Da aldeia onde venho, ao largo da vila da Batalha, no distrito de Leiria, há uns bons anos, o dia 31 era uma noite de pura excitação. Daquelas em que os miúdos não fazem nada de errado para fugir a qualquer eventual repreensão por parte dos pais e vão para a cama cedo à espera que o dia nasça para pegar nas sacas para ir pedir o bolinho. Reunem-se os primos, os amigos e vai-se de porta em porta juntar uma quantidade absurda de doces e de merendas condenadas a irem para uma saca mais pequena que se leva escondida na ânsia de nunca ser necessária e assim cumprir o seu verdadeiro desígnio: encher-se de mais doces e evitar um desvio até casa dos avós para despejar a saca e retomar o caminho.

O dia era de alegria e pura gula. De manhã caminhava-se, à tarde comia-se e brincava-se. Amanhã, se estivesse na minha aldeia fintaria a coisa da idade e acompanhava o meu primo mais novo. À tarde, a tradição manda os mais velhos andar de adega em adega a provar a aguardente. Talvez este ano me estreasse na romaria.

É estranho viver hoje numa cidade sem nada disto. Em Lisboa fala-se, pelos meandros da minha idade, em festas de Halloween. À noite, claro.

De dia, os meus pares de profissão estão em bando no topo da minha avenida, em frente ao edifício da Polícia Judiciária, para os dois minutos diários de José Sócrates a dizer que está bem disposto.

Aqui os horrores imperam sobre os doces. Era bom que a capital onde o Ministério Público anuncia a abertura de um inquérito à clínica que realizou a ecografia ao bebé com malformações graves, a mesma cidade de onde saem as palavras perigosas de André Ventura, enfiasse os horrores numa saca para não acordar a saber a merenda seca quando amanhã acordar de ressaca.