“É surpreendente a frequência com que ouvimos e lemos notícias que nos deixam com uma certa ideia de que o país se encontra numa situação de democracia amordaçada”, criticou Cavaco Silva, numa participação, por videoconferência, na Academia de Formação Política das Mulheres Sociais-Democratas.

O antigo primeiro-ministro fez, em pouco menos de meia hora, duros ataques ao Governo, quer na gestão na pandemia, quer na relação com as entidades independentes quer até no processo de construção europeia, alertando que Portugal poderá ser ultrapassado por todos os países da zona euro em poucos anos.

No capítulo da pandemia, Cavaco falou de um Serviço Nacional de Saúde “fragilizado por decisões erradas e graves” por parte do “governo da geringonça”.

“Respira-se um sentimento de resignação relativamente às autoridades responsáveis pela gestão da crise pandémica. Mas não podemos deixar de sentir uma certa vergonha ao ver Portugal como recordista em número de mortos por milhão de habitantes, como aconteceu há poucas semanas”, disse, saudando, por outro lado, que o processo de vacinação pareça estar “agora a correr bem”.

Ainda sobre a crise sanitária, Cavaco elogiou o deputado e médico do PSD Ricardo Baptista Leite, considerando que “tem falado com uma autoridade e clareza que tem gerado evidente incómodo” nos governantes.

No entanto, Cavaco Silva alertou que, se o tempo pandémico pode ser de “suspensão da normalidade”, o escrutínio do Governo não pode parar.

“O escrutínio do Governo não está suspenso, a prestação de contas não está suspensa, a democracia não está suspensa, não pode estar suspensa”, afirmou, defendendo que “os erros têm de ser apontados e as alternativas evidenciadas”.

Além de alertar para “o empobrecimento relativo” do país em relação aos outros Estados membros da União Europeia, Cavaco Silva centrou parte da sua intervenção no que chamou de “deterioração da qualidade da democracia a que a geringonça conduziu o país”.

“É chocante o sentido de impunidade que irradia de algumas atitudes e comportamentos do atual Governo”, disse, na iniciativa promovida por esta estrutura do PSD e transmitida nas redes sociais do partido.

Como exemplos, Cavaco aludiu à acusação de alguns governantes - incluindo o primeiro-ministro - de quem critica o Governo são “antipatriotas que promovem campanhas internacionais contra Portugal”, mas também outras polémicas recentes, como a escolha de um nome para procurador europeu diferente do que tinha sido escolhido pelo júri internacional.

A não recondução quer do ex-presidente do Tribunal de Contas Vítor Caldeira, de quem destacou a “integridade e competência”, quer da anterior Procuradora Geral da República Joana Marques Vida, a quem elogiou a “imparcialidade e dinâmica” que trouxe à investigação criminal, foram outros dos exemplos apontados pelo ex-Presidente da República.

“A isto se juntam tentativas de controlo e desqualificação e desrespeito das entidades independentes da nossa democracia, como Banco de Portugal, Conselho das Finanças Públicas, UTAO ou Cresap, entre outros”, disse, apontando ainda notícias recentes que dão conta da “falta de transparência do Orçamento do Estado”.

Cavaco Silva alertou que episódios como este já “ultrapassaram fronteiras”, e disse ter lido com “imenso desgosto” na revista “The Economist” que Portugal tinha passado da lista dos países de democracia plena para o grupo de países “com democracia com falhas”.

“Numa altura em que nos aproximamos do cinquentenário da Revolução do 25 de Abril, devemos ficar muito preocupados com estes sinais de democracia amordaçada divulgados pela comunicação social, que manifestamente não fazem justiça aos que se bateram por uma democracia plena do tipo ocidental em Portugal, a começar por Francisco Sá Carneiro e Mário Soares”, afirmou.

Cavaco defende que PSD tem de atrair eleitores que votaram PS

O ex-Presidente da República defendeu que, para voltar ao poder, o PSD terá de conseguir atrair “eleitores que votaram PS” no passado, aconselhando os dirigentes sociais-democratas a evitarem falar sobre “outros partidos”, numa alusão ao Chega.

Cavaco Silva deixou fortes críticas ao atual Governo, mas também fez questão de falar para o partido que liderou, considerando que este tipo de iniciativas tem de debater “a estratégia mais adequada” para o PSD voltar ao Governo.

“Em minha opinião, o ponto central duma estratégia que possa ter sucesso é a identificação do adversário político do PSD. Parece-me claro que o adversário político do PSD é o atual Governo e o partido de que ele emerge, havendo que não dispensar esforços em relação a qualquer outro partido”, disse.

Referiu ainda que a tarefa do PSD passa por “denunciar erros e omissões, violações das regras do Estado de Direito, falhas de respeito pela independência do poder judicial e tentativas de amordaçar a democracia por parte do poder socialista”.

“Trata-se de defender políticas alternativas adequadas para resolver os problemas do país, mas nunca recorrendo a insultos, respeitando sempre as regras da boa educação”, afirmou, salientando que a luta política faz-se “entre adversários e não entre inimigos”.

Para Cavaco Silva, o objetivo principal da social-democracia tem de ser “atrair eleitores que nas últimas eleições votaram no PS”.

“Sem isso, o PSD não conseguirá liderar uma mudança de governo”, avisou.

Para tal, chega mesmo a aconselhar os dirigentes sociais-democratas a evitar “múltiplas perguntas sobre outros partidos políticos”, considerando que têm por objetivo “impedir que eleitores que no passado votaram PS se sintam inclinados a voltar à área social-democrata”, numa referência implícita a questões frequentes sobre eventuais alianças com o partido Chega.

“É fundamental não cair nessa armadilha, seria importante que esta Academia desse formação às mulheres sobre como não responder a uma única pergunta que lhe seja dirigida sobre os outros partidos, quaisquer que eles sejam”, aconselhou.

Na sua intervenção, sublinhou também que foi pela “via reformista e gradualista” que o PSD conseguiu gerar maiorias absolutas e, alem do fundador Francisco Sá Carneiro, apenas nomeou outro ex-líder do partido, Pedro Passos Coelho, destacando a sua tarefa “de resgaste da bancarrota a que o governo socialista conduziu o país”.

“A crise de identidade que afeta tantos partidos não se coloca no PSD, que não precisa de ser nem de direita nem de esquerda”, defendeu, considerando que essa dicotomia está ultrapassada na qualificação de governos da União Europeia.

“Há que afirmar a social-democracia como a melhor alternativa para Portugal e ir buscar as melhores e os melhores para servir Portugal com competência, verdade e seriedade”, disse.

Nos poucos minutos que dedicou exclusivamente ao tema das mulheres, Cavaco Silva disse que têm contribuído para fazer do PSD “um partido interclassista, vivo e exigente, com clareza de princípios e de posições”.

Cavaco Silva recordou a intervenção que fez no primeiro encontro das MSD, em 1987, e considerou que se registou algum avanço na participação feminina durante os seus governos (em que teve 12 mulheres, três delas ministras”.

“Certamente, aquém do desejável”, admitiu, reiterando ser importante “reforçar a voz feminina na política”.

[Notícia atualizada às 12:30]