animais, muitas vezes totalmente molhados e colocados dentro de uma caixa metálica, é introduzido um cabo com 380 volts. As veias do cão rebentam, os músculos convulsionam-se e até os ossos se partem por causa de tantas convulsões”, lê-se no documento.
O movimento acusa a autarquia de não respeitar um protocolo assinado entre as duas partes em março de 2018 e que “estabelece um método eficaz para a gestão ética da população canina, sem matar os animais ou causar-lhes qualquer sofrimento, providenciando cuidados e educando a população para a posse responsável do cão”.
António Lopes da Silva garante que a autarquia está a trabalhar na castração dos animais com as associações “interessadas em trabalhar” nesta área, embora reconheça que “não chega” a todos.
Em novembro passado, a Sociedade Humana Internacional — que reúne organizações de defesa do bem-estar animal em todo o mundo — escreveu uma carta ao presidente da Câmara Municipal da Praia a alertar para a publicidade negativa que estava a receber de Cabo Verde.
“A morte é completamente ineficiente no controlo da população de cães a longo prazo, assim como na redução das zoonoses” (doenças transmitidas aos humanos através dos animais), lê-se na carta a que a Lusa teve acesso.
Movimento apela ao PR de Cabo Verde para terminar com "chacina de cães" na Praia
O Movimento Civil Comunidade Responsável de Cabo Verde apelou hoje à intervenção do Presidente da República para terminar com "a intolerável situação de maus tratos dos animais" no país.
“A Câmara Municipal da Praia [ilha de Santiago] tem levado a cabo uma autêntica chacina dos cães errantes na cidade, ignorando todos os esforços das organizações da sociedade civil e cidadãos para a criação de uma aliança que vise o controlo sustentável e humanizado da população canina”, lê-se na missiva endereçada ao chefe de Estado.
A organização denuncia que “o departamento do Ambiente da Câmara Municipal da Praia faz circular uma viatura de recolha de lixo pela cidade com o intuito de capturar cães, levá-los para a lixeira e executá-los por eletrocussão 24 a 48 horas depois da captura, se não forem reclamados”.
“Os cães são capturados com extrema violência, privados de água e alimentação durante o período de cativeiro e executados através da colocação de um ferro com 380 volts no ânus”, prossegue a exposição da associação, dirigida a Jorge Carlos Fonseca.
A organização avança nesta carta que, em março de 2018, “a Câmara Municipal da Praia, na pessoa do seu presidente, assinou um protocolo” com o movimento, no qual “a autarquia assumia o compromisso de parar com as execuções e investir em métodos humanizados de controlo da população canina”.
Esse acordo, assinado entre ambas as partes, “nunca foi cumprido”, denuncia a organização.
“A Câmara Municipal da Praia está, portanto, a utilizar um método ineficaz e inútil e a perpetuar a violência gratuita contra seres vivos sencientes, que sentem dor, e medo da tortura”, lê-se na carta.
O movimento apela, por isso, ao chefe de Estado cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, pela “humanidade” que lhe reconhece, que, “em nome de toda uma comunidade indignada e consternada”, intervenha imediatamente “pelo fim desta situação”.
Portugal pode ajudar em alternativas à eletrocussão de cães vadios em Cabo Verde
O autarca com o pelouro do controlo dos cães na capital cabo-verdiana está disposto a equacionar outros métodos de abate de cães, além da atual eletrocussão, e tem o apoio das Ordens dos Veterinários de Cabo Verde e de Portugal.
O vereador António Lopes da Silva considera que o problema do excesso de cães na cidade da Praia não se resolve com o abate, mas reconhece que a medida tem de ser determinada sempre que “a quantidade de cães ultrapassa o equilíbrio”.
Apesar de sublinhar que a eletrocussão é legal, admite equacionar outros métodos e afirma mesmo que todo o apoio é bem-vindo no sentido de encontrar forma de a situação melhorar.
A bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários de Cabo Verde, Sandy Freire, disse à Lusa que esta organização é contra este método de abate e defende a constituição de uma equipa com pelo menos dois veterinários para realizar esta e outras operações de controlo da população canina, como esterilização e castração.
Contudo, admite que faltam profissionais em Cabo Verde e que os sete existentes na cidade da Praia estão em outras funções.
A veterinária acredita, contudo, que muito mais há a fazer e que “a captura e a eletrocussão dos cães em Cabo Verde são apenas a ponta do iceberg de um problema muito mais complexo”.
Para Sandy Freire, esta situação só acontece porque não existe uma política pública que determine as medidas de controlo dos animais.
Sem um quadro legal, disse, é quase impossível melhorar as coisas.
Questionado pela agência Lusa, o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários de Portugal, Jorge Cid, mostrou disponibilidade para ajudar Cabo Verde no que for possível a esta organização.
“Faremos o que for possível, com todo o gosto”, disse o bastonário, exemplificando esse apoio como protocolos de entreajuda, ações de formação, entre outros.
E acrescentou que basta a bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários, a Câmara Municipal ou o Governo contactarem a Ordem dos Médicos Veterinários portuguesas para esta ajudar, dentro das suas possibilidades.
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