É o trunfo do PSD (e do CDS) para destronar Fernando Medina na Câmara Municipal de Lisboa, onde o Partido Socialista manda há 14 anos consecutivos. Para espanto (e alguma desconfiança) de muitos, Carlos Moedas deixou o seu lugar de administrador executivo na Fundação Calouste Gulbenkian, para onde entrou no final de 2019, e aceitou o desafio de se candidatar à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, a maior do país.
O seu percurso na política é relativamente recente: foi coordenador do setor económico do Gabinete de Estudos do PSD e fez parte da equipa que negociou com o PS a aprovação do Orçamento do Estado para 2011. Nesse ano, foi cabeça de lista por Beja, de onde é natural, nas legislativas e foi eleito deputado à Assembleia da República. Acabou por tomar posse como secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. Em 2014 foi representar Portugal na Comissão Europeia, com a pasta da Investigação, Ciência e Inovação.
Não nega a sua costela: o pai, José Moedas, era um comunista convicto e respeitado na terra, fundador do "Diário do Alentejo". Foi graças a ele, garante, que aprendeu o significado da liberdade.
Bom aluno, pensou em tirar Medicina, até descobrir que não podia ver sangue: "Teria dado um péssimo médico", admite hoje. Em vez disso, licenciou-se em Engenharia Civil, primeiro, e depois foi para a Universidade de Harvard, onde fez o MBA.
E é exatamente pela sua capacidade de gestão e pela inovação que acredita que é possível transformar Lisboa numa cidade moderna e acolhedora, para os lisboetas e para os que vêm de fora. Em entrevista ao SAPO24, explica quais são os seus projetos e como pretende executá-los.
Devo tratá-lo por senhor vereador ou por senhor presidente?
Deve tratar-me por Carlos Moedas, que é o meu nome, e futuro presidente da câmara de Lisboa. Mas sempre Carlos Moedas. Ou Carlos, como lhe der mais jeito. O que achar por bem.
Se não for eleito presidente, fica na câmara com vereador?
Sempre disse que na minha vida, por norma, levo todos os mandatos até ao fim. Não sou um político de carreira, mas sempre que tive um mandato político levei esse mandato até ao fim. Tenho esta convicção profunda de que vou ganhar a câmara de Lisboa, mas sempre disse que ficarei para cumprir qualquer mandato e qualquer função que me seja dada por aqueles que são os cidadãos de Lisboa. E é muito importante que os políticos sigam essa regra.
Tenho esta convicção profunda de que vou ganhar a câmara de Lisboa, mas sempre disse que ficarei para cumprir qualquer mandato e qualquer função
Fala-se muito no facto de ter trocado a Fundação Calouste Gulbenkian pela candidatura à câmara de Lisboa. Um futuro certo pelo incerto, dizem. Foi assim?
Eu gostei muito de estar na Gulbenkian, gosto muito da Gulbenkian, mas há alturas na vida em que a pessoa tem de fazer uma determinada escolha. E senti, talvez por ter estado cinco anos em Bruxelas, que quando voltei a cidade estava adormecida. Senti que podia fazer alguma coisa para mudar a cidade. Isso levou-me a tomar uma decisão que até de racional tem pouco, porque tinha condições excelentes na Gulbenkian, gostava de lá estar, obviamente tinha um futuro à minha frente. É uma decisão muito profunda e, como diria Pascal, essas decisões são feitas com o coração e não com a razão. Achei que este era o momento de dar um sinal às pessoas de que se pode fazer política de maneira diferente, porque as pessoas estão cansadas dos políticos, estão cansadas da maneira de fazer política. E achei que posso ser, também, essa esperança numa maneira diferente de fazer política, que é uma maneira desprendida, porque realmente não preciso de estar na política.
Que pelouros gostaria de ter para si, quais os mais importantes em Lisboa?
Há pelouros que são cruciais e que têm sido maltratados. É exatamente uma das razões que me fez avançar. Por exemplo, o pelouro do Urbanismo, que tem corrido muito mal nesta câmara municipal. Estou a falar de um pelouro que está estagnado, em que as pessoas não conseguem obter respostas, os licenciamentos estão parados, alguém quer fazer uma pequena obra em sua casa e, muitas vezes, demora anos. É um pelouro crucial, porque é pensar a cidade. Daí ter ido buscar alguém totalmente fora da política, a Joana Castro e Almeida, uma urbanista portuguesa, engenheira de formação, exatamente por querer ter alguém que seja um gestor de processos, para que os processos possam avançar.
Falou em pelouros, quais são os outros?
Depois temos pelouros como o do Ambiente, que hoje é essencial. São as cidades que vão poder fazer essa transformação, fazer com que no futuro possamos viver numa cidade mais descarbonizada. E isso, mais uma vez, correu muito mal, porque Fernando Medina teve uma atitude de checklist: "Como vou fazer xis quilómetros de ciclovias?", "como vou estar nos rankings das cidades europeias?". Mas não o fez com as pessoas, vimos isso nas ciclovias, que não funcionam, que já mudaram quatro ou cinco vezes, sempre com o dinheiro do contribuinte, o que mostra uma incapacidade de planear e, sobretudo, um experimentalismo que não é bom para a cidade. Há pelouros muito importantes para o nosso futuro e, estando no poder ou na oposição, têm de ser escrutinados.
Em qualquer câmara municipal por essa Europa fora um presidente de câmara não sobreviveria àquilo a que Fernando Medina sobreviveu, que foi ter enviado 27 vezes informação de telefone, de email, de moradas, de contactos pessoais a uma embaixada como a da Rússia
Se não ganhar, como vereador fará uma oposição semelhante à que Rio tem feito a Costa ou Medina pode contar com uma oposição diferente?
Penso que as pessoas já perceberam o que vou fazer: escrutinar, que é o que faço sempre. Fiz isso, por exemplo, no caso das informações passadas pela câmara a uma embaixada estrangeira como a da Rússia. Fui o primeiro a reagir, o primeiro a dizer que isso era inadmissível, o primeiro a dizer que em qualquer câmara municipal por essa Europa fora - e talvez seja a minha costela europeísta - um presidente de câmara não sobreviveria àquilo a que Fernando Medina sobreviveu, que foi ter enviado 27 vezes informação de telefone, de email, de moradas, de contactos pessoais a uma embaixada como a da Rússia - fosse qual fosse a embaixada, mas neste caso é ainda mais chocante, obviamente. Muitas pessoas até disseram que não parecia o Carlos Moedas a falar, mas mostra que nos verdadeiros princípios, naquilo que são os valores da minha vida, reajo com força. Portanto, esteja onde estiver, estarei sempre a fazer esse escrutínio, que falta hoje em Portugal. Falta ao nível de Lisboa, mas também falta a nível nacional.
Preocupa-o os milhões que vêm para Portugal, do PRR, dos fundos comunitários 2030, e a forma como serão utilizados?
Portugal vai receber uma quantidade de dinheiro da Europa e, se não fizermos esse escrutínio, o caminho do país pode ser muito grave. E eu estarei na linha da frente para o fazer, seja na oposição, seja como presidente da câmara, porque aí também terei o meu papel. Hoje, o equilíbrio de uma grande cidade é ter à sua frente alguém que está também a escrutinar o governo, a lançar o desafio ao poder nacional. E penso que tenho todas as condições para o fazer.
Até porque há muitas negociações entre poder central e poder local.
Sem dúvida. Essas negociações são muito importantes e é importante que o poder local desafie o poder central. Em Portugal estamos hoje numa situação em que o poder nacional está nas mãos do Partido Socialista e o poder local de Lisboa, a maior cidade, a capital do país, também está nas mãos do Partido Socialista, e isso não é bom para os lisboetas e também não é bom para os portugueses. É importante que as pessoas percebam que para a presidência da câmara ganha aquele que tiver mais um voto, não há geringonças possíveis. É importante que vejam as alternativas: querem ficar com aquilo que têm, querem a situação que temos hoje em Lisboa, ou querem uma alternativa? Se querem uma alternativa, essa alternativa é protagonizada por mim.
Como é que os fundos europeus e o PRR devem ser usados por Lisboa, na sua opinião?
Aquilo que já está definido aponta para três ou quatro grandes ideias para Lisboa, cerca de 700 milhões de euros, sejam a linha de Metro até Alcântara, que eu apoio, o novo hospital para Lisboa e a habitação. Eu trarei a minha experiência para utilizar da melhor maneira esses fundos a que Câmara Municipal de Lisboa pode concorrer. Porque depois há quase 2,9 mil milhões que podemos ir buscar, seja na energia, seja no ambiente, seja no digital. E isso é uma grande ajuda, vou lutar muito por isso.
Depois do congresso do PS, há duas semanas, António Barreto escreveu um artigo a "bater" no Partido Socialista. O PSD ficou feliz. Se o PS é tão mau, por que motivo continua a ganhar eleições?
Primeiro, não há eleições neste momento, há sondagens e maneiras de fazer essas sondagens, há um ambiente propício. Quando temos uma pandemia, há medo de mudança. Em qualquer país, a qualquer momento, sabemos pelas pandemias do passado, as pessoas têm algum medo da mudança. É natural que haja na sociedade esse medo. Por isso a mudança tem de ser protagonizada por alguém que possa dar esperança às pessoas, mostrar que é possível. E é nisso que tenho trabalhado todos os dias, em mostrar que a mudança em Lisboa será positiva para a vida das pessoas. No fundo, aquele que está no poder está sempre a ganhar. Veja os anúncios do dinheiro que vem da Europa. Mas o dinheiro europeu não é do partido do governo, é de todos nós, é fruto do trabalho que foi feito pelo país desde a crise, que foi muito dura, com um primeiro governo em que tive muito orgulho em participar, e que a seguir se continuou - porque este governo falou muito, mas acabou por continuar as mesmas políticas para tentar resolver a situação. E essa situação grave foi resolvida pelos portugueses, não foi por um partido específico, mas, obviamente, aquele que está no poder agora aproveita-se disso. E as pessoas têm de ter a noção de que há um aproveitamento. Aliás, é interessante ver os anúncios de António Costa durante o congresso, são anúncios colados àquilo que é o papel dele como primeiro-ministro e não ao papel de líder partidário, e isso também me parece grave. O PRR não é um instrumento do Partido Socialista, é um instrumento dos portugueses.
Antes de avançar, e porque vem da área da inovação, gostaria de saber como olha para o facto de, apesar de estarmos na chamada era digital, os processos de candidaturas e de voto serem os mesmos de há 50 anos?
Penso que o mundo digital e o mundo físico estão desfasados e, no fundo, a maior parte das nossas instituições ainda vive num mundo que era puramente físico, não se adaptou ao mundo digital. Essa é também uma das vantagens que penso trazer a Lisboa, a minha experiência de comissário europeu de fazer a ligação entre esses dois mundos. E o problema é exatamente esse: como é que nos vamos adaptar, numa altura em que obviamente deveríamos ter voto digital? Deveríamos estar numa fase que não estamos - com todos os perigos que pode implicar, há sempre perigos de ataque, de falsificação, que também existem no voto físico. Esses passos vão ter de ser dados, mas para isso é preciso que tenhamos políticos que tenham essa visão da tecnologia - eu, como engenheiro, tenho-a - para nos irmos adaptando a essa mudança no dia a dia. [Daron] Acemoglu [e James A. Robinson] tem um livro muito conhecido, "Porque Falham as Nações", e elas falham pelas instituições. Penso que o que hoje vivemos é também uma crise das instituições, que não reagem rapidamente. Vemos isto também na questão do Afeganistão, em que a Comissão Europeia e o Alto Representante não conseguiam ter uma posição imediata, uma posição comum, porque as instituições ainda vivem nesse mundo físico. Vamos ter de trabalhar muito para que isso mude.
Fernando Medina prometeu 14 centros de saúde, fez um ou dois. O falhanço é total.
Gostava que me falasse de três problemas que, assim de caras, identifica em Lisboa e que me falasse das prioridades que tem para a cidade.
Temos problemas que são claríssimos, e que são falsas promessas de Fernando Medina, temas importantíssimos para a cidade. A habitação, em que Fernando Medina promete seis mil fogos para renda acessível e não os faz, a mobilidade, em que continuamos a falar da dificuldade do trânsito, e a saúde - onde os estados centrais estão a falhar, os sistemas nacionais de saúde estão a falhar e, por isso, os sistemas locais têm de ajudar; Fernando Medina prometeu 14 centros de saúde, fez um ou dois. O falhanço é total.
Comecemos então pela sua proposta na área da saúde...
Na saúde tenho propostas muito claras. Por exemplo, queremos que os mais velhos, pessoas com mais de 65 anos, que são 140 mil em Lisboa, das quais sabemos que 40 mil são carenciadas, tenham acesso a pelo menos duas consultas gratuitas por ano. Uma coisa simples. Que tenham acesso a uma linha de triagem, para quando telefonam poderem saber o que têm, terem uma prevenção oncológica diferente.
Isso é fácil de fazer? Porque, como disse, depois entram aí as instituições: SNS, ARS Lisboa e Vale do Tejo e por aí fora.
Neste caso o que proponho é um plano de saúde complementar com os privados. Não estou a dizer que vou resolver o problema do Serviço Nacional de Saúde, não posso. Defenderei sempre o SNS, mas temos de ter hoje a noção de que em Portugal 70% da despesa de saúde é pública, 30% é privada. Aquilo que é importante para as pessoas é ter acesso à saúde, é essa a literatura na Comissão Europeia, não divide entre público e privado, o que é importante é que as pessoas tenham acesso. Se eu tiver uma consulta gratuita, seja ela através do privado ou do público, essa pessoa vai poder identificar a sua doença antes, e isso também vai evitar custos futuros para o SNS. Sei que em Portugal estas coisas são sempre muito ideológicas, mas penso que as pessoas estão cansadas dessa ideologia, portanto, vamos resolver os problemas.
Falou na habitação e na promessa falhada de Medina das seis mil casas de renda acessível (até final de maio tinha entregado 391). Lisboa tem um parque habitacional velho, reduzido e caríssimo. Como pretende alterar esta realidade?
Tem hoje na habitação um sistema que leva a que só as pessoas muito ricas consigam comprar uma casa. As outras ou vão para um sorteio na câmara municipal, que é um totoloto, ou são inquilinas da câmara. Por isso, eu disse que vou tentar a isenção do IMT [Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis] para os mais jovens, aqueles que até aos 35 anos querem comprar uma casa. Vou dar um exemplo: numa casa de 250 mil euros, em que seja preciso pedir ajuda para dar 20 mil euros de entrada, ainda é preciso pagar mais oito mil euros de imposto. Obviamente não resolve tudo, mas é alguma coisa. Há que manter um programa de renda acessível, obviamente, mas é bom lembrar que este programa que Fernando Medina desenhou não funcionou, e é importante criar outras soluções, em que temos cooperativas, em que temos maneiras de a câmara fazer toda a reabilitação de imóveis devolutos, que são mais de dois mil em Lisboa.
A questão, parece-me, é que é difícil um jovem ter 250 mil euros comprar uma casa em Lisboa. A CML, que é o maior proprietário de imóveis em Lisboa, podia alterar isto?
É o maior proprietário e depois faz coisas que eu diria sem sentido. Uma parte dos seus edifícios estão abandonados e fechados - antigamente tinham uma plaquinha a dizer "Câmara Municipal de Lisboa", hoje nem consigo encontrar na maior parte deles. Muitos são colocados em hasta pública, para vender para escritórios ou para grandes fundos de investimento. Depois, temos de acelerar os licenciamentos, porque a única maneira de diminuir os preços é aumentar a oferta, uma regra básica da economia. E para isso também temos de ter um sistema de licenciamentos que funcione mais rapidamente. Ninguém me pode dizer que os licenciamentos em Lisboa funcionam bem. Não funcionam, e toda a gente sabe disso. Se funcionassem com maior celeridade, isso também se refletiria de outra forma no mercado imobiliário.
Em que zona de Lisboa mora?
Vim para Lisboa com 18 anos e fui viver para um quarto - na altura, quando a pessoa vinha da província para a universidade, era assim - em Campo de Ourique, na Rua Ferreira Borges. E tenho vivido sempre na freguesia de Campo de Ourique desde então, apesar de ter estado muitos anos fora.
Quando regressou a Lisboa, passados esses anos, que cidade encontrou, que mudanças sentiu?
Chamou-me sempre muito a atenção o lixo e a cidade suja - às vezes são pequenas coisas que nos chamam a atenção. Lisboa é uma cidade suja, que não é cuidada, e isso chama-me muito a atenção, não só a mim, mas também a muitas pessoas que eu cá trazia. Chamava-me também muito a atenção aquela divisão com a linha de Cascais, em que se corta a ligação entre as pessoas e o rio, a partir de Belém. As pessoas diziam-me: "Mas, a cidade está dividida". Esse é um dos projectos que gostaria de trabalhar ou deixar como marca, substituir essa linha de Cascais até Algés por um metro de superfície ou então desnivelar, enterrar, fazer qualquer coisa para que as pessoas possam ter acesso directo ao rio. Cá está algo que sempre me impressionou. Mas, sobretudo, aquilo que me impressionou foi sentir que Lisboa estava dividida entre uma cidade que as pessoas não veem, não sentem, uma cidade de bairros municipais degradados a um ponto que a pessoa diria que não está em nenhuma capital europeia. Aliás, não conheço muitas em que este nível de degradação dos bairros municipais exista, em que as pessoas vivam sem janelas, com as escadas partidas, sem portas e emparedadas. Tudo isso me chocou quando voltei para Lisboa. Mas há um ponto, talvez, que me toca ainda mais, porque vinha da área da inovação, das empresas, de mudar o mundo, que foi sentir duas coisas: que os jovens já não acreditam que se possa mudar, que há uma certa apatia, sentem que não há oportunidades.
E o que pretende fazer em relação a isso? Imagino que esteja a falar de empresas e da criação de emprego.
Acho que também aí tenho um papel importante. A minha ideia é trazer para Lisboa esta fábrica de empresas que vou construir com Nuno Sebastião, o homem que criou a Feedzai, uma empresa que hoje vale mais de mil milhões de euros, para termos em Lisboa feiras, como é a Web Summit, e muito bem...
Em Lisboa temos muito esta criação de empresas que não crescem, uma startup que fica startup a vida toda.
Interrompo para dizer que a Web Summit não é consensual. As edições de 2019 e 2020 custaram à câmara de Lisboa 8,4 milhões de euros e ninguém sabe qual o retorno dessa aplicação. Sabe?
Muita gente não gosta da Web Summit e o subsídio é brutal. Essa é uma boa pergunta ... Penso que seria muito mais importante investir naquilo a que eu chamo o processo da inovação: como é que eu crio uma empresa e vou de uma intenção até ao produto final. E isso não é, como muitas pessoas pensam, ter uma ideia e alugar um espaço com uns amigos. Tem uma disciplina do dia a dia, que em França se chama Estação F (Station F) e em Berlim chama-se Rocket Internet, que são sítios em que as pessoas entram e são acompanhadas nas várias fases do projeto, em cada passo. Quando é preciso ir buscar investidores, sabem onde vão usar os investidores. Quando é preciso mais marketing, sabem quem são os melhores marketeers, e com isso criam empresas que crescem. Em Lisboa temos muito esta criação de empresas que não crescem, uma startup que fica startup a vida toda.
Ou acaba por vender alguma patente...
Ou que acaba a vender a patente e a empresa desaparece ou sai de Portugal. Destes unicórnios, como se diz agora, que aparecem em Portugal, só a Feedzai tem sede em Portugal. Todos os outros, apesar de serem portugueses, e temos muito orgulho neles, saíram do país. Estamos a falar de cidades como Lisboa, que não conseguem reter essas empresas. O que mostra que temos de ter aí um trabalho, daí o projecto de um hub no Beato, transformá-lo numa verdadeira fábrica de empresas (e não num projeto imobiliário de arrendamento para empresas).
Temos uma empresa caótica, que é a Gebalis, cuja gestão vou ter de resolver nos primeiros 100 dias.
Qual vai ser a sua relação com as empresas municipais, a maioria, senão todas, deficitária e que vive de subsídios da câmara, da EGEAC à Carris?
Temos uma empresa caótica, que é a Gebalis, cuja gestão vou ter de resolver nos primeiros 100 dias. Lisboa tem duas mil casas, dois mil fogos fechados, e uma pessoa entra em alguns bairros - vi isto em Santa Clara e noutros bairros que tenho visitado - e há casas emparedadas ao lado de famílias sem casa, é chocante. Seja um senhor que está fechado num terceiro andar por não ter mobilidade, quando há uma casa vazia no rés-do-chão, seja uma família de cinco filhos num T1, quando ao lado há um T3. Tudo isto é inaceitável. E isto é gestão, é o que faço bem, não percebo sequer como é possível. Depois temos empresas como a EMEL, que se tornou punitiva para as pessoas. Obviamente, tem de haver parqueamento, e defendo que os lisboetas tenham uma vantagem em relação ao parqueamento em Lisboa, mas a EMEL tem de ser amiga das pessoas. Por exemplo, quem tem um dístico de morador sabe que à noite a EMEL não fiscaliza. Acontece que vêm estacionar os de fora e as pessoas do bairro não têm lugar. A EGEAC é daquelas coisas muito portuguesas, temos a EGEAC e ao mesmo tempo um serviço de Cultura na câmara. O que fazem um e outro, quem sabe?
Neste mandato, só nos primeiros três anos, Medina pagou 196 milhões de euros em subsídios. Qual vai ser a sua política de atribuição de apoios?
Há algo que para mim é claro, que são os subsídios. A máquina mais honrada, ética e transparente a dar subsídios é a Comissão Europeia. Pode-se criticar, mas a Comissão Europeia tem regras claríssimas em relação à atribuição de subsídios: os políticos não tomam decisões sobre subsídios, são painéis técnicos e pessoas da área que o fazem. O que se passa aqui, sobretudo na cultura, é que muitos dos subsídios são dados por amizade a um projeto, porque se gosta desta ou daquela pessoa, porque há uma opinião política. Penso que temos de ser muito claros, os subsídios da câmara não podem ser dados dessa maneira. Aí, trarei um pouco aquilo que é a escola europeia, a escola de que o político não toma essa decisão. E isso é uma grande libertação, porque não sou eu que vou dizer que uma instalação de arte ou um teatro ou um projeto cultural é melhor do que outro. Não posso fazer essa avaliação e, se a fizer, só posso estar a fazê-la mal. Que é o que está a acontecer na câmara municipal e na atribuição desses subsídios. Comigo, não terá lugar.
É de Beja, chegou a ser cabeça de lista por lá nas legislativas de 2011 e foi eleito. Gostava que me falasse um pouco de como veio para a capital e daí para a Europa para depois regressar a Lisboa.
Nasci em Beja em 1970, fiz toda a escola primária e secundária em Beja, era muito bom aluno, vim para Lisboa e, como não podia ver sangue, não fui para Medicina, acabei por ir para Engenharia Civil.
Continua sem poder ver sangue?
Ai, não, não posso. Teria sido um péssimo médico.
Ter tido um pai comunista ajudou-me numa certa liberdade que tenho.
Voltando a Beja, ainda tem uma costela comunista ou de esquerda?
Fiquei com... Bem, primeiro, o grande amor que tinha pelo meu pai, que era um comunista muito livre, e que me ensinou a pensar e a criticar o próprio Partido Comunista. E ter tido um pai comunista ajudou-me numa certa liberdade que tenho.
Também vivi aquilo a que Álvaro Cunhal chamou a superioridade moral dos comunistas. E hoje essa superioridade moral de uma certa esquerda é muito perigosa para a democracia.
Não foi só para contrariar?
Não foi só para contrariar, até porque, historicamente, no Alentejo havia autarcas comunistas e que eram homens muito trabalhadores. Não tenho qualquer dogma. Mas também vivi aquilo a que Álvaro Cunhal chamou a superioridade moral dos comunistas. E hoje essa superioridade moral de uma certa esquerda é muito perigosa para a democracia, porque é uma superioridade moral que diz "o Carlos Moedas é mau porque não é de esquerda" ou "todos os que não são como nós são maus". E essa superioridade moral vêmo-la no discurso político do dia a dia, e lutarei sempre contra ela, porque ninguém tem essa superioridade moral.
O Partido Socialista tem esta ideia, como dizem os franceses, L'État c'est moi [o Estado sou eu]
O que separa o PSD do PS? Com Rui Rio as coisas nem sempre são claras.
Separam-nos o amiguismo, o compadrio, as decisões tomadas... O PSD é um partido que começa com os pequenos comerciantes, os notáveis das aldeias e das cidades, as pessoas que estavam a empreender, a lutar pela vida. Não é um partido que pense que o Estado é ele. E o Partido Socialista tem esta ideia, como dizem os franceses, L'État c'est moi [o Estado sou eu]. E isso penso que nos distingue, deixa-nos a anos-luz uns dos outros. E tem-se visto nos últimos anos em Portugal com um Partido Socialista que acha que é realmente o dono do sistema.
E, já falámos nisto, ainda assim continua no poder. Porquê?
Pois, isso é uma pergunta a que os eleitores vão, com certeza, responder.
Não faz esta pergunta a si mesmo?
Faço, obviamente, todos os dias. Porque vejo o que se está a passar e luto muito para o dizer às pessoas. Há pouco falou no artigo de António Barreto a propósito do congresso do PS, também o li. Ele falava numa "letargia", eu falo num amolecimento ou adormecimento da população. Penso que a pandemia juntamente com este sistema que vivemos do Partido Socialista veio amolecer as pessoas. E esse amolecimento é quando as pessoas já não acreditam em nada. Eu vou lutar até à última gota que tiver para mudar isso e dizer "podemos estar melhor, não temos de continuar assim".
A oposição não tem uma quota-parte de responsabilidade?
Sem dúvida, temos todos. É um país onde é muito difícil estar na oposição, há muito poucos meios, os partidos têm cada vez menos recursos. Quem está no poder tem sempre mais recursos, maior capacidade. O exemplo de Fernando Medina é paradigmático: no outro dia uma parangona anunciava que ia gastar 260 mil euros na campanha. Mas na última [2017] ele gastou mais de 400 mil. E uma pessoa pergunta-se porque é que vai gastar muito menos agora, e penso que a resposta está aí: é porque gasta como presidente da câmara com o dinheiro dos contribuintes, com cartazes que são da câmara, com meios que são da câmara, isso é óbvio.
Se for eleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, qual a primeira medida que vai tomar?
Tenho várias, mas a primeira de todas tem que ver com esta ideia de reduzir os impostos aos lisboetas. Gostaria de, simbolicamente, deixar esse sinal logo nos primeiros dias, fazer tudo para que aquilo que é o IRS que deixamos nas mãos da câmara municipal, que são 32 milhões de euros, seja devolvido aos lisboetas. As pessoas não podem continuar com mais e mais impostos. Depois, medidas na área da sustentabilidade, transportes públicos gratuitos até aos 23 anos e a partir dos 65 anos e continuar a partir desse primeiro dia a desenvolver o plano para que os transportes públicos sejam melhores em Lisboa - quem já esteve lá fora sabe que temos uma rede de transportes públicos muito limitada e muito má em Lisboa.
Se pudesse fazer uma pergunta a Fernando Medida, qual seria?
Já lhe fiz tantas perguntas... Uma seria porque é que aquilo que apresenta agora para os lisboetas é exatamente o que já apresentou em 2017 - as creches gratuitas é diferente, mas só as faz em 2025, o passe único já existe e a habitação acessível falhou. Portanto, como alguém que está há tanto tempo como presidente na câmara municipal, não tem uma maior imaginação, até por aquilo que sabe, uma visão para Lisboa?
Tem três filhos, qual a principal diferença entre a educação que teve, em Beja, e aquela que dá aos seus filhos?
Costumo dizer que os anos 70 eram um bocadinho ainda a preto e branco. Mas tive uma infância muito alegre, em que saía de casa de manhã para ir brincar com os meus amigos e voltava às oito da noite, a minha mãe nem sabia onde eu estava. Havia uma grande liberdade, pegava na bicicleta e fazia não sei quantos quilómetros para ir até à barragem de São Brissos. Não havia telemóveis, era uma vida muito diferente da que temos hoje. Mudou muito este aspeto de as pessoas acharem que podemos ter risco zero na vida. Conforme a nossa sociedade foi evoluindo e Portugal, de certa forma, foi avançando, os pais tornaram-se muito mais avessos aos riscos. E temos a tendência de proteger de mais os nossos filhos, não os deixar exporem-se a certos riscos que os ajudam a crescer e que fazem parte daquilo que foi a nossa juventude. Eu cometo o mesmo erro, embora tente não o fazer. E vemos como foi na pandemia. As pessoas acham que vamos todos para casa, fechamos as portas e é risco zero. Mas pode cair-nos o telhado em cima. Penso que isto é muito importante, até porque se tivermos outras pandemias no futuro, e estudei muito isto com o Pedro Simas, como é que vamos conseguir manter a cidade aberta, não fechar tudo e voltar para trás? Porque isso mata a economia e mata-nos a todos, estamos a ver o sofrimento em que muitas pessoas estão. Temos de ter mais consciência de que o risco está aí, existe e é a vida.
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