O objetivo do jornalismo é informar com rigor. Todavia, o primeiro de abril está reservado, pelo menos desde 1564, para que seja permitida uma fuga à regra. Apesar de a tradição já não ser o que era, ao longo dos anos,  jornais, rádios e televisões ludibriaram os seus seguidores com notícias que vão desde o completamente irreal ao subtilmente inverosímil.

Há muitas versões da história, mas tudo terá começado quando o rei francês Carlos IX, ou a sua mãe, fez publicar um decreto alterando a data de início do ano civil de 25 de março para o primeiro de janeiro. Na altura do ano novo, a 1 de abril, as pessoas costumavam trocar presentes. Os adeptos do novo calendário levaram com eles a tradição, sem, contudo, deixar uma pequena subtileza em abril para, diz-se, ridicularizar a real tentativa de trocar as voltas ao calendário.

Assim, no lugar dos outros presentes ofereciam prendas e postais de boas festas falsos. Brincadeiras e convites falsos para celebrações que não existiam eram também algumas das maneiras de marcar a data. Daí até às mentiras foi um salto.

Ou dois. A tradição foi-se espraiando por toda a Europa, com a difusão da cultura francesa. Mais tarde chegou às Américas e agora, qualquer que seja o antípoda, todos celebram, de uma forma ou de outra, o dia das mentiras.

Do outro lado do Canal da Mancha, os ingleses reclamam para si a tradição. O dia das mentiras ter-se-á espalhado pela Grã-Bretanha no século XVIII. Na Escócia, a tradição ganhou um dia extra, dedicado aos traseiros escoceses, sendo o objetivo nacional colar caudas ou papéis a pedir pontapés nos mais inocentes.

Com o passar do tempo, os media entraram na brincadeira, por isso, antes de visitar a última década do século XX (que é aquilo que prometemos no início deste artigo), podemos fazer uma breve súmula dos melhores factos alternativos vintage, isto é, anteriores aos anos 1990.

Artur Agostinho, em 1948, levou o caos ao Aeroporto da Portela depois de dizer que o músico Bing Crosby estava a chegar à capital portuguesa; e em 1980, o anúncio de que uma loja da Valentim de Carvalho estava a vender umas lâmpadas que davam cor aos televisores gerou também confusão no estabelecimento.

Na Suíça, em 1957, surgiram umas árvores de onde nascia esparguete. A história foi contada pela emissora britânica BBC, que mostrava imagens da colheita por agricultores de massa suíços.

Já em 1981, no Reino Unido, os cientistas dominam a meteorologia. A história é do The Guardian, que explica que, com esta conquista, está assim garantido um dia de sol para o casamento de Carlos e Diana, a 29 de julho desse ano. E mais: para as zonas menos leais à coroa, há chuva, muita chuva preparada.

O também britânico Daily Mail dava conta da decisão das autoridades de prosseguir com as buscas a um atleta japonês que se perdera numa maratona. Ao que parece, em vez de correr as 26 milhas, percebeu ser o objetivo correr 26 dias.

No primeiro de abril de 1982, uma promoção fantástica provoca uma romaria a uma loja da baixa de Lisboa: o jornal A Tarde anuncia a venda de batatas a nove escudos. Numa altura em que o preço rondava os 46 escudos, a mercearia tornou-se no lugar aonde qualquer pessoa apreciadora do legume tinha de ir. No logro caíram não apenas os clientes, mas também a mulher do dono do estabelecimento.

Seis anos depois, em 1988, uma rádio disse que uma corrente de água fria levou toneladas de marisco a dar à costa na praia da Parede, em Cascais. Agora, parece que foram os apreciadores de mariscadas que encontraram a promoção perfeita. Agarrando em sacos, lá foram muitos portugueses à procura de arranjar um petisco à beira da marginal.

Em França, uma empresa promovia o arrendamento de lugares no metro; em Bruxelas, o Japão preparava-se para aderir à então CEE; no Reino Unido, os soutiens interferiam com as emissões de televisão. Na Eurovisão planeava-se transmitir o espetáculo sem som.

 

1990-1998: uma quase década de mentiras

Num artigo sobre mentiras na comunicação social, falsificações da realidade e alternativas factuais podemos dar-nos ao luxo de criar novas organizações temporais. Redefinir os standards e passar a afirmar que as décadas duram oito anos, descontando algumas falhas pelo meio, é não apenas uma ode à tradição de brincadeiras que a imprensa faz neste dia, mas também um auxiliar para quando a informação concreta escasseia.

Comecemos, então, pelo início: 1 de abril de 1990. Há pânico em Lisboa. Conta o matutino O Dia que o leão Chico resolveu fugir do Jardim Zoológico da cidade, em Sete Rios, e andou a amedrontar transeuntes até ser apanhado pela polícia e pelos bombeiros na Praça do Comércio, à beira do Tejo.

No Porto, o rio também aparece nas “notícias”. O Comércio do Porto dá conta de um desnível na então nova ponte ferroviária sobre o Douro, desnível esse que obriga à imediata demolição do tabuleiro.

O Jornal de Notícias lança uma manchete tentadora: as finanças reconheceram a existência de um erro nos cálculos do IRS e, por isso, vão devolver integralmente o valor do IRS aos contribuintes, através de cheques passados em carrinhas das finanças, apresentadas na foto que ilustrava a capa daquele jornal.

Para 1991, façamos um pequeno passeio a França. Uma rádio local da comuna de Lievin, no norte do país, anuncia que foi descoberto ouro nas areias de uma ribeira. Mais: durante 48 horas a prospeção é livre. Imaginando mudar de vida e para isso só precisar de andar de cócoras à beira dum rio, várias pessoas se muniram de pás e outros instrumentos e, durante horas, escavaram as margens da ribeira à procura de ouro.

O L’Humanité, jornal dos comunistas franceses, anuncia uma medida inovadora para debelar as desigualdades sociais. Durante alguns dias, os mais importantes administradores de algumas empresas do país vão trocar de lugar com jovens desempregados ou com emprego precário. A ideia partiu do então Ministro do Trabalho francês, Jean-Pierre Soisson, e tinha o objetivo de fazer os senhores administradores perceber os problemas da juventude.

Já o Le Parisien lança obras públicas de grande envergadura. Melhor, obras públicas colossais: um estádio para 80 mil pessoas, no Parque de Vincennes, no leste da capital francesa. Para o construir é necessário destruir um jardim zoológico, secar um lago e levar a cabo outros atentados ao ambiente.

O caso é sério. O Parisien publica até um editorial com mapas detalhados da obra e os resultados de uma sondagem que ouviu toda a gente, incluindo as prostitutas que fazem do Parque de Vincennes o seu poiso habitual.

Évora acordou no primeiro de abril de 1993 com boas notícias: há ouro no rio Degebe. A manchete é do Diário do Sul, que encheu a capa de mentiras: os burros vão solucionar os problemas de trânsito na cidade, o diário eborense vai preparar o século XXI, que se aproxima, disponibilizando as suas edições em várias línguas e Ravi Shankar, embaixador da música indiana, está de visita à capital daquele distrito alentejano.

Para além de ouro no rio e trânsito fluido com o recurso a asnos, Évora tem um novo atrativo: pegadas de dinossauro. António Foito, vereador daquele município, confirma a notícia e a rádio Meridional tem um repórter no local - seja ele que local for.

A câmara de Beja confirma a notícia avançada pela rádio bejense Pax: a torre de menagem do castelo daquela cidade vai ser apresentada na Expo/98, em Lisboa, a cerca de 180 quilómetros e cinco anos de distância.

Nos cafés da Madeira não se fala de outra coisa. “Estes emigram e depois não têm mais nada que fazer do dinheiro”, diziam alguns ilhéus naquela manhã. A RDP/Madeira anunciara, logo nos noticiários da manhã, que um grupo de simpatizantes do Clube Desportivo Nacional, radicados na África do Sul, estava disposto a pagar as dívidas do clube alvinegro.

Para além da notícia sobre a solidariedade dos filhos da terra, o Funchal recebeu novidades para a melhoria da mobilidade urbana. A rádio Jornal da Madeira anuncia a construção de uma rede de metropolitano na cidade madeirense. Um inquérito feito por aquele órgão junto da população mostrou na maioria uma reação positiva à construção.

O Diário de Notícias da Madeira quis ofertar aos seus leitores um suplemento com a história das mentiras mais famosas da ilha. Para isso incluiu um aviso, a alertar os leitores para a inclusão desse trabalho.

Ora, facto é que o suplemento queria ser ele mesmo a mentira mais famosa da Madeira: é que não existiu. E a sua não existência, isto é, a não materialidade efetiva da prometida oferta gerou, mesmo em dia das mentiras, algumas reclamações nos serviços daquele matutino.

No ano seguinte, 1994, o Porto inaugura uma nova atração no Parque da Cidade. A reportagem é do Jornal de Notícias, que inclui fotos dos novos habitantes do maior parque urbano do país. A fauna não é propriamente autóctone daquela década, mas também não é inédita, basta perguntar a Steven Spielberg. Não obstante a contemporaneidade dos bichos, o clima da Invicta não deve ser desagradável para os dinossauros que agora a habitam - sim, dinossauros.

O Comércio do Porto noticia a reativação da cadeia da Relação daquela cidade. O monumento, onde Camilo Castelo Branco esteve detido no século XVIII, terá de ver os projetos culturais adiados, porque a sobrelotação do sistema prisional português assim o exige.

No Primeiro de Janeiro, os desejos do então secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, abrem o segundo caderno do já extinto jornal. Uma fonte bem informada assegura a “quase certeza” das intenções de a secretaria de Estado apoiar uma peça de teatro com a atriz/modelo brasileira Lilian Ramos no papel principal.

Recorde-se que no carnaval desse ano a brasileira fora fotografada sem cuecas ao lado do então presidente do Brasil, Itamar Franco.

O novo milénio aproxima-se e a modernidade chega à Guiné-Bissau em abril de 1995: as torneiras do país vão passar a distribuir cerveja. A inovação foi apresentada na televisão guineense que numa peça detalhada conta como uma empresa de distribuição de sumos de fruta e de cerveja pensa resolver os seus problemas financeiros. 

A Cicer, empresa estatal, assinou um acordo com a Eletricidade e Águas da Guiné-Bissau para, a título experimental, usar a rede de distribuição de água para, às sextas-feiras, durante uma hora, distribuir sumos de fruta pelas torneiras aos muçulmanos.

O pagamento é feito através de contadores de sumos e cervejas, parecidos com os da água, que hão de ser cobrados pela empresa de águas e eletricidade.

Todo o sistema foi apresentado numa reportagem onde se pode ver cerveja a sair, bem gelada, frise-se, de uma torneira de água e um diretor da Cicer a bebê-la, gozando do maravilhoso engenho.

Quem também poderá desfrutar da tecnologia guineense de transporte de refrigerantes e bebidas alcoólicas é Bill Clinton, à altura presidente dos Estados Unidos, que está de visita a convite feito pelo homólogo guineense, João Bernardo Vieira, durante a Cimeira da Terra, no Rio de Janeiro, dois anos antes, conta a rádio da Guiné-Bissau.

Com Clinton, acrescenta a rádio guineense, vem Michael Jackson, que, assim, também pode experimentar a novidade durante as 12 horas que durará a visita de estado ao país africano.

Já que estamos a falar de americanos, rumemos aos Estados Unidos. É 1998, Portugal abre-se ao mundo com a Expo 98, na zona oriental de Lisboa. Aquilo que era uma zona industrial degradada, deu lugar à modernidade. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos de Bill Clinton, a cadeia de fast-food Burger King anuncia o inovador hambúrguer para canhotos - redondo, como os hambúrgueres se querem, era exatamente igual aos hambúrgueres para destros. Só que este é para esquerdinos.

Artigo ambidestro

A nossa década de mergulho no arquivo da agência Lusa acaba em 1998 e está desfalcada nalguns anos. Porém, temos um texto que pode ser lido por todos, escrevam eles com a mão esquerda, com a mão direita - ou com as duas.