Numa manhã enevoada, tempo cinzento, ameaça de chuva, poderia ser uma de muitas outras quintas-feiras de outono na Feira de Carcavelos, no concelho de Cascais.
Poderia e acabou por ser. Pelo menos, igual a outras de tempos mais recentes. Mas esta é a primeira quinta-feira após um anúncio de que feiras e mercados de levante de 121 concelhos poderiam fechar por causa da pandemia e estariam incluídas nas novas medidas do executivo de António Costa de combate aos números do surto.
Não fecharam. O governo recuou, as autarquias ficam com o ónus da decisão de manter estes espaços, ou não, a funcionar. E, até ver, mercados e feiras, estão abertos.
Horas antes do decreto presidencial do Estado de Emergência, fomos ouvir quem ganha a vida numa das mais conhecidas feiras semanais da região de Lisboa.
Em Carcavelos vende-se de tudo. Ténis das melhores marcas, sapatos portugueses, lençóis, camisas, camisolas, roupa interior feminina e masculina, meias, collants, slipes, boxers, lingerie, casacos, blusões, fatos, calças, roupa desportiva, bijuteria, malas, relógios, pilhas e livros. E ainda, frutas, das laranjas aos diospiros, frutos secos, noz, amêndoa, castanhas, legumes, feijão, alface, queijos, charcutaria e padaria no outro lado da feira, separado, do primeiro espaço, por uma estrada.
“Na bancada da Rita, ninguém se irrita”
“Na bancada da Rita, ninguém se irrita”. O chamariz é destinado à clientela, em número ainda reduzido, essencialmente feminina, de meia-idade e idosa, que começa a serpentear entre tendas, quando faltam poucos minutos para as 9h00.
A resposta é dada uns metros mais à frente. “Hoje está cá a cigana que vende mais, minhas lindas”. O pregão, em jeito de ensaio, sai da boca de Maria de Fátima. Ao lado do marido, Agostinho Cardoso, ajuda a montar a banca.
Vendem lençóis de cama. Chegam empacotados em caixas de cartão de um import-export de bananas.
A arte e o engenho para atrair clientela está na voz masculina. “O Toy canta. E bem. Ele é Agostinho, mas chamam-lhe Toy, o cantarolante de Carcavelos, porque chama os fregueses com música. Está sempre a cantar, é maluco”, anuncia. “Canto fado. Da Amália”, informa Agostinho, cantando, baixinho, por debaixo da máscara.
Apresentações feitas, a conversa resvala para um tema na ordem do dia. As questões de segurança sanitária e a intenção, que não passou disso mesmo, de fechar os mercados e feiras no país.
“Há uma distância natural da banca entre nós e quem está às compras. E há uma distância em relação ao outro feirante. Temos largura de espaço”, assegura Maria de Fátima. Aponta para o vizinho do lado, para exemplificar. “Temos álcool gel e máscaras para os clientes”, mostra, enquanto retira de uma mala uma caixa com exemplares.
Agostinho aproveita e atira farpas a outros negócios. “Temos o nosso dinheiro empatado. Com quebras de 90%”, sublinha. “Os centros comercias e os restaurantes podem receber pessoas e aqui não podíamos ter o nosso sustento”, questiona.
“Não há gente, nem aqui, nem em lado nenhum”
A alguns metros de distância, no alinhamento retilíneo de tendas, Sandro Clementino solta uma lamúria. “Não há gente, nem aqui, nem em lado nenhum”. Herdado o lado feirante dos pais, salta, desde os 13 anos, de feira em feira, ao contrário dos quatro filhos. “Eles estudam, eu tive que trabalhar”, compara.
Durante a semana, além de Carcavelos, este feirante de 53 anos percorre “Cascais, Adroana, Queluz, Benfica e Monte Abraão”. Vende roupa de criança. Não encontra na memória o ano de estreia nesta vida. Aponta para o sítio da sua primeira tenda, há mais de 35 anos, num terreno contíguo. “Aqui era tudo mato”, recorda o feirante que já percorreu os três locais de vida da Feira de Carcavelos.
“Pago o espaço. Ao metro quadrado”. Com os dedos, faz um desenho da ocupação. “É como fechar a loja. É o meu meio de sobrevivência. Se me tirarem, morro. Morro à fome”, exclama. “Não consigo pagar luz, água, nada”, reforça.
Entre queixas, elogia a decisão camarária de manutenção de mercados e feiras em Cascais. “O Natal é uma altura forte”, atesta. Dineia Fausto, a mulher, junta-se à conversa. “Vendemos excedentes de stocks das lojas. Em março, investimos dinheiro na roupa de inverno. Ficou tudo por vender. Agora se fechasse, seria o mesmo. Um prejuízo brutal”, antecipa. “E não se esqueça. Estamos a trabalhar a 10 por cento”, junta as mãos ao peito. “Mudaria de vida, se tivesse oportunidade “, garante.
O casal, de etnia cigana, recusa, educadamente, o pedido para uma fotografia. “A roupa é que interessa. Pode tirar à vontade. Não me leve a mal”.
“É tudo a cinco euros”
Maria Fernanda pisou, pela primeira vez, a Feira de Carcavelos, “ainda era solteira”, relembra, “Agora, tenho três filhos e netos”. Leva 38 anos de profissão. Ecoa um dos clássicos. “É tudo a cinco euros”, um grito que chama a atenção de uma cliente de nacionalidade brasileira. “Não entendi...”, retorque esta. “Ó, minha senhora, os chinelos são cinco euros. São quentinhos para o inverno. Tome lá”.
Negócio fechado. Assume, no entanto, que o dito negócio “está fraco”. A caixa registadora já sofria antes da pandemia. “As pessoas já não vêm cá muito. É tudo chinês e não há nada nacional. A qualidade é pouca e não atrai”, lamenta.
À pergunta se vende o made in Portugal, acena afirmativamente com a cabeça. E mostra o produto. “Vendo lingerie nacional, cuecas e agasalhos, no inverno”, adianta.
Carcavelos não é a única feira onde está. Pousa em Cascais, Odivelas, Terrugem, São João das Lampas e Mira Sintra, onde “compras fruta e legumes”, confidencia. “Trabalho todos os dias”, frisa. “É a 5 euros ... 5 euros”, continua.
“Atenção que isto é tudo marcas topo de gama”
Branca Nunes observa os passos de Carlos Carreiras antes da entrada do presidente da câmara municipal de Cascais no recinto. Quer agradecer-lhe pessoalmente. Pede para não ser alvo de fotografias.
Vende malas. A manutenção da feira garante-lhe parte dos rendimentos. Trabalha ainda num “lar de deficientes”. Não se considera “avarenta”. E se “fosse rica dava tudo”, garante a herdeira de “uma família que vive há 400 anos” na Abóboda. “O meu trisavô mudava os cavalos dos CTT (correios) que iam a caminho Sintra”, confidencia.
Carlos Carreiras, comprou três pares de “meias pretas, lisas”. Foi recebido com aplausos por parte de quem ali faz a sua vida. “Devias ir é para a presidência da República”, grita uma das feirantes. Perante os jornalistas, acanha-se e recolhe, sem pio, para a banca de venda.
“Atenção que isto é tudo marcas topo de gama”, escuta-se à passagem de uma banca na qual pontificam ténis e botas. “Estamos quase no Natal. A gente precisa vender alguma coisa e estamos muito agradecidos. É para a gente sobreviver”. O recado é transmitido, de viva voz, ao edil. “Agora é preciso respeitar e cumprir as regras. Se não respeitarmos, voltamos todos para trás”, responde Carlos Carreiras.
“Punha-se a possibilidade de voltar a ficar parados. Considero positiva a reconsideração por parte do primeiro-ministro de não deixar esta gente sem rendimentos, agravado com o facto de muitos deles terem comprados stocks, que se não os vendessem, não iriam pagar aos fornecedores e desencadearia um efeito em cadeia não aconselhável”, explicou.
“A resposta dos feirantes ao cumprimento das regras tem disso excecional. E os clientes responderam com uma onda de solidariedade ao continuarem a frequentar as feiras, evitando uma catástrofes para feirantes e famílias”, realça.
A Feira de Carcavelos não se restringe a roupa. Há ainda um mercado reservado a frutas e legumes. Do outro lado da estrada.
À entrada, há quem aproveite para pedir ajuda. Para o próprio e uns cães minúsculos escondidos debaixo de cobertores. Toca acordeão a troco de uma esmola.
Na entrada principal, há uma pequena fila para medir a temperatura e para desinfeção de mãos. “36,2. Perfeito com este frio”, sugere a funcionária da CM Cascais a um cliente, já de uma idade avançada. “ 34,2”, a temperatura do jornalista que assina esta reportagem.
“É preferível ganhar algo do que nada. Os impostos são iguais”
Emília Marchante é cliente habitual. “Venho ao mercado da fruta. Semanalmente. É seguro”, garante. “À parte da roupa, já não tanto”.
O “senhor João”, 66 anos, lamenta a “quebra de 65% do volume de negócios”. Os números não lhe tiram a vontade de continuar. “É preferível ganhar algo do que nada. Os impostos são iguais”, realça o feirante que iniciou este negócio “há 42 anos”.
Divide o seu tempo entre “a agricultura e três mercados, por semana”. Vende fruta e legumes. “As alfaces e o feijão-verde são meus. Planto no meu terreno, em Colares. O resto compro. Laranja do Algarve e noz, do Alentejo”, discrimina. “Pode levar, que é de boa qualidade”, mostra o saco a um cliente.
Ao lado, Carlos Afonso vende “tudo o que se vê. Feijão, frutos secos...”. Trabalha em Carcavelos e nas Mercês. E gosta “de bailaricos. Foi assim que conheci a minha sócia. É viúva, tal como eu. Olhe, como já não há bailaricos, vamos andar no paredão”, sorri.
Um dos poucos clientes jovens do mercado pergunta se não vende nada mais barato. “Não, menino. É o preço que está marcado”, responde. “Vou oferecer um saco a uma cliente habitual. Tem 84 anos, como eu”. Seleciona, criteriosamente, o produto. Recebe o dinheiro. Antes de terminar a conversa alerta. “Senhora, olhe o saco”, avisa, a rir. “É da idade”, encolhe os ombros. “Até para a semana”, despede-se.
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