A manifestação anti-Putin aconteceu em janeiro, mas os ativistas quando souberam que os seus dados tinham sido partilhados enviaram uma queixa em março para quatro entidades: Câmara Municipal de Lisboa (CML), Ministério da Administração Interna (MAI), Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e Comissão de Proteção de Dados (CNPD).

Das quatro em causa só a autarquia respondeu. Ainda assim, fê-lo mais de um mês depois e apenas para esclarecer que enviou um e-mail à embaixada russa a pedir para que fossem apagados todos os dados pessoais (que incluem nome, morada, número de telemóvel) dos organizadores da manifestação.

Segundo avança a RTP, que entrevistou um dos visados, o mail enviado pelos ativistas torna claro que o Governo português foi informado da delação da Câmara de Lisboa cerca das 18h21 do dia 18 de março. À estação pública, o MAI diz que a reclamação feita foi dirigida às entidades com competência na matéria — sem, contudo, esclarecer quais. Já o MNE diz que até ao momento não encontrou qualquer registo da reclamação.

À agência Lusa, que pediu uma reação à notícia da RTP, o MAI informou que "não procede ao tratamento nem partilha de dados relativos a promotores de manifestações. Tendo a reclamação em apreço sido dirigida às entidades com competência na matéria, não caberia a este ministério substituir-se às mesmas". Mais, garante ainda que as "forças de segurança, para efeitos de segurança dos participantes e garantia da ordem pública, apenas promovem o contacto com os organizadores".

Também numa resposta enviada à Lusa, o MNE garante que "não recebeu, através do seu endereço institucional de correio eletrónico ou do gabinete do ministro, qualquer mensagem" relacionada com a partilha de dados de ativistas russos.

"Da pesquisa realizada ontem, depois da notícia de que teria sido enviada queixa dos promotores ao MNE, resultou, entretanto, a informação de que o gabinete do secretário-geral do MNE recebeu, em 18 de março passado, uma mensagem eletrónica de uma cidadã com nacionalidade portuguesa, que apresentava queixa por violação de direitos constitucionais como cidadã portuguesa", refere o MNE.

Segundo o Ministério tutelado por Augusto Santos Silva, a queixa referia-se a atos praticados por funcionário da Câmara Municipal de Lisboa e era dirigida a esta autarquia, assim como à Comissão Nacional de Proteção de Dados, além do MNE e do MAI.

O MNE justifica que a mensagem "não suscitou diligências dos serviços administrativos do MNE" por estar "corretamente dirigida às entidades competentes em razão da matéria", designadamente a Câmara Municipal e a Comissão Nacional de Proteção de Dados, e porque o Ministério dos Negócios Estrangeiros "não é competente no assunto da queixa".

O MNE considera que era competência deste Ministério caso "se tratasse da ‘violação de direitos’ de ‘cidadã portuguesa’ residente no estrangeiro", não sendo este o caso. "Talvez por isso, não foi recebida desde então qualquer outra diligência da cidadã referida", precisa o MNE.

O Ministério acrescentou ainda que os serviços do MNE não transmitiram a mensagem ao gabinete do ministro ou de qualquer dos secretários de Estado, tendo o Governo só tomado conhecimento do caso esta semana pela comunicação social.

A RTP avança que a CML, na resposta enviada ao ativista em abril, explicava que era um "procedimento habitual adotado há vários anos" e que tinha pedido às autoridades russas para apagarem os dados pessoais.

Os ativistas pretendem avançar com uma queixa em tribunal contra a CLM e assumem que Fernando Medina deveria de sofrer as consequências (por demissão ou perda nas eleições) para evitar que este tipo de situações se repita.

O caso originou uma onda de críticas e pedidos de esclarecimento da Amnistia Internacional e de partidos políticos, além de Carlos Moedas, candidato do PSD à Câmara de Lisboa, ter pedido a demissão de Fernando Medina.

"É preciso tirar lições"

Marcelo Rebelo de Sousa comentou hoje o caso no final de uma missa ecuménica na Catedral de São Paulo da Igreja Lusitana, em Lisboa.

Interrogado, por várias vezes, sobre notícias que indicam que o Governo teria conhecimento destas práticas de partilha de dados pessoais de promotores de manifestações e, também, se o primeiro-ministro, António Costa, o chefe de Estado colocou a questão em outros termos.

"O que há de lamentável é o facto de direitos de cidadãos serem questionados - neste caso, direitos de russos, mas poderiam ser de direitos de outros estrangeiros, ou poderia ser de portugueses. Alguns deles são também portugueses. Se isto acontecesse com portugueses, era exatamente a mesma a gravidade da situação", começou por responder.

Para o Presidente da República, "o que importa é assegurar a proteção de direitos".

"Se essa proteção se assegura de forma a implicar uma alteração de comportamentos administrativos, então mudem-se os comportamentos administrativos; se é um problema de lei, porque está desatualizada, então repense-se e altere-se a lei; se é um problema de aplicação concreta da lei, então que não se adotem esses comportamentos", sustentou o chefe de Estado.

Ou seja, para o Presidente da República, a partir de agora, "devem retirar-se lições para futuro para que isto não se repitam" - lições "a todos os níveis".

"Falou-se num nível de autarquia local, mas podia ser noutro setor da administração pública. Quando está em causa matéria de direitos fundamentais, tem de se estar sempre muito atento para que esses direitos sejam protegidos, como a Constituição e a lei preveem", completou.

Interrogado sobre a possibilidade de a partilha de dados de promotores de manifestações ser uma prática generalizada no país, Marcelo Rebelo de Sousa respondeu: "Caso seja uma realidade que não se resolve mudando só os comportamentos administrativos, sendo necessário clarificar a lei, então acho que vale a pena pensar em clarificar a lei".

"Nesse caso, há uma palavra a dizer pelo parlamento", indicou.

Questionado sobre o facto de queixa dos ativistas anti-Putin ter também chegado aos ministérios da Administração Interna e dos Negócios Estrangeiros, o Presidente da República contrapôs que "a gravidade não está em ser A, B ou C por si mesmo".

"O essencial da gravidade não é ter chegado ou não ao Ministério. É preciso proteger direitos e importa proteger os direitos onde quer que haja o risco de eles serem atingidos - direitos que dizem respeito à proteção de dados pessoais", alegou o chefe de Estado.

Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, hoje "há uma preocupação com os dados pessoais que não havia há 40 ou 30 anos".

"Mas esse, cada vez mais, será o direito do futuro. Logo, é preciso alterar o que vem do passado, seja a lei, sejam os procedimentos administrativos ou o comportamento das autoridades, tendo em vista acompanhar a mudança inevitável", acrescentou.

Perante a insistência dos jornalistas na questão de que o primeiro-ministro tem estado em silêncio sobre este caso, o chefe de Estado argumentou que não é comum um Presidente da República falar sobre questões autárquicas.

"Só falei nesta questão por envolver direitos dos cidadãos. Entendi que em termos gerais não podia deixar de me pronunciar", justificou.

(Notícia atualizada às 19h24)

*Com Lusa

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