Em entrevista à agência Lusa, quando se completam quatro anos de funcionamento desta equipa, o procurador Rui do Carmo admitiu ter receio de que o confinamento a que, genericamente, toda a população está obrigada, como medida para controlar a pandemia de covid-19, tenha como consequência o aumento do número de casos de violência doméstica.
“Atendendo aquilo que é o conhecimento que tenho sobre este fenómeno e a minha experiência pessoal e profissional, eu temo pensar que as situações de violência doméstica neste contexto se agudizem”, admitiu.
Apontou que há discursos que defendem não haver ainda dados significativos que permitam tirar essa conclusão, outros que apontam que, sendo esta uma crise de saúde pública, estes comportamentos tendem a dissipar-se e outros ainda que defendem que, como as pessoas estão mais tempo umas com as outras, isso gera mais situações de violência.
De acordo com Rui do Carmo, “tudo leva a crer que haja um aumento de conflitualidade”, acrescentando: “Poderá não se conhecer neste momento pela dificuldade que as pessoas poderão ter em termos de comunicação, por estarem manietadas na sua liberdade”.
O responsável pela EARHVD acredita, por isso, que as situações de violência doméstica tenderão a agudizar-se.
“Podem ser menos explicitas do ponto de vista externo, menos exteriorização, mas penso que, se há menos exteriorização, elas estarão associadas a maior sofrimento das vítimas e estou convencido de que é esse o contexto em que vivemos”, apontou.
Acrescentou que há já alguns dados que corroboram essa tese, já que “a seguir ao primeiro confinamento, quando houve alguma abertura, as denúncias [por crimes] de violência doméstica dispararam”.
“As pessoas aproveitaram esse aliviar da pressão para procurar ajuda”, sublinhou.
Por outro lado, admitiu que o caso das crianças é também uma preocupação e que o encerramento das escolas pode ocultar casos de violência doméstica, frisando que esta é uma “equação muito difícil de resolver”.
“Esse problema é um problema que está associado ao problema da pobreza infantil, desde logo a importância que as cantinas escolares têm em assegurar uma existência mínima para muitas crianças”, apontou Rui do Carmo.
Questionado se, ao longo destes quatro anos, houve algum caso analisado que mais o tivesse impressionado, o procurador jubilado afirmou que todos o impressionaram “por serem violações gritantes dos direitos humanos e por serem manifestações que têm de ser completamente erradicadas”.
“Toda e qualquer uma das vítimas tem de ser tratada com a mesma dignidade e o mesmo empenho, e a violação dos direitos humanos de qualquer uma das vítimas é grave em qualquer situação”, defendeu.
Violência doméstica precisa de sistema que gere confiança nas vítimas
Na opinião do procurador jubilado Rui do Carmo, o sistema de prevenção e combate aos crimes de violência doméstica e de proteção das vítimas ainda apresenta deficiências, apontando que o mais recente relatório elaborado pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD) é disso demonstrativo e que embora os factos em análise tenham três anos, “não é possível dizer que, entretanto, as coisas mudaram radicalmente”.
Para o coordenador desta equipa, falta um sistema capaz de gerar confiança nas vítimas, de modo a que procurem apoio precocemente, e falta que a intervenção seja imediata e não aconteça apenas ao fim de muitos anos de violência doméstica e “de uma situação que se tornou, entretanto, insuportável”.
Rui do Carmo admite que para existir essa confiança das vítimas no sistema, tem de haver confiança nos resultados e isso passa por “melhorar a capacidade de intervenção”, logo a partir do momento em que há uma denúncia de um facto que possa constituir um crime de violência doméstica.
“Tem de haver a capacidade de intervenção imediata, quer no sentido de proteção da vítima e de contenção do agressor, quer no sentido de recolha de toda a prova disponível que permita que não aconteça o que acontece hoje, em que 75% dos inquéritos são arquivados por falta de prova e em que cerca de metade dos que vão para a fase de julgamento acabam em absolvição”, defendeu.
Salientou que se a recolha de prova, no âmbito de uma intervenção criminal, continuar assente no relato da vítima e no que a vítima vai fazer com o que lhe aconteceu, “os números continuarão a ser estes”.
“A vítima tem uma natural ambiguidade relativamente à colaboração no processo, tem uma natural fragilidade em encarar todas as morosidades do processo e toda a conflituosidade que o início do processo gera, é natural que isso aconteça”, explicou.
Defendeu, por isso, que quando há uma denúncia por violência doméstica é preciso “atuar imediatamente no sentido de obter outros meios de prova”, algo que já está definido no manual de atuação funcional, publicado no ano passado e que define “toda a intervenção que deve ser feita nos primeiros três dias após a denúncia”, não só relativamente à proteção da vítima, evitando o agravamento da sua situação e que o agressor prossiga com a violência, mas também em relação à recolha e preservação da prova.
“Quer a prova dos elementos e vestígios encontrados, retirada das armas que o agressor possa ter com ele, análise e documentação de todas as lesões que a vítima possa ter, a identificação de pessoas próximas que possam ter conhecimento daquela conflitualidade, naqueles dias ou no passado, e que nos permitam fazer a história daquele conflito e retirar elementos que conjugados com aqueles que na altura são recolhidos possam elucidar o que se terá passado”, defendeu Rui do Carmo.
O coordenador da EARHVD explicou que todos estes meios de prova “têm de ser obtidos imediatamente porque muito disto, se não se obtém imediatamente, perde-se definitivamente”.
“E ficamos com a sempre falível, e naturalmente falível, declaração da vítima e é meio caminho andado para o processo não ter êxito e cada vez que um processo destes não tem êxito é um pulso de ânimo no agressor”, alertou.
No entanto, Rui do Carmo assume-se contra um possível agravamento das penas previstas para este tipo de crime, defendendo antes que o sistema judiciário seja capaz de aplicar as penas que existem atualmente.
“Não vale a pena estarmos a fazer grandes ameaças se depois se descobrir que afinal a capacidade de as tornar efetivas não é tão significativa quanto deveria ser”, justificou.
Defendeu que a preocupação tem de estar na capacidade em aplicar o quadro de punição existente, desde logo diminuindo “significativamente as taxas de não esclarecimento dos inquéritos”, mas também verificando se a taxa de absolvição resulta ou não da dificuldade de levar a julgamento a prova necessária.
Além desta preocupação, salientou que é preciso também garantir que a pena aplicada à pessoa condenada “é uma pena que tem efetivamente efeitos de prevenção”, não só para dissuadir outras pessoas de praticarem o mesmo crime, mas também para a reintegração do agressor.
Disse não se sensibilizar muito que haja muitas penas de prisão efetivas ou suspensas, defendendo que o que tem de ser critério é que, quando haja uma pena de prisão suspensa de execução, haja efetivamente um programa de intervenção junto do agressor “que não seja apenas o passar do tempo da suspensão da execução da pena de prisão”.
“É importante que as obrigações que são impostas a quem é aplicada uma pena de prisão suspensa da sua execução, no âmbito deste crime, sejam efetivamente capazes de modificar o comportamento e que sejam obrigações efetivas, isto é que é importante”, defendeu.
Acrescentou, por outro lado, que é preciso capacidade para aplicar os programas para agressores de forma significativa.
“Se não modificarmos isto, de que vale a pena dizer que quem pratica um crime de violência doméstica tem 30 anos de prisão ou 50 anos? Tudo são palavras ocas que não modificam rigorosamente nada”, rematou.
Quase um terço dos homicídios estudados por Equipa de Análise acaba com suicídio do agressor
Quase um terço dos homicídios examinados pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD) terminou com o suicídio do agressor, mas segundo o coordenador do organismo não há um caso igual a outro.
O procurador jubilado Rui do Carmo apontou que é difícil encontrar um traço comum porque “nenhum dos casos analisados é exatamente igual ao outro” e começou por enunciar que em alguns dos 11 casos analisados houve “sucessivas denúncias, sucessivos inquéritos arquivados”.
“Até que, a determinada altura, a agressão desencadeou lesões mais graves e o homicídio. Tivemos alguns casos desses, em que, obviamente, não foi possível tratar da melhor forma as denúncias inicialmente apresentadas”, adiantou, sublinhando que estão atualmente a ser dados passos significativos para ultrapassar esses entraves.
Lembrou que, em alguns casos, quando a vítima recusava prestar depoimento no âmbito do inquérito - o que lhe é permitido - os inquéritos esvaziavam-se e ficam sem prova dos factos “porque não havia nenhuma proatividade no sentido de recolher uma outra prova” ou de “ir à procura de elementos que pudessem comprovar aquelas agressões”, independentemente da colaboração da vítima.
“Encontrámos processos em que o rasto de processos arquivados precisamente nesta circunstância era grande e havia incapacidade do sistema de intervenção de fazer parar aquelas agressões”, revelou.
Por outro lado, a equipa analisou também três casos, estando o quarto em vias de estar concluído, em que o homicida se suicida imediatamente a seguir a cometer o crime, o que equivale a cerca de um terço do total de casos estudados.
Segundo Rui do Carmo, nestes casos, “o homicídio está já associado a uma intenção de se suicidar a seguir”, uma constatação que vai ao encontro de dados estatísticos internacionais, que demonstram que é em contexto de violência doméstica que “o suicídio após homicídio é mais significativo” e que acontece “fundamentalmente nos homens”.
No entanto, a equipa encontrou também casos em que o primeiro evento relevante foi o próprio homicídio, sem que houvesse conhecimento de qualquer indício por parte das várias entidades que têm intervenção na matéria, desde os serviços de apoio social, aos serviços de saúde, autoridades policiais ou serviços de apoio social.
“Nós fazemos [um] levantamento em todas as áreas da informação que há sobre o percurso destas pessoas e, em alguns casos, chegámos a fazer levantamentos que vão dez anos atrás no percurso deste conflito e houve casos em que não encontrámos rigorosamente nada registado nestas várias entidades”, revelou.
Rui do Carmo lembrou que a constituição da equipa surge da alteração da lei da violência doméstica, em 2015, que traz o procedimento de revisão dos casos em que tivesse havido um homicídio no âmbito de relações de intimidade e das relações familiares, tendo a equipa começado o seu trabalho em 2017.
“Os objetivos são verificar o que é que passou, qual foi a intervenção das várias entidades do setor público, privado, social, verificar se era possível ter feito algo de diferente no sentido de uma intervenção mais eficaz para evitar aquele resultado e a partir dai extraírem-se condições e fazerem-se propostas para melhorar o sistema de combate geral à violência contra as mulheres e a violência doméstica”, apontou.
Explicou também que o Ministério Público e os tribunais estão obrigados a enviar à equipa todas as decisões finais dos casos de homicídio neste contexto, sendo que isso acontece, por exemplo, quando o inquérito é arquivado na sequência do suicídio do homicida, “o que acontece numa grande percentagem de casos” em Portugal.
Na opinião do procurador Rui do Carmo, o trabalho da EARHVD tem tido resultados, sublinhando que os relatórios e recomendações são geralmente analisados com as entidades às quais são dirigidos.
Nessa matéria, destacou o papel do setor da saúde, “importante não só na deteção da violência doméstica”, mas também no apoio às vítimas, “que nem sempre recorrem explicitando o que aconteceu”.
Acrescentou que isso levou a um “diálogo importante com a Direção-Geral da Saúde” para melhorar a deteção e a intervenção nestes casos e levou a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde a fazer um levantamento e um inquérito aos serviços de primeira linha sobre a forma como estavam a abordar as pessoas que se apresentavam com queixas de violência doméstica.
Disse ainda que esse trabalho levou à criação de um registo informático específico dos serviços de saúde para estes casos.
Prevenir suicídio de agressores é prevenir homicídios de vítimas de violência doméstica
O coordenador da Equipa acredita que prevenir o suicídio dos agressores em contexto de relações de intimidade é prevenir o homicídio das vítimas, sublinhando que é um fenómeno pouco estudado.
Rui do Carmo apontou que, em contexto de relações de intimidade, em Portugal, “é muito significativo” o fenómeno do agressor que se suicida depois de cometer um homicídio.
“É um fenómeno sobre o qual, entre nós, tem-se refletido pouco, mas há, a nível internacional estudos que dizem que neste contexto os homicidas se suicidam oito vezes mais do que os outros homicidas”, apontou.
Rui do Carmo crê que é um fenómeno que vale a pena levar a sério do ponto de vista da análise, do estudo da matéria, frisando que se trata, aliás, de um fator de risco que está contemplado na avaliação de risco feita pelas forças policiais.
“Prevenir o suicídio destas pessoas é prevenir homicídios porque estas pessoas constroem esta ideia de matarem a companheira e de suicidarem a seguir, constroem este cenário completo e o tratamento das questões de saúde mental que estão aqui associadas à ideia de suicídio penso que são importantes”, defendeu.
Acrescentou que “há referências que as consideram como uma das frentes de prevenção do homicídio nas relações de intimidade”.
O procurador destacou que a Polícia Judiciária fez recentemente um levantamento sobre os homicídios investigados até 2019 e constatou que nos casos de homicídios nas relações de intimidade, a maioria dos agressores suicidou-se de seguida.
“Não é possível dissociar uma coisa da outra, não é possível sermos alheios, na perspetiva do combate ao homicídio em relações de intimidade, à ideia de suicídio que, particularmente nos homens que estão numa relação de conflito, têm. Não é possível ignorar isso”, defendeu.
Por outro lado, confrontado se existe ou não um traço de personalidade comum a estas pessoas, Rui do Carmo admitiu que há quem procure perceber o homicídio neste contexto, mas admitiu que tem “alguma dificuldade” em aceitar uma definição fechada de perfil.
“Para mim não é operativo trabalhar a partir daí porque não encontro na minha experiência profissional, nos casos que temos analisado, não consigo encaixá-los dentro de um perfil específico”, justificou, acrescentando que muitas vezes ou há um perfil e outros tantos casos que não cabem dentro dele ou um perfil tão abrangente que pode incluir todas as pessoas.
Adianta, no entanto, que as razões que levam alguém a matar outra pessoa são várias, tendo a EARHVD encontrado desde casos de “grande conflituosidade física que depois desembocam em homicídio”, até casos de “grande sofrimento psicológico com muito poucos momentos de erupção de conflitualidade”, mas que depois têm um momento de “explosão que gera o homicídio”.
“Temos encontrado situações muito diferentes”, admitiu.
De acordo com o procurador Rui do Carmo, na maioria dos casos entretanto analisados as vítimas são mulheres e os homicidas homens, embora tenham neste momento em análise dois casos em que o homicida é uma mulher.
Uma excecionalidade que não põe em causa a regra e que, na opinião do responsável, é “uma manifestação da desigualdade na relação entre homens e mulheres”, na qual assenta a construção das relações familiares e que está também muitas vezes na base do homicídio.
“A afirmação do poder do homem é, em alguns casos, manifesto ser aquilo que no fundo está subjacente ao ato da agressão e do homicídio, isso é inegável”, defendeu.
Rui do Carmo reiterou que os casos analisados são todos bastante diferentes, já que a história de vida das pessoas é muito diferente de uns casos para outros, até mesmo o tipo de relação que têm umas com as outras.
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