Desafiado a olhar para o "Estado da Nação" no evento anual da Fundação José Neves, Durão Barroso, o antigo presidente da Comissão Europeia e ex-primeiro-ministro de Portugal, antecipa tempos de grande incerteza num mundo em que a luta pela supremacia está a mudar os termos da globalização como a conhecemos.
Olhando, em primeiro lugar, para o conflito que todos os dias faz correr tinta nas páginas dos jornais, Durão Barroso recorre à sua experiência com Putin para retratar um homem que é "essencialmente um produto de ressentimento". Putin "é um autocrata que se quer manter no poder, mas é sincero quando exprime aquele sentimento de frustração" pelo fim da União Soviética, diz Barroso.
A par, o líder russo tem, "dificuldade intelectual e até emocional para reconhecer a independência da Ucrânia”, tendo mesmo confidenciado ao antigo presidente da Comissão Europeia que acreditava que o país é "uma criação artificial da CIA e da Comissão Europeia”.
Mesmo que o conflito — que antecipa "longo" e com "consequências profundíssimas a médio-longo prazo" — termine com um cessar-fogo, "a tensão vai continuar, não haverá uma reconciliação", diz.
Para Durão Barroso, a Rússia "tem sido um desastre do ponto de vista económico", muito por "erros de governação", pelo que Putin "está a usar as armas que tem para mostrar que a Rússia ainda conta".
Crente de que "mundo não é o mesmo desde 24 de fevereiro deste ano", dia em que a Rússia invadiu o país vizinho, Durão Barroso antecipa um cenário futuro de maior tensão internacional — e ninguém ganha com isso, nem a China.
"A China foi a grande vencedora da globalização, com a abertura dos mercados", gosta de "controlar o tempo e não gosta de surpresas", pelo que a convicção de Durão Barroso é que Xi Jinping não está satisfeito com este conflito aberto entre Rússia e Ucrânia.
"O que preocupa os chineses hoje é que não seja apenas a Rússia a ficar como estado pária, mas que haja uma separação entre o mundo ocidental e a Rússia e China", com impacto económico também.
Reconhecendo que vivemos tempos que remontam à "luta por supremacia" internacional da Guerra Fria, Durão Barroso reitera que um mundo fraturado não interessa a ninguém, sobretudo quando se impõem respostas a desafios globais, como pandemias ou as alterações climáticas.
Recusa-se a falar de uma "reversão" da globalização, ou numa "desglobalização", mas assume que "estamos noutro tipo de globalização, com mais fricção, mais custos e mais incerteza".
E a incerteza tem custos elevados para famílias e empresas, que se traduzem noutro dos temas que tem dominado a atualidade: a inflação, o aumento generalizado dos preços que impacta o custo de vida.
O aumento dos preços não começou com a invasão da Ucrânia pela Rússia — a pandemia provocou disrupções nas cadeias de abastecimento globais —, mas o conflito "acelerou as tendências que já existiam".
"Teremos de saber navegar águas muito mais turbulentas do que aquelas que navegamos no passado", reitera, salientando a necessidade de se investir em educação — tanto em formação inicial, como nas aprendizagens ao longo da vida.
E, diz, o ideal é combinar hard skills — "competências na área da digitalização são fundamentais, (...) tudo o que tem a ver com inteligência artificial, que é horizontal e está a mudar a produção de bens e serviços, é fundamental" — e soft skills — a capacidade de "aprender a analisar e a criticar o mundo".
Aos jovens deixa o apelo para que "estejam abertos à mudança e desafiem a situação atual". Às elites apela que "alarguem os seus privilégios" e a todos desafia a ultrapassar "os obstáculos culturais ao desenvolvimento económico".
O Estado da Nação, o evento anual da Fundação José Neves, debate os temas da educação, do emprego, das competências e do desenvolvimento pessoal, pode ser revisto aqui.
A lista de oradores convidados desta edição vai da cantora canadiana Alanis Morissette ao neurocientista português António Damásio, passando pelo ex-presidente da Comissão Europeia Durão Barroso ou pelo economista António Horta Osório.
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