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. Quando o bicho for embora, Maria José chama um táxi e vai duas horas para a praia: põe-se num banco a sentir as ondas bater nas rochas; o ar fresco a correr; o rumor dumas crianças a brincar. O mar. O infinito do oceano, que se estica da Foz ao fim do céu.Hoje, o infinito termina já ali adiante, na rua do Heroísmo, no Porto. Um vidro, uma porta transparente e pesada, separa esta mulher do mundo — e do vírus. Sentada num cadeirão, acena, sorridente.
No meio desta pandemia que rasgou pelos lares adentro, é preciso relembrar várias vezes que ser velho não é sentença, nem os lares são necessariamente morgues — ou depósitos de velhos à espera da data para pôr no epitáfio.
Maria José Marques está num dos 86% de lares de idosos em Portugal que não registaram qualquer caso de infeção pelo novo coronavírus — SARS-CoV-2 — entre os utentes. Das 2.526 residências sociais para idosos no país, apenas 251 lares têm casos, disse esta quinta-feira o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales.
Todavia, a estatística não aproxima ninguém de um abraço. E há muito que Maria José não o faz. "Já não abraço a minha filha há dois meses”, conta esta antiga professora de Físico-Química na Escola Secundária Clara de Resende, na zona do Bessa. O telemóvel permite-lhe vê-la, “mas dar um abraço não”.
A Casa Maior, que tem dois lares, este no centro do Porto e um outro na Póvoa de Varzim, “começou a tomar medidas muito precocemente”, explica ao SAPO24 Cristiana do Nascimento, responsável pela instituição.
“Desde o dia 8 de março que deixamos de ter visitas, e tinham já sido restringidos a números mínimos na semana anterior — e desde o dia 24 que começamos a trabalhar com equipas em espelho”, conta.
O isolamento, deixou a crise sanitária do lado de fora. Mas a ansiedade mistura-se com as saudades lá dentro. "Os residentes ficam mais ansiosos e isso faz com que as nossas atividades tenham de ser mais centradas neles, a nossa atenção é direcionada na totalidade para os nossos residentes, e, depois, tentarmos ter a família incluída na nossa dinâmica, com recurso às novas tecnologias, porque é assim que tem de ser”, defende Cristiana.
Pelo caminho, o trabalho é reduzir as duas coisas: “minimizar as saudades com videochamadas, com muitas atividades, envolvendo os familiares também nas atividades da Casa Maior, através das novas tecnologias, nomeadamente as chamadas pelo WhatsApp, pelo Messenger, partilhas constantes das atividades que realizamos na nossa página do Facebook, pedindo aos familiares que façam vídeos e que os enviem também para os nossos residentes visualizarem”.
E explicar o que se passa, para contextualizar a ansiedade: “mantemos uma prática que sempre tivemos: às 11h da manhã, fazemos a leitura do jornal e a análise das notícias”, explica. “É lido o jornal, são discutidas as notícias, para quem tem mais dificuldade ou alguma dúvida é explicada a notícia. Depois, vamos acompanhando diariamente a evolução — não só do número de casos em geral, do número de casos confirmados, suspeitos, de mortos, de recuperados. Assim como também aquilo que são os registos de outros lares, de outras estruturas desta natureza e da situação que se vive, muitas vezes dramática. Isso também nos dá força, nomeadamente aos nossos residentes, para perceberem a necessidade que temos de ter regras rígidas”.
Maria José não quer pensar muito nisso. “Procuro não ocupar o dia todo a ouvir as notícias do coronavírus, porque isso angustia-me”, conta, ao telefone. É que isto "tem sido complicado", desabafa. "Estar há dois meses num isolamento, sem poder abraçar os familiares.”
"Como tenho televisão e computador e gosto muito de ler, passo o meu tempo mais ou menos ocupada, para me distrair um pouco”. Mas os livros não trazem este barulho das ondas; nem a televisão ou o computador arranjam maneira de soprar a nortada.
"Com a idade que tenho, nunca passei por uma situação destas”, vai contando. “Ouvi falar na pneumónica, em 1918, em que morreram milhões de pessoas, mas não tenho na minha memória uma situação destas. Porque isto gerou-se um medo por causa das notícias — notícias em todos os canais, sempre sobre o vírus, sobre as condições, sobre isto, aquilo. Depois, o que se passa noutros países: na França, na Itália, no Reino Unido e não sei que mais... Isso cria realmente ansiedade e medo.”
Um estudo divulgado no passado dia 2, revelou que cerca de 37% de uma amostra de casos de covid-19 confirmados contraíram o vírus nos lares. Segundo o documento, entre 25 e 30 de abril, e tendo por base uma amostra de 2.369 casos confirmados, 37% contraiu o vírus em lares, 33 na residência (coabitação), 15% em contexto laboral, 7% em contexto social e 6% em instituições ligadas à prestação de cuidados de saúde.
Lá fora, os números somam-se. Embora os gráficos sugiram que o pico da pandemia no Reino Unido teve lugar no início de abril, a assessora científica do governo Angela McClean referiu que a mortalidade nos hospitais continua a cair, mas aumentou nos lares de idosos na penúltima semana de abril. “O que mostra é que existe um problema sério que precisamos de resolver sobre o que está a acontecer nos lares de idosos”, vincou.
"Continuamos a ver sinais de um achatamento do pico deste vírus. Mas, como mostram os números, ainda não passou”, disse na terça-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Dominic Raab, na conferência de imprensa diária sobre a crise.
Na região mais afetada de Portugal, foram testadas 900 instituições
"Numa segunda-feira, fomos todos testados: utentes e funcionários. E na quinta-feira soubemos logo o resultado. Deu negativo a toda a gente — felizmente”, conta Maria José.
A 6 de abril, utentes e funcionários da Casa Maior foram todos testados. Foi difícil? "Não. Já tenho sido submetida a coisas mais complicadas", diz, entre risos, Maria José, sobre o processo que, resumidamente, se trata de enfiar um bastão com uma esponja na ponta, fazendo-o chegar, pelo nariz, até aos interstícios da cabeça, onde o vírus se arruma.
Esta quinta-feira, o governo anunciou que o processo de rastreio a todos os funcionários dos lares da região Norte do país, no âmbito da covid-19, ficou concluído. Foram feitos 24 mil testes em cerca de 900 instituições.
“O processo de realização de testes a todos os funcionários de estabelecimentos residenciais para pessoas idosas na região Norte está concluído, cumprindo-se assim o compromisso assumido há duas semanas por Eduardo Pinheiro, secretário de Estado da Mobilidade e Coordenador Regional Norte da covid-19”, refere um comunicado do gabinete do ministro do Ambiente e Ação Climática.
A nota dá conta de que, “ao todo, foram realizados mais de 24 mil testes a funcionários de cerca de 900 instituições de toda a Região Norte” e que “os resultados já obtidos apontam para uma taxa de infeção inferior a 2%”. Segundo Eduardo Pinheiro, o universo de profissionais das estruturas de apoio aos idosos na região Norte é de 20 mil e de mais de 25 mil utentes.
“O compromisso é relativamente aos profissionais e aos utentes com sintomas. São os profissionais que entram e saem da instituição. Não são os idosos. É aqui que temos de garantir que não há contágio", explicou, a 21 de abril, à margem de uma visita ao Centro de Acolhimento Temporário do Distrito de Viana do Castelo, instalado na Pousada da Juventude da capital do Alto Minho.
A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou mais de 269 mil mortos e infetou mais de 3,8 milhões de pessoas em 195 países e territórios. Mais de 1,2 milhões de doentes foram considerados curados.
Em Portugal, até dia 8 de maio, morreram 1.114 pessoas das 27.268 confirmadas como infetadas pelo novo coronavírus e havia 2.422 casos recuperados. A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.
No dia anterior, quarta-feira, a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) anunciou a morte de 120 utentes, com mais de 70 anos, desde o início da pandemia de covid-19, indicando uma taxa de letalidade de cerca de 0,4%. Os testes nos lares, com um universo de 35.000 utentes, realizaram-se sobretudo nos últimos 15 dias.
Precaver
"Sou uma pessoa de risco, porque tenho 88 anos — e, além disso, tenho problemas respiratórios. Portanto, sou uma pessoa de risco. Compreendo perfeitamente que tenha de haver esta gestão muito rigorosa em relação aos contactos com as outras pessoas”, diz Maria José.
"Noutros lares têm-se verificado casos de covid-19 precisamente porque entraram pessoas e foram contagiados. Entendo perfeitamente, mas que é muito doloroso estar nesta situação, é".
Sem visitas desde o início de março, os dias são preenchidos doutras maneiras. “Ainda hoje foi exercício físico. Outros dias é a sessão musical: fazemos cantorias e tal. Procura-se, todos os dias, arranjar uma atividade para ocupar os residentes", conta Maria José.
A Casa Maior está desde 24 de março com as equipas em espelho — uma entra, a outra sai. "A cada cinco dias há a troca de equipa. As equipas trabalham durante cinco dias 24 horas, e, depois, vão para casa, regressando outra equipa”, explica Cristiana.
“No dia anterior à entrada de uma equipa nova, contacto todos os elementos a perguntar se alguém tem sintomas, se algum dos seus contactos próximos tem sintomas. Além disso, diariamente fazem a monitorização da temperatura, sinais vitais, sintomas, residentes e profissionais, estando na Casa Maior ou não.”
A isto somam-se os equipamentos de proteção individual, que chegaram também no princípio de março. E o reforço da limpeza: “no fundo, em termos de desinfeção, foi acabar por termos aqui um bocadinho mais de cuidado, mas a base já estava feita há muito tempo, porque está incutido na nossa forma de trabalhar”.
Para os utentes, foi explicada a necessidade da “etiqueta respiratória, da lavagem e desinfeção das mãos”. Todos “aderiram a cem por cento”, afirma a responsável.
Não há ainda um estudo socioeconómico sobre os mais afetados pela pandemia de covid-19 em Portugal. A exposição e a possibilidade autoproteção podem ser variáveis importantes. Nesta casa, os residentes são sobretudo de "classe média, classe média alta", explica Cristiana. "Maioritariamente com um grau cultural médio a elevado", acrescenta. "Médio" — interrompe Maria José — "É mais médio... Elevado não há muito."
Tornar invisível o visível, para aproximar o que está longe
O sol entra picado pela rua do Heroísmo. O reflexo dos carros e das gentes de máscara que vão no corre-corre da cidade à beira de ser milhafre de asa recuperada brilha nas janelas. Maria José, sentada no cadeirão, tem a figura dividida a meio por uma parede que é a prova da Física.
O sol, lá tão longe como está, tinha de vir aqui refratar, refletir e cintilar, nas paredes, nas janelas, nas mãos, nos rostos. Mas isso são outras histórias — e há 28 anos que Maria José deixou as salas da Escola Secundária Clara de Resende.
A 29 de abril, Maria José completou 88 anos. A família e o lar prepararam-lhe uma festa surpresa "ao vidro". "Nós ficamos da parte de dentro com o bolo, e a família ficou no exterior, do lado de fora da porta de vidro a assistir à festa e a felicitar a dona Maria José pelo aniversário e a cantar os parabéns connosco", conta Cristiana.
O bolo de frutas, colorido, brilha debaixo do arco íris, balão ali a cintilar, flutuando sobre a cabeça de Maria José, que sorri para a família, do lado de lá do vidro. É das propriedades da física que os gases possam ter pesos diferentes. O hélio, atrás do bojo, é mais leve que a composição dos elementos de que é feito o nosso ar. E o balão sobe.
"Foi realmente um dia muito especial. Porque foi uma surpresa que fizeram. Fiquei muito emocionada — feliz e emocionada”, conta Maria José.
Um pouco por todo o lado, os lares procuram resolver as barreiras. Dirimir a fronteira entre o dentro e o fora; esconder as paredes e fazer do interior exterior.
Na Figueira da Foz, sem hélio para levantar o peso dos homens, mas com vontades suficientes para içar qualquer Passarola, as famílias fizeram-se aos céus para rasgar o isolamento.
Uma plataforma elevatória ergue os de fora à altura da janela dos isolados na Misericórdia. O sistema, que começou a funcionar no dia 5, está disponível de segunda a sexta-feira, por marcação prévia, às famílias dos 150 utentes dos lares de Santo António e Silva Soares. Permite cerca de duas dezenas de ‘visitas' diárias, a dois metros das varandas do primeiro andar de cada um dos edifícios.
"Dentro das possibilidades, é o que temos de melhor. É menos prejudicial do que ir lá para dentro [do lar] e correr o risco de infetar os idosos", disse aos jornalistas Carlos Santos, um dos primeiros a estrear a iniciativa para visitar a mãe, de 93 anos, que não via há dois meses.
A ministra da Saúde anunciou no dia da mãe, 3 de maio, que o levantamento da proibição de visitas a lares de idosos está a ser “repensado” — mas antes serão criadas estratégias para que decorram com “segurança”.
“Não podemos subtrair às pessoas que estão em estruturas residenciais para idosos, a visita dos seus próximos durante toda a epidemia. Mas temos de encontrar estratégias que permitam que tudo se faça em segurança”.
Marta Temido lembrava que nos lares “estão, de entre todos, alguns dos mais vulneráveis pela sua idade e pelas comorbilidades associadas” e referiu a institucionalização em residências seniores em Portugal, mas também em outros países.
“Em Portugal, como em Espanha, como em Itália e como em França, este foi um contexto específico que motivou da parte das autoridades sanitárias e sociais preocupações específicas (…). Iremos nos próximos dias partilhar com todos [as novas regras e medidas]”, disse a ministra da Saúde.
No mesmo dia, a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) defendia que é preciso "apontar uma data" para a retoma das visitas aos idosos em lares. Para o padre Lino Maia, presidente da CNIS, deve-se, "pelo menos, apontar uma data" para o levantamento da suspensão das visitas aos idosos que estão em lares, lembrando que a proibição das visitas "foi a primeira medida adotada" no âmbito da pandemia da covid-19, em que "as instituições cumpriram religiosamente e compreendem perfeitamente essa medida", mas "já lá vão dois meses".
"Os idosos estão ali enclausurados", ressalvou Lino Maia, reclamando que "não podem ser esquecidos, não podem ser abandonados".
"Com testes feitos, com equipamentos de proteção individual assegurados, com os doentes covid-19 a ser tratados como devem ser tratados, com identificação de espaços para que só uma visita de cada vez possa ser feita, com distanciamento entre o utente e a visita, com moderação, com programação, penso que era oportuno pensar-se já em visitas", reforçou o presidente da CNIS, em declarações à agência Lusa, acrescentando que os idosos também vão tendo notícias sobre a retoma da atividade económica e a reabertura de escolas e creches.
"A data não pode ser muito lá para adiante, não podemos pensar que 1 de outubro é o Dia Mundial dos Idosos, não pode ser para essa data, tem de ser para mais cedo, muito mais cedo", declarou Lino Maia.
"O idoso precisa de ver um sorriso, precisa de partilhar uma lágrima, ainda que não seja e não pode ser em contacto físico, mas visivelmente é importante que isso aconteça”, acrescentou.
Na Casa Maior, o futuro também já vai sendo planeado: "Estamos a aguardar, naturalmente, como todas as instituições, as orientações da Direção-Geral da Saúde", diz Cristiana do Nascimento. Porém, "independentemente das orientações que possam ser emanadas, há uma coisa de que temos a certeza: fazemos de tudo para manter o contacto com as famílias"
"Já criámos um pequeno espaço na entrada onde, caso venham a ser dadas orientações para autorizar as visitas, os familiares poderão vir. Estarão na entrada, naquele espaço, onde entrará uma pessoa de cada vez, com acesso ao desinfetante, onde terá de utilizar máscara — e só contactará com o seu familiar, não terá acesso, nesta fase, a espaços comuns, nem a outros residentes", explica a responsável.
Para já, vale o digital: ”A nossa estratégia neste momento passará muito por aí: continuar a fazer o uso das redes sociais, de telefones, das novas tecnologias para minimizar as saudades e promover sempre o contacto da família, que é fundamental — mas a saúde dos nossos residentes também tem de ser protegida, porque temos pessoas com patologias que os tornam ainda em doentes de maior risco. Vamos continuar a protegê-los desta forma", lembra.
E se ninguém entra, também ninguém sai. Maria José bem gostava de sair. "Saía muitas vezes”, conta. “Tenho dificuldades de mobilidade, mas a minha filha até me arranjou uma pessoa para me acompanhar, porque eu ando na universidade da terceira idade.”
"Saía facilmente, ia à casa dos primos, à cabeleireira, ao restaurante... Lá saía. Agora, realmente, há dois meses que não saio”. Não é que ali dentro lhe falte alguma coisa, mas a liberdade é a liberdade.
"Gosto muito de frequentar exposições, museus, jardins". E o Porto tem-nos em tanta quantidade: por agora todos fechados, como baús dos tesouros invictos, escondidos nas areias do rio, à espera do tempo que os redescubram. Resta saber quanto tempo custa a quem o tem contado.
"Aquilo de que sinto mais falta é o mar", sorri Maria José. "Como vivia junto do mar, na Pasteleira, tenho saudades do
."*Com Lusa
Artigo atualizado às 18:40, com os números de casos mais recentes em Portugal e no mundo.
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