A vegetação, dos cerca de 54 hectares da Quinta dos Ingleses, junto à praia de Carcavelos, oculta um amontoado de tendas e de autocaravanas, que são o lar de mais de 50 pessoas, de várias nacionalidades.
Contudo, este “parque de campismo” improvisado está a ser ameaçado pelo Plano de Pormenor do Espaço de Reestruturação Urbanística de Carcavelos-Sul (PPERUCS), que prevê a requalificação paisagística da Quinta dos Ingleses através da criação de um parque urbano e da construção de um empreendimento habitacional, com comércio, serviços e hotelaria.
O projeto, cujo promotor é a empresa Alves Ribeiro, tem sido contestado por várias associações do concelho de Cascais, no distrito de Lisboa, que já organizaram várias manifestações, a última há uma semana.
Entretanto, há cerca de 15 dias, parte do terreno que integra a Quinta dos Ingleses começou a ser vedado, situação que tem causado bastante ansiedade junto dos moradores, como constatou a agência Lusa no local.
Um dos moradores que aceitou falar com a Lusa foi Ricardo Oliveira, de 58 anos, que reside há seis meses no local depois de ter sido despejado, sem alternativa habitacional.
“Eu vim parar aqui há seis meses porque a minha família faleceu e eu fui despejado. Neste momento não estou a trabalhar, já não consigo trabalhar há muito tempo e estou com o rendimento mínimo”, lamentou.
Numa situação frágil, Ricardo Oliveira, que reside há mais de 50 anos no concelho de Cascais e está na iminência de ser novamente despejado, admitiu que irá atrás dos vizinhos, a sua “nova família”, para onde forem.
“Eu dependo um pouco deles todos. Se um deles arranjar sítio, eu vou com eles”, afirmou.
Mais novo, mas a viver há mais tempo na Quinta dos Ingleses, o brasileiro Nélson Ferreira disse à Lusa que “está doendo demais” a ideia de ter de abandonar o local.
“É muito difícil hoje em dia encontrar uma coisa [habitação] que seja barata ou que encaixa dentro das possibilidades das pessoas. Eu fui uma das primeiras pessoas a chegar aqui e sempre recebi o povo com o coração e fiz com que se sentissem em casa. Para mim, isto é a minha comunidade”, explicou o jovem de 21 anos.
Sem notificação oficial para abandonar o local, mas com o coração “nas mãos” desde que o terreno começou a ser vedado, os moradores da Quinta dos Ingleses têm sido apoiados por algumas associações cívicas, que contestam o plano de urbanização e acusam os promotores e a câmara de Cascais de insensibilidade social.
“Os moradores da Quinta dos Ingleses estão conscientes de que os seus dias aqui, infelizmente, estão para acabar. Eles querem que a natureza seja protegida, mas também não gostariam de sair daqui sem qualquer aviso. As pessoas precisam de tempo e de soluções”, referiu à Lusa João Sousa, da associação Alvorada da Floresta.
Para o jovem estudante de biologia e fundador da associação ambientalista, a câmara de Cascais tem obrigação de encontrar uma solução habitacional para aquelas 50 pessoas.
A convicção é partilhada pelo vice-presidente da associação SOS Quinta dos Ingleses, Pedro Jordão, um dos principais contestatários do plano de urbanização previsto para a Quinta dos Ingleses.
“É verdadeiramente indigno que no século XXI haja gente nestas circunstâncias, sem água, luz, esgotos canalizados. É do ponto de vista moral e ético absolutamente lamentável”, afirmou.
Para Pedro Jordão, “não existe qualquer interesse público” no projeto que está previsto, uma vez que se trata de “construção intensiva” que trará “consequências negativas” a nível social e ambiental a toda a área envolvente.
“Vai ter um enorme impacto em termos de impermeabilização, em termos de ventos, em termos de aquecimento da freguesia e em termos de poluição, tráfego automóvel. Além disso, é uma habitação dirigida às classes mais altas e não vai resolver os problemas de habitação no concelho de Cascais”, argumentou.
Contactado pela Lusa, o presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras (PSD), assegurou que os moradores da Quinta dos Ingleses têm tido apoio, através da Segurança Social, mas ressalvou que a autarquia não tem condições, nem responsabilidade, para lhes assegurar uma alternativa habitacional.
“Da nossa parte não temos rigorosamente nada a ver com isso, nem há uma obrigação. Não seria justo, do ponto de vista social, que o facto de virem acampar para ali obriga a câmara a colocá-los à frente de milhares de outros cidadão de Cascais que estão inscritos há muito tempo e estão sinalizados”, argumentou.
Relativamente ao projeto urbanístico, o autarca insistiu que qualquer alteração teria de ser feita a nível governamental e não municipal, negando responsabilidade por parte do atual executivo.
“Eles [os críticos] vieram tarde porque tiveram oportunidade quando foi a discussão na década de 80 e a presidente da época [Helena Roseta] foi forçada a fazer uma escritura pública e consignou direitos. Depois continuaram a vir tarde quando, em 1997, a maioria que geria a câmara, que era uma maioria socialista [presidida por José Luís Júdice], considerou o plano pormenor em sede de plano diretor municipal”, apontou.
Em maio de 2021, Carlos Carreiras afirmou na Assembleia da República que a autarquia não tem capacidade para travar o projeto de urbanização da Quinta dos Ingleses, alegando que isso implicaria o pagamento de uma “indemnização incomportável”, uma vez que os promotores “têm direito adquirido sobre aqueles terrenos”.
Também contactada pela Lusa, fonte da construtora Alves Ribeiro remeteu qualquer comentário para mais tarde.
O Bloco de Esquerda e o PAN (Pessoas-Animais-Natureza) já apresentaram no parlamento projetos de resolução para preservar e salvaguardar a Quinta dos Ingleses.
* Fábio Canceiro (texto), António Pedro Santos (fotografia), Lusa
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