Luísa olha pela janela. Chove. O dia está triste como ela. E recorda o verso de Campos:

"Chove e de vez em quando faz um vento frio… Estou triste, muito triste, como se o dia fosse eu."

É como ela se sente, triste, derrotada. Olha, novamente, a chuva a cair, impiedosa, e lembra-se do abril soalheiro do ano anterior em que tinha passeado na praia com o livro de poemas debaixo do braço. E, de lembrança em lembrança, recorda a menina de 11 anos que numa manhã de abril não foi à escola. Tal como agora era muito perigoso sair. Alguém estava na rua a lutar, para que se pudesse sair, para que se pudesse falar sem medos, para que o irmão mais velho não tivesse que ir para a América, fugido. Só que nesse tempo o inimigo tinha nome, tinha rosto, e sabia-se onde habitava. Agora tem um nome comum, um rosto que pode ser o nosso e não se sabe onde mora.

Luísa volta a olhar a janela. Lá fora a chuva continua, e cá dentro o verso de Campos ressoa "...como se o dia fosse eu".

E é então que Luísa sorri, percebe que aquela longínqua manhã de abril pode continuar viva dentro de si, na sua casa, e que o sol pode voltar a brilhar. A Liberdade é ela. Está nela e essa ninguém lha pode tirar.

Na verdade, Luísa pensa que o facto de estarmos dentro de casa não nos tolha a liberdade. Não podemos ir passear, sair à noite, trabalhar na escola, mas podemos ser nós mesmos, sonhar com o depois, partilhar ideias, conversar com os amigos, com os pais e até com os filhos (à distância e em segurança).

E, nesse momento, ela pensa o que podemos fazer com essa liberdade, a real, a que está em nós. Nada nos proíbe de nos manifestarmos, de darmos a nossa opinião, de hoje começar a fazer o futuro.

Um futuro com um planeta melhor, mas com a noção de que num momento poderemos ser desprovidos de certezas, de garantias e de abraços. (Desses ela sente falta). Um futuro que, sendo global, será, terá de ser, um caminho individual, e que definitivamente começa em nós o 5.º império coletivo.

Então Luísa sente que a tristeza tem de ser combatida e que a chuva, que bate na janela, não se transformará num eu que não faria justiça aos sonhos daquela menina que acordou, com 11 anos, para a Liberdade.

"A liberdade está a passar por aqui" diz um poeta mais recente. E Luísa tem a certeza que neste momento está a passar dentro dela. Nos seus sonhos, nos seus poetas, nas suas certezas de que o amanhã será de todos, todos os que, num 1.º de maio, que poderá ser em junho, farão em conjunto e sem barreiras a festa de um mundo unido, que nas ruas se abraça e começa uma outra forma de vida.


Texto por Maria João CovasHoje, dia 25 de abril, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítuloassinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão.