O súbito fim da política de ‘zero casos’, sem anúncio antecipado ou preparação do sistema de saúde, deixou famílias a lutar pela sobrevivência dos membros mais idosos, à medida que uma vaga de infeções inundou os hospitais e crematórios do país.

Yang Qiu, chinesa residente em Shenzhen, um ‘hub’ global para fabrico de eletrónica no sul da China, contou à agência Lusa que levou o pai a um dos maiores hospitais da cidade, após quatro dias com uma febre de 40 graus e tosse persistente, mas que desistiu ao fim de seis horas à espera nas urgências.

“Havia uma centena de pacientes à nossa frente”, contou. “Fomos a outro hospital, mas disseram-nos, sem rodeios, que já não tinham medicação disponível”, acrescentou.

“Depois de três anos com medidas altamente restritivas, que geraram múltiplas tragédias e destruíram negócios e empregos, mas que poderiam ao menos ter servido para ganhar tempo para preparar a reabertura, acabamos por sair da pandemia de forma desordenada e caótica”, contou Yang. “Assim, é difícil de digerir”.

Outro residente em Shenzhen, que solicitou anonimato, contou à Lusa ter pedido a uma colega de trabalho a residir em Singapura que enviasse duas caixas de Paxlovid, o antiviral desenvolvido pela farmacêutica norte-americana Pfizer e usado em pacientes com sintomas graves, para dar aos pais.

No total, ele pagou o equivalente a cerca de 370 euros. “Mas isto é um privilégio, porque pertenço à classe média alta e tenho contactos no exterior”, disse. “Não consigo imaginar a situação no interior do país”.

Situada na fronteira com Hong Kong, Shenzhen é sede de algumas das principais firmas tecnológicas do país, incluindo o grupo de telecomunicações Huawei, a fabricante automóvel BYD ou o gigante da Internet Tencent. O PIB da cidade fixou-se, em 2021, nos 471 mil milhões de dólares, à frente de Hong Kong ou Singapura, dois importantes centros financeiros da Ásia.

A cidade, uma pacata vila de pescadores até ter sido designada como ‘laboratório’ na abertura da China à economia de mercado, nos anos 1980, tem uma população sobretudo constituída por jovens trabalhadores migrantes, o que atenuou o impacto da avalanche de infeções que se seguiu ao desmantelamento da estratégia ‘zero covid’, em dezembro passado.

No interior do país, com uma população sobretudo idosa e escassos recursos de saúde, o impacto da doença está ainda por avaliar.

O epidemiologista Yanzhong Huang, natural de uma aldeia no nordeste da China e que dirige atualmente a pesquisa em assuntos de saúde global no Conselho de Relações Externas, um centro de reflexão (‘think tank’) com sede em Nova Iorque, considerou ser “muito difícil” encontrar informação “fiável” sobre o que se está a passar no terreno.

Em entrevista à Lusa, o especialista, que tem um doutoramento em ciência política pela Universidade de Chicago, contou que, devido ao desmantelamento do sistema de testes de ácido nucleico e à escassez de testes rápidos de antigénio, na sua terra natal muitas pessoas desenvolveram sintomas mas não conseguiram confirmar se estavam infetadas com o vírus.

“As famílias urbanas vão ao hospital à procura de tratamento e podem apurar se estão positivas, mas, nas áreas rurais, para muitas pessoas é apenas um processo natural: são infetadas e acabam por morrer em casa”, descreveu.

O investigador admitiu ainda existir pressão política para atribuir as mortes por covid-19 a doenças crónicas e classificou como “pouco convincentes” os dados oficiais chineses, que apontam para cerca de 60.000 mortos pelo vírus, nas primeiras cinco semanas após o levantamento das restrições.

A estratégia de ‘zero casos’ de covid-19 foi assumida por Xi Jinping como um trunfo político e prova da superioridade do modelo de governação chinês, após o país conter com sucesso os surtos iniciais da doença.

A estratégia, que vigorou no país ao longo de quase três anos, incluía o isolamento de todos os casos positivos e contactos próximos, bloqueio de cidades inteiras durante semanas ou meses, a realização constante de testes em massa e o encerramento das fronteiras, resultando em crescente descontentamento popular e no colapso dos dados económicos.

“Houve tanta preocupação da liderança em manter a política de ‘zero casos’ por questões de legitimidade política, mas essa legitimidade perdeu-se em dois dias”, descreveu uma jornalista chinesa natural de Shenzhen. “Qual era então a finalidade disto tudo?”, questionou.

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