Nos últimos meses, à medida que a generalidade da população foi sendo vacinada, surgiram relatos de alterações nos ciclos menstruais, embora nenhum estudo formal tenha ainda analisado a questão.

Tudo começou quando a antropóloga biológica americana, especializada em saúde reprodutiva, Kathryn Clancy, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, começou a ouvir relatos de vários casos de vacinadas que identificaram alterações menstruais, incluindo o seu caso e o de Katharine Lee, da Universidade de Washington em St. Louis. Clancy decidiu assim perguntar no Twitter se mais alguém tinha notado alguma alteração, surpreendida com o volume das respostas acabou por criar, com Lee, uma base de dados online para outras pessoas poderem registar a informação e, segundo o NPR, recolheram mais de 140 mil relatos.

Os relatos descreviam alterações nos seus ciclos menstruais após terem sido vacinadas, desde ciclos irregulares – antecipados ou atrasados –, a menstruações mais ou menos dolorosas e hemorragias mais leves ou abundantes.

Algumas mulheres, já na menopausa, também partilharam histórias sobre hemorragias pela primeira vez em anos e muitas questionavam se as vacinas poderiam ser a razão.

No entanto, muitas das pessoas vacinadas não observaram quaisquer mudanças, ou, pelo menos, não as reportaram. Ao Guardian, a investigadora do Illinois, que estuda o impacto do ambiente nos ciclos menstruais, acrescentou que as mudanças relacionadas com a toma da vacina não parecem afetar um grande número de pessoas nem durar muito tempo ("um a dois ciclos, no máximo").

Contudo, as alterações dos ciclos menstruais não estão entre os efeitos secundários listados para quaisquer vacinas contra a covid-19.

Agora, investigadores de cinco instituições, apoiados por financiamentos do National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, vão estudar se as vacinas realmente afetam a menstruação.

Lee e Clancy também se candidataram para realizar a investigação, mas não foram selecionadas. Os estudos vão ser realizados por equipas da Universidade de Boston, Harvard Medical School, Johns Hopkins University, Michigan State University e Oregon Health and Science University. Os estudos incluirão participantes de todas as idades e origens que ainda não tenham sido vacinados, a fim de estudar os seus ciclos menstruais antes e depois, para investigar se tais alterações podem estar ligadas à própria vacina contra a covid-19 ou se são coincidentes, bem como o mecanismo subjacente a quaisquer alterações relacionadas com a vacina, e quanto tempo duram quaisquer alterações.

As provas em torno de menstruações irregulares são, até agora, meramente baseadas na experiência pessoal. Não há qualquer ligação conhecida entre vacinação e alterações na menstruação e os especialistas em saúde pública reiteram que as vacinas são seguras, eficazes e necessárias para acabar com a pandemia.

Até à data, nenhum dos fabricantes de vacinas contra a covid-19 listou quaisquer problemas associados à saúde menstrual como um efeito secundário.

No entanto, Victoria Male, professora de imunologia, especializada em fertilidade, no Imperial College London, escreveu, em setembro, um editorial, publicado na revista científica BMJ, no qual afirma ser plausível haver uma ligação e que esta deve ser investigada para tranquilizar as pessoas.

“Os efeitos secundários comuns da vacinação contra a covid-19 listados pela Agência Reguladora dos Medicamentos e Produtos de Saúde [MHRA - Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency, em inglês] do Reino Unido incluem um braço dorido, febre, fadiga e mialgia. As alterações na menstruação e hemorragias inesperadas não estão listadas, mas os que trabalham em cuidados primários e saúde reprodutiva têm sido cada vez mais abordados por pessoas que experimentaram estes eventos pouco depois da vacinação”, explica.

Segundo indica, até ao dia 2 de setembro, mais de 30.000 pessoas relataram, ao esquema de vigilância da MHRA, alterações do ciclo menstrual.

De acordo com o MHRA, os seus dados de vigilância de efeitos secundários não apoiam uma ligação entre as alterações menstruais e as respetivas vacinas, uma vez que o número de relatórios é baixo, tanto em relação ao número de pessoas vacinadas como à prevalência de distúrbios menstruais em geral.

“Se houver uma ligação, é provável que seja o resultado da resposta imunológica à vacinação e não um componente específico da vacina", sugere Male, já que foram relatadas alterações menstruais tanto depois da administração de vacinas de mRNA como de adenovírus.

A vacinação contra o papilomavírus humano (HPV), por exemplo, também já foi associada a alterações menstruais.

“Entre os mecanismos biologicamente plausíveis que ligam o estímulo do sistema imunitário às alterações menstruais inclui-se a influência da resposta imunológica sobre as hormonas que controlam o ciclo menstrual ou efeitos mediados por células imunitárias que existem no revestimento do útero e que estão envolvidas na formação e degradação cíclica deste tecido”, justifica a imunologista.

Male reitera ainda que a maioria das pessoas constatam que as alterações no seu ciclo menstrual regressam ao normal no ciclo seguinte e salienta ainda que, mais importante, “não há provas de que a vacinação contra a covid-19 afete negativamente a fertilidade”.

Destaca, no entanto, que “embora as alterações relatadas no ciclo menstrual após a vacinação sejam de curta duração, uma investigação sólida sobre esta possível reação adversa continua a ser fundamental para o sucesso global do programa de vacinação” e relembra que a hesitação na vacinação entre mulheres jovens é em grande parte motivada por falsas alegações de que as vacinas contra a covid-19 poderiam prejudicar as suas hipóteses de uma gravidez futura.

Informações falsas sobre vacinas e fertilidade

“Em ensaios clínicos, as gravidezes não intencionais ocorreram em taxas semelhantes em grupos vacinados e não vacinados. Em clínicas de reprodução assistida, as medidas de fertilidade e as taxas de gravidez são semelhantes em doentes vacinados e não vacinados”, refere.

Jo Mountfield, vice-presidente do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), encorajou qualquer pessoa que experimente uma hemorragia intensa que seja invulgar, especialmente após a menopausa, a falar com um profissional de saúde, mas salientou que "não há provas que sugiram que estas alterações temporárias tenham qualquer impacto na fertilidade futura de uma pessoa, ou na sua capacidade de ter filhos".

O RCOG defende que a vacinação é a "melhor proteção" contra o coronavírus, especialmente em caso de se planear uma gravidez, justificando que grávidas não vacinadas correm maior risco de desenvolver doença grave de covid-19 do que outras mulheres da mesma idade.

As pessoas grávidas que têm uma infeção por SARS-CoV-2 sintomática "têm um risco duplo de admissão nos cuidados intensivos e um risco 70% maior de morte materna", particularmente com a variante Delta altamente transmissível, segundo Christine Olson, chefe do registo de gravidez em segurança, citada pela publicação Axios.

Há também um risco mais elevado de resultados adversos de gravidez, incluindo o nascimento prematuro, nado-morto e admissão na UCI de um recém-nascido também infetado com o SARS-CoV-2, acrescenta.

Segundo revela o rastreador de covid-19 em grávidas do CDC, desde 22 de janeiro de 2020 até 11 de outubro de 2021, foram identificados 128.771 casos, com 22.538 hospitalizações e 180 mortes.

À Axios, Male refere que a decisão de excluir as pessoas grávidas dos primeiros ensaios clínicos de vacinas alimentou a hesitação e sugere mesmo que foi “um erro terrível”, "deveríamos ter previsto que íamos precisar de vacinar pessoas que estão grávidas", acrescenta.

No editorial, a imunologista defende ainda que é preciso perceber se existe alguma ligação para que as pessoas que pretendem vacinar-se recebam a melhor informação possível e não se deixem influenciar por informações falsas sobre o efeito das vacinas na fertilidade.

A ideia de que as vacinas afetam a menstruação tem sido usada por pessoas que espalham informações falsas nas redes sociais, como por exemplo grupos que são contra as vacinas, e que utilizaram relatos genuínos das experiências pessoais – como o ‘thread’ do ‘tweet’ de Clancy - como falsas provas de que as vacinas que causam danos.

“Não investigar minuciosamente os relatos de alterações menstruais após a vacinação é suscetível de alimentar estes receios”, reitera Male.

Agora, o NIH disponibilizou, de acordo com um comunicado de imprensa, 1,67 milhões de dólares (1,4 milhões de euros) para incentivar esta investigação e “explorar potenciais ligações entre a vacinação covid-19 e as alterações menstruais" e, assim, ajudar a dissipar eventuais preocupações que possam levar algumas pessoas a optarem por não serem vacinadas.

"Estes estudos científicos rigorosos irão melhorar a nossa compreensão dos potenciais efeitos das vacinas contra a covid-19 na menstruação, dando às pessoas que menstruam mais informação sobre o que esperar após a vacinação e reduzindo potencialmente a hesitação vacinal", disse Diana Bianchi, directora do Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), que juntamente com o NIH Office of Research on Women's Health financiam bolsas suplementares .

Principalmente, num momento em que os esforços para travar a pandemia estão a ser colocados em causa devido a uma hesitação em relação às vacinas, em parte devido à desinformação sobre os efeitos secundários.

Vários factores podem causar alterações temporárias no ciclo menstrual, que é regulado por interacções complexas entre os tecidos, células e hormonas do corpo e muitas pessoas têm variações nos seus ciclos por diversas razões. Será que há realmente alguma diferença nas pessoas que receberam a vacina, ou será que – agora que há uma elevada cobertura de vacinação – as pessoas quando têm estas alterações estão a associá-las à vacina?

Estas alterações periódicas podem estar ligadas ao impacto do sistema imunitário - que é estimulado pela vacina - sobre as hormonas que impulsionam o ciclo menstrual, mas também podem ser causadas por células imunitárias que atuam de forma diferente no útero, como foi anteriormente referido.

Mas, além disso, segundo foi sugerido por alguns cientistas, uma possível explicação para alterações temporárias da menstruação pode estar relacionada com a forma como o corpo responde ao stresse físico e emocional. A saúde menstrual pode ser um reflexo da saúde global e os padrões de menstruação podem, ao longo da vida, ser influenciados por vários fatores – stresse, doenças, mudanças de peso, exercício ou mudanças no estilo de vida.

Estes fatores estiveram todos presentes durante a pandemia – principalmente o stresse e a ansiedade – e, além disso, estudos demonstraram que algumas mulheres que tiveram covid-19 também sofreram alterações na duração e fluxo dos seus ciclos menstruais.

Se tantas coisas podem afetar a menstruação, porque não sabemos mais sobre como vacinas afetam a menstruação?

Há uma lacuna persistente de dados sobre a saúde reprodutiva e os ciclos menstruais que não são recolhidos durante os ensaios clínicos, incluindo durante os ensaios das vacinas contra a covid-19.

Este financiamento, que foi anunciado em setembro, para os estudos surge numa altura em que vários países pretendem administrar um reforço da Pfizer em pessoas de risco e adultos com mais de 65 anos e em que Rochelle Walensky, diretor do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), acrescentou também uma recomendação para uma terceira dose para pessoas consideradas de alto risco devido ao local onde trabalham, como enfermeiras e professores – áreas com uma representação feminina muito significa.

Os investigadores avaliarão a prevalência e gravidade das alterações pós-vacinação das características menstruais, incluindo fluxo, duração do ciclo, dor e outros sintomas. Estas análises vão procurar também outros factores que podem afectar a menstruação, para determinar se as alterações podem, ou não, ser associadas à vacinação.

Segundo Male, há “uma lição importante” a reter: “é que os efeitos das intervenções médicas sobre a menstruação não devem ser um pensamento posterior na investigação futura".

Os ensaios clínicos devem rastrear e documentar as alterações menstruais, tal como fazem com outros possíveis efeitos secundários – uma mudança transitória na própria menstruação pode ocorrer sem consequências más para a saúde em geral ou sem ter quaisquer efeitos duradouros, mas continua a ser informativa.