A conversa com David J Harkin começa antes da mesa redonda em que participou no Digital With Purpose, em Lisboa, e depois do inglês ter visitado uma escola na capital portuguesa. Há-de terminar a conversa dizendo que ainda não tem parceiras por cá, mas que tem muita vontade. Refere-se ao projeto 8 Billion Ideas, por ele criado, que neste momento está em mais de 5000 estabelecimentos de ensino em todo o mundo.
O caminho que o trouxe até ao sítio onde está hoje não foi o mais provável, mas foi o mais feliz. Disléxico, estudou História, o que "não era o curso óbvio, porque tinha muita leitura e escrita". Depois da Universidade trabalhou cerca de sete anos para a IBM, numa altura em que a tecnológica estava interessada em licenciados na área de humanidades. David beneficiou do facto de, como licenciado em História, estar habituado a fazer pesquisas e saber negociar. Começou na equipa de vendas e foi ganhando clientes cada vez maiores. Hoje olha para trás e reconhece que aquele percurso o ajudou muito, principalmente porque já sabia que queria entrar no mundo tecnológico.
À margem das conferências, na Altice Arena, disse em conversa com o SAPO24 que era um mundo "acelerado, entusiasmente e diferente". Contudo, ao fim de seis anos começou a ter uma sensação de "claustrofobia" em relação ao mundo corporativo e no sétimo decidiu empreender e criar uma empresa de serviços ligada à educação. Mas foi só depois da pandemia da COVID-19 que deu o salto e criou o que o trouxe agora a Lisboa: a 8 Billion Ideas.
Em conversa com o SAPO24 explica que missão da empresa de educação, tecnologia e serviços é "dar às crianças as ferramentas que achamos que as vão ajudar a mudar o mundo". Neste momento, o trabalho da sua organização é feito diretamente com escolas e grupos de escolas, mas "de futuro queremos começar a trabalhar com os governos", avança. Resume este projeto educativo, multidisciplinar, como sendo "uma plataforma educativa com base em desafios para crianças até aos 11 anos".
"Temos um currículo para estes anos e cursos para as escolas. Temos ainda diferentes mecanismos, consoante as escolas e os sítios onde estão sediadas no mundo e do acesso que têm à tecnologia. Mas resumindo, os pilares de aprendizagem são empreendorismo, carreira, aptidões para o futuro, desempenho e bem-estar. E depois há pilares invisíveis, como sustentabilidade, tecnologia e literacia financeira. Acreditamos que tudo isto é crítico", explica.
Para David é importante, ao longo da conversa, não fechar a sua organização numa gaveta, mas antes transmitir que há "variadíssimas formas de participação e as escolas podem estar em qualquer geografia, porque o que ensinamos é global." Dá o exemplo do empreendorismo para explicar que "o mecanismo é igual em Portugal, nos EUA ou em Hong Kong, a forma como é construído e ensinado é mais ao menos a mesma".
Devem as escolas mudar a forma como ensinam?
Primeiro devo dizer que as escolas são sítios incríveis. Atualmente estão muito ocupadas. Já estamos a pedir demasiado das escolas, os alunos passam 50% do tempo em que estão acordados numa escola, há tanta aprendizagem que pode acontecer durante este horário. Normalmente digo que acredito na evolução/revolução nas escolas, porque estão a fazer coisas muito boas, mas o mundo está a mudar mais depressa do que nunca. E estamos a ver, com este acesso à tecnologia, que os miúdos estão a aprender não só pelo que lhes dizem os seus professores, mas através dos seus aparelhos, das suas escolas virtuais. Portanto, definitivamente temos que atingir a aprendizagem personalizada, mas é uma jornada que vai levar o seu tempo. E claro que as escolas podem fazer mais, mas a sociedade também pode fazer mais. Não são só as escolas que têm que ter esta responsabilidade.
E qual é o papel da sociedade e da escola nessa mudança?
Se pensarmos, uma criança é influenciada de tantos ângulos diferentes. Tomemos como exemplo uma criança entre os três e os seis anos. Ela vai à escola e tem aí uma esfera de influência. Depois tem a família, que é uma área central de influência, e ainda tem a tecnologia, o Youtube, e os seus aparelhos. Há diferentes fatores que podem influenciar uma criança e educá-la de forma mais igualitária. Portanto, a melhor estratégia de educação é não nos focarmos exclusivamente no que está a acontecer na escola e o que está a ser feito pelos governos, mas focarmo-nos na ideia de como podemos dar mais ferramentas aos pais para educar melhor nas suas casas. Por exemplo, há pouca regulamentação para o que as crianças veem nos seus aparelhos, desde os canais de televisão mais populares ao Youtube. E eles estão a aprender muito através deles, e muita dessa aprendizagem é errada.
Há três anos, numa TED Talk perguntou "o que é uma mentalidade de excelência?". Faço-lhe a mesma pergunta três anos depois, e pergunto também o que mudou neste período?
Obrigado por ouvir a minha Tedtalk (risos).
De forma muito direta, para mim uma mentalidade de excelência é o desejo de querer estar sempre a melhorar em absolutamente tudo o que fazemos, todos os dias. E normalmente fazê-lo em pequenos passos, eu costumo dizer que é um interruptor que está atrás da cabeça e se pode ligar. No que diz respeito às mudanças, acho que depois de ter esta mentalidade consigo fazer um mês de trabalho numa semana, e uma semana de trabalho num dia. Principalmente com o aparecimento das reuniões virtuais, o telefone sempre a tocar... Não posso dizer que a mentalidade tenha mudado, mas a forma como estamos todos a trabalhar mudou, e ainda nenhum de nós percebeu qual vai ser o impacto disso.
"Aposto que se eu fosse o ministro da Educação conseguia encontrar mais 20% de tempo qualquer escola do mundo instantaneamente apenas com algumas opções táticas. Um dia por semana podia ser mais eficiente."
Nos últimos anos temos visto um aparecimento em larga escala do número de empreendedores e as empresas a valorizarem cada vez mais as soft skills. Obviamente que as escolas têm um papel fundamental nesta mudança de paradigma, mas que caminho falta ainda trilhar?
Estratégia. Fundamentalmente falta estratégia. As escolas têm os seus temas principais, e as disciplinas extracurriculares podem ser o que quiserem, empreendorismo, carreiras, teatro. O que quer que seja, mas é aí que achamos que se pode fazer a diferença. Por isso é que gostamos de chamar a este currículo "crítico" e não "extra", porque achamos que é tão importante. Tradicionalmente, o que está a falhar nas escolhas é que não estão a fazer nada com todos estes espaços onde as capacidades e o empreendorismo podem ser desenvolvidos. Não há uma estratégia pensada desde o momento em que uma criança entra na escola até ao momento em que sai e, depois aí, já é tarde demais.
O empreendorismo é um exemplo perfeito: na maioria das economias mundiais uma em cada cinco pessoas criou o seu próprio posto de trabalho, ou gere um negócio. As escolas produzem mais empreendedores do que outra qualquer profissão. E a forma como isso acontece é, em muitos casos, só por terem um dia em que as atividades escolares são substituídas por outras em que os alunos começam um negócio, fazem um pitch, são uma espécie de líderes e depois deixam isso marinar e voltam só passados uns anos. Isto não é bom o suficiente, tem de ser desde os três, cinco ou oito anos até aos 18. É nisto que as escolas estão a falhar. Não estão longe, mas seguramente não há planeamento estratégico suficiente. Há coisas a ser atiradas neste sentido para tentar ajudar, mas não há estratégia, não há nada.
Os professores já têm tantas queixas acerca dos seus horários e da sua carga de trabalho. Esse planeamento, estas aulas extra, seriam para juntar ao seu trabalho já existente ou seria mais uma tarefa?
Sem dúvida que a retenção de professores nas escolas e o seu recrutamento é um desafio global, não é só em Portugal. Sei também que a carga de trabalho é um problema, pedimos demasiado à nossa comunidade escolar. Contudo, sempre achei que as escolas beneficiariam de ter um "Chief Time Officer" (responsável pela gestão de tempo, em tradução livre). Alguém que estivesse dedicado em exclusivo a olhar para o tempo, a encontrar tempo, e a poupar tempo. Se não fizermos isso como primeiro passo, vamos estar sempre a ver o que temos que tirar cada vez que é preciso ensinar uma coisa nova. Acho que poucas escolas dão valor ao tempo, aos ganhos que podem ter se olharem para o tempo. Também não valorizam as frustrações que os professores têm, porque há muitas ideias simples que as podem resolver.
Se se derem estes dois passos, de repente o tempo deixa de ser um problema. Em terceiro lugar, e sei que é mais radical, deve fazer-se um corte curricular. Ensinamos muita coisa que já não é relevante, devíamos fazer alguns cortes táticos. Aposto que se eu fosse o ministro da Educação conseguia encontrar mais 20% de tempo qualquer escola do mundo instantaneamente apenas com algumas opções táticas. Um dia por semana podia ser mais eficiente.
Consegue dar-nos um exemplo?
Tomemos como exemplo o número de disciplinas nas escolas britânicas, há escolas onde as crianças ainda têm 10 disciplinas. Não é necessário. Podiam ser cortadas para metade, e aí já se encontrava o tempo para aprendizagens com base em projetos. Mas também é necessário haver uma abordagem diferente em relação aos calendários escolares, não temos a melhor mentalidade. Temos que organizar as escolas de forma diferente. É impossível que as crianças sejam criativas quando há uma campainha a tocar para entrarem, saírem e mudarem de aula. Há várias coisas que podem ser feitas. Estamos a olhar sempre para coisas numa primeira dimensão da educação, mas a forma como as escolas estão construídas, a forma como funcionam, e são geridas podia ser mais eficiente e fazê-las evoluir mais.
"Uma criança deve sair da escola e saber responder à pergunta "o que é que te apaixona?" em vez de "o que queres ser quando fores grande?"
Diz que quer mudar o mundo, como implementar ações que tornam as crianças mais confiantes nas suas tentativas de mudar o mundo, em vez de procurarem soluções de recurso mais tarde na vida?
Eu acho que os adultos procuram essas soluções de recurso porque desviam as crianças das suas paixões muito cedo. As pessoas tomam decisões muito complicadas, muito cedo. Como que exames vão fazer, o que vão estudar, ou não estudar. E depois a maioria dos adultos faz o que acha que devia fazer e não aquilo que quer fazer. E, mais tarde, nos anos definidores olham para as suas vidas e percebem que não fazem nada que tenha a ver com as suas paixões. E começam a sobre-analisar-se, a ficar ansiosos. A forma de corrigir isso é fazer com que nas escolas se passe mais tempo a explorar e a procurar as paixões de cada um. Uma criança deve sair da escola e saber responder à pergunta "o que é que te apaixona?", em vez de "o que queres ser quando fores grande?". Se souberem responder a essa pergunta corretamente, podem tomar decisões muito mais acertadas nos vários caminhos do seu futuro. Além disso, não ensinamos o básico nas escolas sobre alimentação, sono, exercício, no fundo de como o cérebro funciona. Quanto mais cedo tiverem acesso a essa informação na vida, conseguem resolver muito mais problemas mais tarde.
Desde que foi pai o que mudou na forma como lida com o ensino?
Tenho que dizer que o que mudou, principalmente, é que ando imensamente mais ocupado e cansado. Tenho três rapazes, com 7, 4 e 1 anos. Acho que a principal mudança é que me tornei ainda mais determinado a querer mudar a educação, depois de pensar que os meus filhos vão usufruir do sistema educativo. A 8 Billion Ideas tem um impacto no planeta, não é apenas nas escolas onde opera. É globalmente. E, por isso, estou sempre a pensar no que podemos fazer, mas também estou terrivelmente mais cansado. E, claro, adoro ser pai e quando os vejo a ter ideias próprias, explorar e a ser curiosos percebo que quero mesmo fazer com que usufruam da educação que estou a criar. E a verdade é que dão óptimo feedback, mas também são os críticos mais implacáveis. Neste aspeto devíamos aprender com eles.
E, para terminar, como é que um encarregado de educação em Portugal pode inscrever os filhos no 8 Billion Ideas?
Basta visitar o site, neste momento o nosso principal mecanismo de funcionamento é através das escolas. Por isso falem com os reitores e diretores, espalhem a mensagem. Mas temos muitos recursos online que podem ser aproveitados enquanto ainda não estamos numa escola em Portugal. Os pais podem ter essas conversas em casa. E podem sempre entrar em contacto comigo através do Linkedin e eu estou lá para ajudar.
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