“Tem-se a ideia de que houve uma diminuição do atendimento, mas nós tivemos um incremento. Diz-se muito que as pessoas na primeira vaga [da pandemia de covid-19] foram esquecidas e que ficaram dimensões para trás, mas no Serviço de Psicologia não, isso não aconteceu. Pelo contrário”, referiu à agência Lusa Eduardo Carqueja.
Formalizado há um ano, o Serviço de Psicologia do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) atendeu na chamada primeira vaga da pandemia “mais de 600 doentes”, isto contabilizando só as pessoas infetadas com o novo coronavírus, e realizou mais 1.306 consultas face ao mesmo período do ano passado.
Eduardo Carqueja, que tomou posse como diretor do serviço em 22 de novembro de 2019, referiu que “até outubro [deste ano] o serviço realizou no global 14.450 consultas externas”.
“E a nível interno, registámos um aumento das consultas [de doentes que estão internados no hospital]. Tivemos, em 2020, mais 563 consultas do que em 2019”.
Numa entrevista à agência Lusa, na qual Eduardo Carqueja fez o balanço do que é o primeiro ano de trabalho de um serviço que “nasceu” num período “a todos os níveis atípico”, explicou que o serviço não se formalizou por causa da covid-19, mas o atual modelo de organização parece permitir maior produção.
Em causa está o facto de ter sido colocado em prática um despacho de 2017 que permite que hospitais e centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde (SNS) criem serviços de psicologia autónomos.
Eduardo Carqueja explica que, desta forma, os serviços de psicologia “ficam fora dos departamentos ligados à saúde mental e psiquiatria”. No caso do CHUSJ, este novo serviço responde diretamente à direção clínica.
“Isso foi muito importante porque agilizou a resposta. Esta situação pandémica, da forma como aconteceu, trouxe-nos um desafio brutal (…). A relação direta com a administração possibilita a tomada de decisões em tempo útil”, explica Eduardo Carqueja, analisando que a pandemia imprimiu “um ritmo de trabalho muito diferente”, acrescentou “imprevisto” e a necessidade de “decidir agora e já”.
Questionado sobre desafios atuais de uma área que o próprio admite que ficou mais exposta com a pandemia do novo coronavírus, Eduardo Carqueja fala na acessibilidade dos doentes e do estigma.
“Fala-se muito na fadiga pandémica. Isto é uma corrida que alguns no início pensavam que era de 10.000 metros, mas estamos a ver que é muito mais do que uma maratona dos 42.000. O problema é que alguns vão chegar ao fim descalços. As sapatilhas irão estar gastas por questões não só psicológicas, mas também sociais e económicas. Temos de acompanhar estas pessoas e não as colocar à mercê daquilo que é o estigma da acessibilidade”, refere.
Lamentando as “barreiras” de um SNS que não permite o acesso direto de doentes a uma consulta de psicologia, o que “acarreta atrasos na referenciação de casos”, Eduardo Carqueja considera que a decisão de mudar este modelo “tem de vir de cima”.
“Atualmente, quando um doente se queixa de uma situação de ansiedade, por exemplo, o médico [de família] só o pode encaminhar para psiquiatria e o doente fica numa lista de espera. A doença mental existe e precisa de ser atendida, mas os psicólogos conseguem incluir um outro olhar. Por exemplo, não posso catalogar o medo como doença mental, mas posso dizer ‘aquela pessoa está em grande sofrimento e precisa de acompanhamento psicológico’. Há sintomas que somados dão o catálogo de uma doença”, analisa.
Com 30 psicólogos e dividido em três áreas – adulto e idoso, neuropsicologia, infância e adolescência –, no Serviço de Psicologia do CHUSJ foi criado um núcleo de investigação e formação que atualmente tem em curso oito projetos, alguns deles em parceria com outras instituições nacionais e internacionais.
Os alvos destes projetos são pessoas em luto, doentes, familiares, profissionais de saúde, bem como, e entre outras, a área pediátrica.
“Como é que as crianças e os adolescentes estão a vivenciar esta situação pandémica?”, é uma das perguntas atuais, diz à Lusa Eduardo Carqueja, contando que “há instituições de ensino que têm recebido solicitações de jovens”, assim como são conhecidos relatos “pontuais” de pessoas que “se calhar” vão trabalhar embora estejam positivas [ao novo coronavírus] pelo medo de perderem o rendimento.
“Este é um desafio grande para todos nós. Efetivamente esta pandemia veio mostrar a importância da intervenção psicológica no geral. E uma coisa é certa: os psicólogos souberam de uma forma muito adequada responder. Foi um processo que ninguém queria que acontecesse, mas a tragédia seria ele acontecer e não existirem recursos, nem esta disponibilidade”, conclui.
Quanto ao que poderá ter ficado para trás pela necessidade de atender aos tais desafios novos, Eduardo Carqueja conta que o serviço que dirige tem em curso um processo de acreditação pelas normas de qualidade e rejeita a ideia de que algum setor tenha sido negligenciado.
Admite, no entanto, que o plano desenhado para três anos incluía a realização de sessões de grupo, algo que, num período em que é preciso educar a sociedade para as regras distanciamento social, teve de ser adiado.
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