O governo argentino anunciou na noite de sábado uma "investigação urgente" sobre o lançamento de uma criptomoeda promovida pelo presidente Javier Milei na sexta-feira, que caiu horas depois de uma publicação nas redes sociais do líder ultraliberal, entre acusações de fraude e pedidos de "impeachment".

Segundo imagens transmitidas pela imprensa local, Milei tinha publicado no X uma mensagem, fixada no seu perfil durante mais de cinco horas, com um link para o projeto chamado "Viva La Libertad Project".

"O mundo quer investir na Argentina. $LIBRA", dizia a publicação com o nome do token, uma unidade de valor digital baseada na tecnologia blockchain sem valor em moeda real.

O anúncio do presidente ultraliberal afirmava que a criptomoeda era "um projeto privado" dedicado a "incentivar o crescimento da economia argentina, financiando pequenas empresas e empreendimentos argentinos".

Economistas e especialistas no universo cripto da Argentina, bem como vários políticos da oposição, rapidamente criticaram Milei e apontaram para o facto do ativo digital poder ser uma fraude ou um esquema Ponzi.

Horas depois o presidente excluiu a publicação. "Eu não estava ciente dos detalhes do projeto e, depois de ter tomado conhecimento, decidi não continuar a difundindi-lo", explicou Milei já depois da meia-noite na sua conta no X.

Com o aumento das críticas, a presidência argentina informou ainda na noite de sábado que, "perante os factos", Milei "decidiu intervir de forma imediata com o Escritório Anticorrupção (OA) para determinar se houve conduta imprópria por parte de qualquer membro do governo nacional, incluindo o próprio presidente".

Também anunciou a criação de uma "Unidade de Força-Tarefa de Investigação" sob o gabinete do presidente encarregada de "iniciar uma investigação urgente sobre o lançamento da criptomoeda $LIBRA e todas as empresas ou indivíduos envolvidos na operação", acrescentou a presidência numa declaração no X.

"Pedido de impeachment"

De acordo com especialistas em finanças digitais, como a revista de mercados de capitais The Kobeissi Letter, cerca de 80% do ativo $LIBRA estava nas mãos de poucos antes do apoio de Milei.

Depois da publicação do presidente, o valor cresceu exponencialmente, de décimos a um pico de 4.978 dólares; os detentores originais começaram a vender com lucro de milhões, mas o valor do ativo caiu de seguida.

A manobra é conhecida no trading digital como uma "puxada de tapete", segundo Javier Smaldone, especialista em informática e influenciador digital conhecido por denunciar esquemas de pirâmide.

"Uma criptomoeda é criada, o que também pode ser feito com ações, recebe uma liquidez inicial para que o que foi criado valha alguma coisa e, em seguida, uma campanha publicitária de algum tipo é iniciada, atraindo pessoas", explicou Smaldone sobre o papel que a promoção de Milei poderia ter desempenhado.

O especialista acrescentou que à medida que "as pessoas começam a comprar, o valor do ativo aumenta (...) até que, em algum momento, aqueles que administram a liquidez retiram o dinheiro e a coisa desanda".

Líderes da oposição denunciaram o ocorrido, como o senador da UCR (centro) Martín Lousteau, que declarou na sua conta no X que "esta é a segunda vez que, como funcionário, (Milei) anuncia ativos do mundo das criptomoedas que acabam a ser uma fraude".

Também no sábado, o bloco União pela Pátria, liderado por peronistas na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional, anunciou que na segunda-feira apresentará "um pedido de Impeachment contra o Presidente da Nação".

Em 2021, o então deputado e agora presidente promoveu a plataforma CoinX, que oferecia lucros de 8% ao mês em dólares e agora também está sendo investigada por suposta fraude.

Para o deputado da Coalizão Cívica Maximiliano Ferraro, o que aconteceu com a $LIBRA "foi uma manobra especulativa que poderia ser alavancada no poder político do Presidente e no uso de informações privilegiadas".

O Congresso "deveria criar uma comissão especial de investigação" para "esclarecer os factos e determinar as responsabilidades", considerou.

Investigado

A justiça federal argentina investigará se o presidente Javier Milei cometeu um crime ao promover, nas suas redes sociais, uma criptomoeda que colapsou horas após o seu lançamento na última sexta-feira, após receber uma onda de denúncias contra o mandatário.

O juízo federal 1, sob a responsabilidade da magistrada María Servini, foi designado na segunda-feira por sorteio para centralizar as denúncias que pedem para apurar se Milei cometeu associação criminosa, fraude e violação dos deveres de funcionário público, entre outros crimes.

“Denunciamos que Milei fez parte de uma associação criminosa que organizou uma fraude com a criptomoeda $LIBRA, que afetou simultaneamente mais de 40 mil pessoas, com perdas superiores a 4 mil milhões de dólares", afirmou num comunicado o Observatório de Direito da Cidade, cujos advogados lideram uma das ações.

Deputados da oposição União por la Patria (peronismo) anunciaram que vão promover a destituição de Milei no Congresso; outras forças políticas pedem a instauração de uma comissão investigadora e a convocação do presidente para interrogatório.

No contexto do escândalo, as principais ações caíram quase 4% na abertura da Bolsa de Buenos Aires. Foi feriado nos Estados Unidos na segunda-feira e os mercados de Nova York estiveram fechados.

A denúncia inclui, entre outros, Julián Peh, CEO e cofundador da Kip Network e KIP Protocol - empresas que participaram na criação da $LIBRA - e o presidente da Câmara dos Deputados, Martín Menem, que partilhou a mensagem de Milei na rede social X na sexta-feira.

“Imediatamente após a mensagem de apoio presidencial, o preço do criptoativo registou uma subida exponencial na sua cotação e, depois, em cinco horas, colapsou”, relata a apresentação judicial.

De acordo com a petição, o facto de "o presidente Milei e outros líderes de seu partido, La Libertad Avanza, promoverem o Token, deu legitimidade ao projeto, fazendo com que milhares de investidores confiassem".

Dessa forma, o preço subiu, "e os grupos que controlavam a maior quantidade do token liquidaram as suas posições, obtendo um lucro exorbitante".

Os denunciantes consideram que “a promoção do $LIBRA feita pelo presidente Milei não foi acidental nem ingénua” e ressaltaram que se passaram “3 minutos” desde o lançamento do token até o tweet presidencial.

Milei, economista de profissão, "é um amplo conhecedor das criptomoedas e do seu funcionamento", apontaram.

A ação solicitou à justiça o cumprimento de um mandado de busca e apreensão na residência presidencial de Olivos e o confisco de computadores, tablets e celulares.

Os autores também pedem a "intervenção e perícia na plataforma X para custodiar o conteúdo da conta do presidente Javier Milei @JMilei e dos outros denunciados, incluindo os registos de seus tweets apagados", bem como a rastreabilidade das transações "para identificar os beneficiários da fraude".

Além desta denúncia apresentada ao Ministério Público, outras centenas estão a ser promovidas por canais digitais, informaram fontes judiciais citadas pela imprensa local.

Agiu "de boa-fé"

O presidente da Argentina, Javier Milei, negou na segunda-feira ter promovido a criptomoeda $LIBRA e afirmou ter agido "de boa-fé" ao divulgar informações sobre ela, na última sexta-feira.

"Eu não a promovi; eu divulguei", disse Milei ao canal TN, referindo-se à publicação apagada, que o fez ser acusado pela oposição, entre outras coisas, de obter informação privilegiada. "É um problema entre privados, porque aqui o Estado não tem nenhum papel", acrescentou.

"Alguém que vem e me propõe criar um instrumento para financiar projetos. A mim, parece interessante", disse o presidente, defendendo-se como "um tecno-otimista fanático".

Milei afirmou ainda que havia "muitíssimos robôs" entre os investidores, e que apenas cinco mil pessoas tinham participado.

Um escritório de advocacia informou que apresentou uma denúncia ao FBI e ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos. "Estamos perante um esquema de fraude em massa cometida não apenas contra os nossos clientes, mas contra milhares de pessoas em diferentes jurisdições", entre elas muitos americanos, diz a denúncia, que envolve Milei e outros quatro indivíduos, entre eles Hayden Davis, um dos criadores da criptomoeda.

Há consequências políticas?

O analista político Carlos Germano disse à AFP que a credibilidade do presidente "era impecável" até sexta-feira, mas que o episódio da criptomoeda abriu "uma brecha". "Havia um nível de transparência que a sociedade via e hoje isso foi colocado em causa", porque "esse facto gerou uma grande incerteza, uma grande dúvida que repercutir-se-á no Parlamento".

Carlos Germano não acredita que o impeachment tenha sucesso. "Isso é inviável hoje na Argentina", pois não reunirá os votos necessários. "A sociedade em geral continua a apoiar o presidente, principalmente num tema central, que foi a luta contra a inflação", que em 2024 foi de 117,8%, quase a metade do que no ano anterior.

Javier Smaldone, especialista em informática e influenciador digital conhecido por denunciar fraudes de pirâmide, disse à AFP que a operação de sexta-feira durou "mais ou menos duas horas". A principal denúncia registada na Argentina inclui, entre outros, Julián Peh, CEO e cofundador da Kip Network e KIP Protocol - empresas que participaram da criação da $LIBRA -, e o presidente da Câmara dos Deputados, Martín Menem, que partilhou a mensagem de Milei na sexta-feira no X.

A ação judicial acusa Milei e membros do seu partido de legitimar o token, fazendo o seu preço subir e facilitando a obtenção de "um lucro exorbitante" para alguns. Também solicita uma busca na residência presidencial, a apreensão de dispositivos e uma análise da sua conta no X, incluindo "os registos dos tweets apagados". Também houve 100 denúncias digitais.

*Com agências