Sob a copa das árvores, os bancos do jardim têm placas a identificar o lugar de "visitante" e "utente" para privilegiar encontros ao ar livre, há fardos de palha a funcionar como mesas de centro e, a decorá-las, cestos de vime com flores de papel. Fátima Guimarães escolheu um desses recantos para o primeiro encontro presencial com a mãe em quase três meses e confessou "uma emoção muito forte" porque, desde meados de março, só a vira à distância através de uma janela, quando, com os outros filhos e netos de Rosa, lá foi acenar-lhe do jardim para o segundo andar do edifício.
"A minha mãe teve um AVC [Acidente Vascular Cerebral] e deixou de falar em condições, mas ainda nos reconhece e o meu maior medo era que ela não percebesse porque é que deixámos de cá vir e se sentisse abandonada. Pensar nisso matava-me, mas sei que as funcionárias lhe explicaram o que se estava a passar e, depois de saber que a Santa Casa teve tantos casos ao mesmo tempo e agora está sem nenhum, só posso dizer que eles mereciam uma estátua!", declarou Fátima à Lusa, perante o provedor da Misericórdia, algumas técnicas e outros seniores.
A psicóloga Vera Castro dirige o principal lar da instituição e reconhece que a angústia maior terá sido efetivamente a dos 100 funcionários das estruturas residenciais da Santa Casa e a dos familiares impedidos de visitar os 165 utentes dessas valências, num esforço coletivo de evitar o contágio pelo vírus SARS-CoV-2. "Sentimos uma pressão maior porque as pessoas mais velhas já não consideram a morte algo tão inesperado como nós, que somos mais novos. Ficavam tristes quando alguém morria, claro, mas, como isso só aconteceu com utentes que já tinham outros problemas de saúde, diziam sempre qualquer coisa como: 'é pena, mas ele estava fraquinho e já tinha resistido a isto e àquilo'", explica.
Os óbitos atribuídos a covid-19 na Misericórdia de Ovar foram 12 e deram-se todos em ambiente hospitalar. Uma dessas mortes foi a de Vítor Pereira, um septuagenário que tinha graves problemas respiratórios e partilhava o quarto com Manuel Valente, de 87 anos. Esse sénior também acabou contaminado, mas é um dos que recuperou facilmente e, sem memória de outros sintomas além da perda do paladar, e "alguns desmaios pela fraqueza" associada à falta de apetite, aponta duas hipóteses para a sua cura: "Ou eles se engaram no meu teste e eu afinal nunca tive nada, ou é mesmo por eu ser um valente", argumenta com riso, numa pose à Popeye, de braços fletidos no ar e punhos fechados a simular grandes músculos.
Mais sério, Manuel confessa depois que rezou muito pelo seu colega e que chorou ao saber da sua morte, mas, ainda assim, admite que o mais difícil durante a pandemia foi a falta de contacto com a família. "Pode-se não morrer da doença, mas morre-se da saudade. Essa é que foi a tristeza maior. A minha filha telefonava-me todos os dias, mas não é a mesma coisa", avalia, ansioso ainda pelas missas em que, na capela ao lado, tocava bandolim para acompanhar o coro.
Lúcia Ribeiro "acha" que tem 77 anos, já resistiu à perda de um peito, à remoção do apêndice e a outras cirurgias, e passou incólume pela covid-19. "Não me pergunte porque é o vírus não me pegou, mas se calhar é por eu já ter menos coisas cá dentro?", equaciona, sem qualquer autocomiseração.
Em pantufas azuis e tão magrinha que quase não tem largura de rosto suficiente para segurar a máscara, garante que foi do convívio com os outros utentes que sentiu mais falta durante o confinamento. "Faltavam-me as minhas contrapartes para estar na conversa e nem podia ver televisão, porque a minha colega de quarto não gosta", recorda. Como ler também não era opção e os dias estavam restringidos sempre ao mesmo espaço, enquanto não lhe negociaram com a companheira algumas horas de TV, o seu entretenimento foi sempre o mesmo: "Rezar ao Senhor, esperar que viesse o soninho e depois aproveitá-lo a qualquer hora, que é bem bom!".
Álvaro Silva, o provedor da Misericórdia vareira, acredita que a cura de doentes com 95 ou 97 anos e a recuperação de 54 casos no espaço de três a quatro semanas reflete, por um lado, "a resiliência" dos seniores da instituição e, por outro, o empenho do 'staff' da casa em implementar, "sem hesitações, medidas extremas e muito restritivas". Afirma que toda a equipa "teve medo perante uma coisa que nunca vira antes" e se descobriu "numa situação pior do que tinha imaginado", mas, ainda assim, "saiu dela melhor do que estava à espera", registando apenas mortes que "já antes se antecipavam devido à vulnerabilidade física" das vítimas.
A terapeuta ocupacional Vanessa Martins é a mais jovem da conversa e, sem esconder "o alívio emocional" que sentiu ao confirmar que já não havia infetados na instituição, garante que os valores da Santa Casa saíram reforçados desta experiência. "Isto uniu-nos muito mais. Entre os funcionários, toda a gente tinha o mesmo objetivo, houve muito espírito de coesão, todos trabalharam para o mesmo. E como tivemos que dedicar mais tempo a conversar com os utentes, ficámos a conhecer melhor a história de cada um e isso fortaleceu-nos inteiros, como comunidade", assegura, sem conseguir segurar o sorriso, atrás da mascara, se percebe pelos olhos.
O novo coronavírus responsável pela presente pandemia de covid-19 foi detetado na China em dezembro de 2019 e já infetou mais de sete milhões de pessoas em todo o mundo, das quais mais de 403.000 morreram. Em Portugal, onde os primeiros casos confirmados se registaram a 02 de março, o último balanço da Direção-Geral da Saúde (DGS) indicava 1.485 óbitos entre 34.885 infeções confirmadas.
No município de Ovar, o último boletim da autarquia referia um total acumulado de 40 óbitos e 717 infetados com o SARS-CoV-2 entre 55.400 habitantes. Os recuperados eram já 660 e com sintomas ativos estavam apenas 17 pessoas.
Hoje de manhã, a DGS ainda atribuía ao mesmo território de 148 quilómetros quadrados apenas 672 casos de covid-19.
*Por Alexandra Couto, da agência Lusa
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