A ONG SafeGuard Defenders tornou públicas novas informações sobre as esquadras informais chinesas que têm dado que falar um pouco por toda a Europa. Às 54 previamente denunciadas, em setembro, surge agora adicional de 48, perfazendo um total de 102 “centros de serviço da polícia chinesa no exterior", espalhados por 53 países.
Enquanto em algumas partes do mundo estas esquadras são geridas por polícias chineses, noutras a gestão é realizada por membros de associações chinesas na diáspora, diz a SafeGuard Defenders.
Em outubro, Pequim disse que criou este serviço para prestar ajuda consular, sobretudo no pico da pandemia, mas, de acordo com o novo relatório, apresentado esta segunda-feira, “existem esquadras no exterior desde 2016”.
A ONG assegura que se trata de uma forma de “apanhar suspeitos de fraude que fugiram do país”. Uma espécie de “Interpol à chinesa” que, a confirmar-se, estará a operar sem autorização da maior parte dos países identificados.
Muitas vezes identificadas como “110 Overseas”, numa referência ao número de emergência utilizado na China para se entrar em contacto direto com a polícia, estas esquadras são montadas por autoridades provinciais para atuar no exterior, nomeadamente pelas polícias de Qingtian, Fuzhou, Nantong e Wenzhou.
As denúncias são, na sua maioria, enviadas do estrangeiro via WeChat para as esquadras destes distritos que, após análise, dão início à investigação, podendo esta desenrolar-se além fronteiras, com recurso aos ditos "centros de serviço" no exterior.
Contas feitas, só entre abril de 2021 e julho de 2022, estas esquadras conseguiram "convencer" 230 mil cidadãos a regressar, dá conta a ONG. De acordo com a Safeguard Defenders, os cidadãos foram "persuadidos a regressar para enfrentar processos criminais na China”.
A imprensa local corrobora a narrativa de que este "departamento da polícia" no exterior serve também para capturar fugitivos à lei chinesa, e não apenas para prestar serviços consulares de apoio às comunidades chinesas no exterior, como inicialmente alegado.
Num dos relatos referidos no relatório da ONG pode ler-se que "o Departamento Municipal de Segurança Pública de Fuzhou abriu o balcão de serviço de alarme 110 no exterior, em 10 de janeiro [de 2022], para aceitar chamadas de chineses estrangeiros de Fuzhou a pedir ajuda e, ao mesmo tempo, reprimir resolutamente várias atividades ilegais e criminosas envolvendo chineses no exterior. Até 10 de maio [do mesmo ano], o Overseas 110 Alarm Service Desk recebeu e tratou mais de 1.800 pedidos de ajuda de chineses no exterior de 88 países e regiões".
A confirmar-se, este serviço de investigação criminal, para além de estar fora da sua jurisdição, estará a operar sem o conhecimento das autoridades locais, situação que já está a gerar desconforto entre vários governos e a China.
Na Irlanda, o governo mandou fechar uma destas “agências”. O mesmo aconteceu nos Países Baixos. O governo alemão mandou abrir uma investigação face à suspeita da existência destas esquadras no país. Em Inglaterra, Tom Tugendhat, ministro responsável pela pasta da segurança interna, disse ao Político que as “atividades” destas esquadras devem parar, pois é “inaceitável” que um governo estrangeiro efetue tais operações em território inglês. Segundo a SafeGuard Defenders, 14 governos começaram a investigar estas esquadras e o tema foi alvo de uma reunião bilateral de alto nível entre o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e o presidente chinês Xi Jinping durante o encontro do G20 em Bali, em novembro deste ano.
Em Portugal estão identificadas pela ONG três esquadras ilegais, em Lisboa, na Madeira e no Porto. O tema foi trazido para a discussão política nacional quando o líder da Iniciativa Liberal, Cotrim de Figueiredo, confrontou o primeiro-ministro no parlamento, perguntando-lhe se tinha conhecimento da existência destas “esquadras” em Portugal. O Governo não sabia, tão pouco as autoridades que, entretanto, deram início a uma investigação. “Confirma-se a existência de averiguações, dirigidas pelo DCIAP”, respondeu o Ministério Público ao SAPO24, no início de novembro.
No próximo dia 8 de dezembro, a Safeguard Defenders vai testemunhar numa audiência pública do Comité Especial do Parlamento Europeu sobre Interferência Estrangeira em todos os Processos Democráticos na União Europeia.
Como atuam estas esquadras?
Segundo a ONG, as "ferramentas de persuasão" utilizadas para convencer cidadãos chineses a regressar ao país para enfrentar a justiça incluem, numa lógica de "culpado por associação", "recusar aos filhos dos alvos que se encontrem na China o acesso à educação" ou "rastrear a família do alvo na China a fim de os pressionar, através de intimidação, assédio, detenção ou prisão a persuadir membros da sua família a regressar voluntariamente". Os familiares na China que se recusarem a colaborar "devem ser investigados e punidos". Os alvos podem ainda ser "abordados diretamente através de meios online ou através de agentes e/ou procuradores no exterior, muitas vezes disfarçados, para ameaçar ou assediar o alvo para que regresse voluntariamente".
Terá sido o caso de um cidadão chinês residente em Moçambique, suspeito de cometer fraude e que foi persuadido a regressar à China para ser julgado, e cujo caso ilustra o referido no relatório.
Segundo a Safeguard Defenders, que dá conta de uma informação obtida no site "China Peace", no dia 11 de abril [de 2022], o departamento de Polícia de Yangxia, na província chinesa de Fuzhou, recebeu um alerta. “Chen Mouhua, que fazia negócios em Moçambique, denunciou que um funcionário seu, Yang Mouqing, roubou uma grande quantia de dinheiro da empresa e fugiu para a China, em 2020”.
Depois de receber a denúncia, o departamento de Polícia de Yangxia abriu uma investigação, “que seguiu o rasto do suspeito, entre abril de 2019 e novembro de 2020". A Polícia de Yangxia, juntamente com a Brigada de Investigação Económica da Secretaria Municipal da província, cruzaram informações da conta bancária de Yang Mouqing e determinaram que Yang Mouqing era “suspeito de cometer um crime grande”.
O suspeito acabou por ser detido “na estação ferroviária da cidade de Fuqing”, na China. No interrogatório, “Yang Mouqing confessou o crime" e denunciou um cúmplice, “Yu Mou”, que foi identificado e localizado em Moçambique. Depois de identificado o paradeiro do segundo suspeito, a polícia “persuadiu o cúmplice a voltar (...). Yu decidiu cooperar com a polícia e regressar à China”, diz o relatório. O caso, segundo as informações recolhidas pela SafeGuard Defenders, está atualmente em julgamento.
A questão que se coloca é: De que forma foi persuadido este cidadão a regressar à China? Que vias diplomáticas foram ativadas? O Governo de Moçambique teve conhecimento?
No relatório, pode ler-se que a polícia “contactou os familiares de Yu Mou, na China, e exortou-os a persuadir o suspeito a entregar-se de imediato”. O SAPO24 questionou o ministério de Negócios Estrangeiros de Moçambique e a Procuradoria-Geral da República sobre se tinham conhecimento deste caso, mas não recebeu resposta conclusiva de nenhuma destas instituições até ao momento da publicação.
Em declarações ao SAPO24 desde Taiwan, Jing-Jie Chen, membro da Safeguard Defenders, questiona por que motivo a China não utiliza canais convencionais, como a Interpol ou relações diplomáticas bilaterais para a defesa e segurança. “Sabendo o historial de violação de direitos humanos existente na China, é muito provável que esteja a utilizar esta via alternativa [das esquadras informais] para escapar às convenções europeias para a defesa dos direitos humanos e à lei internacional”, diz. Além disso, nota, “os canais de extradição oficiais levam tempo".
Para Jing-Jie Chen, através da utilização destas esquadras, este "canal informal", e dando uso a uma vasta rede espalhada "em diferentes partes do mundo", torna-se "mais fácil [para a China] manter a vigilância da diáspora chinesa", podendo visar "não apenas [autores de crimes de] fraude, mas qualquer pessoa, como um opositor ao regime".
Desta forma, diz, as autoridades chinesas "mantém os olhos em todo o mundo e não tem de depender das autoridades locais, como em Portugal ou os EUA, que vivem em democracia e têm leis muito restritivas no que toca à violação dos direitos humanos”.
O investigador refere ainda que “através desta rede exterior, próxima da diáspora chinesa, é muito fácil identificar as pessoas. Quando se emigra, se chega a um país novo, e não se conhece a língua ou o sistema local, [as pessoas] acabam por procurar a comunidade chinesa residente”, nota. “E é aí que os apanham”.
Jing-Jie Chen explica que estas esquadras no exterior não são muitas vezes geridas por polícias, mas por "civis que podem ser contratados ou recrutados pelo governo chinês. Podem ser os líderes de associações chinesas no exterior”, insiste.
"São 'caras simpáticas' que abordam os suspeitos oferecendo ajuda. Como aconteceu em Espanha e na Sérvia. Estamos aqui para vos ajudar, prestar assistência. A vossa família precisa de vocês e por isso têm de voltar à China”, exemplifica o investigador da Safeguard Defenders. Em Portugal, refere, os três postos identificados podem estar dissimulados em comunidades locais, como associações chinesas.
O alegado posto do Porto está identificado como uma oficina de automóveis. O dono da oficina, quando confrontado por uma equipa de reportagem da SIC Notícias, disse, incrédulo, que “devem estar a brincar”(...). “Isto é uma oficina, podem entrar e ver com os vossos olhos”, retorquiu o empresário, que também é líder de uma associação da comunidade chinesa. “A associação ajuda muita gente chinesa em Portugal", respondeu à data. "Porque muitos não falam português. Precisam de ir ao médico e então nós vamos com eles e ajudamos, mais nada”, declarou. Na Ribeira Brava, Madeira, a morada que consta no relatório indica para uma associação “fantasma” que, segundo o Expresso, está vazia. E em Lisboa, “conhecida como a mais recente, fazendo parte da segunda vaga”, diz ao SAPO24 Jing-Jie Chen, a dita esquadra também está ligada a uma “associação comunitária chinesa”.
Questionado sobre esta matéria pela Renascença, Y Ping Chow, porta-voz da Liga dos Chineses em Portugal, disse em finais de setembro, que lhe parecida "impossível" a existência de um serviço com estas características em Portugal, porque se trata de "um país democrático". "É difícil estarem organizações ilegais a despistar órgãos policiais portugueses", argumentou.
Há, todavia, países que terão formalizado acordos com a China para o estabelecimento destas esquadras no exterior, como é o caso do Camboja, refera a Safeguard Defenders.
Face à descoberta de mais esquadras espalhadas pelo mundo, a ONG apela aos países que estejam atentos e "investiguem estes centros de polícia no exterior" de maneira a por cobro à repressão que os cidadãos da China são expostos mesmo além fronteiras.
Questionado sobre se havia novos desenvolvimentos em Portugal, Jing-Jie Chen respondeu que até ao momento "nenhum dos novos relatos se passou em Portugal".
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