O secretário-geral da NATO, Mark Rutte, já veio dizer que está "ansioso" por trabalhar com Donald Trump, que "estimulou a Europa" a gastar mais em defesa. Também a presidente da Comissão Europeia se mostrou disponível para trabalhar com a nova administração americana. Mas o que Trump quer não é diplomacia, é que a União Europeia pague a sua parte da conta.

"O presidente dos Estados Unidos tem o poder infinito de fazer a vida negra à NATO. Deixámos de ter um aliado na Casa Branca", disse o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros João Gomes Cravinho logo que Donald Trump ganhou as presidenciais.

O entendimento geral de políticos e peritos em relações externas é que a Organização do Tratado do Atlântico Norte, tal como a conhecemos atualmente, está ameaçada. Trump acredita que os Estados Unidos perdem poder negocial sempre que entram em acordos multilaterais, por isso, prefere as alianças bilaterais.

"Ou assume a despesa na NATO, ou há uma crise monumental na UE", acredita Nuno Garoupa, professor de Direito na George Mason University, na Virgínia.

O problema da defesa e segurança, no entanto, já vem de muito antes de Trump. A maioria dos países membros da NATO, incluindo Portugal, não cumpre o objetivo de 2% do orçamento para despesa militar, como ficou acordado na Cimeira de Gales, em 2014 (apenas 11 Estados-membros atingem a meta). A questão reacendeu-se com a invasão da Ucrânia pela Rússia e, mais de dez anos depois, Trump volta a colocar o dedo na ferida.

A NATO, a quem o presidente francês Emmanuel Macron chegou a decretar "morte cerebral", em 2019, parece agora mais necessária do que nunca. Sten Rynnin, professor de Relações Internacionais na Universidade do Sul da Dinamarca, estuda a instituição há 25 anos: "A NATO está desafiada, fundamentalmente, por dois desenvolvimentos políticos: a Rússia está agressiva e a China está a crescer. A China está a afastar os Estados Unidos da Europa e isto vai continuar", disse numa entrevista ao SAPO24.

Para Sten Rynnin, Trump "tem fraco conhecimento sobre política internacional, tem fraco conhecimento sobre a Europa e tem fraco conhecimento sobre o que custa aos Estados Unidos construir parcerias e alianças duradouras". E já na primeira presidência causou problemas à NATO.

Se isto é verdade, também é certo que outros presidentes americanos têm vindo a avisar a Europa: a União Europeia deve assumir uma responsabilidade muito maior sobre o seu destino. "Isto é realmente difícil para os europeus, porque a guerra na Ucrânia expôs profundas divergências de opinião dentro da Europa", constata o professor dinamarquês.

No que respeita a construir músculo, o Tratado é claro e no seu artigo 3.º diz que todos os aliados devem providenciar a sua própria defesa. "Os europeus têm tendência para esquecer esta parte da auto-ajuda e tendem a contar com os americanos. E os americanos têm vindo a dizer continuamente: malta, têm de ler o Tratado".

A Europa está a fazer muito, pouco ou nada?

Para os especialistas, a forma mais eficaz de reunir os exércitos europeus continua a ser a NATO, onde existe uma estrutura de comando clara e comum. Ainda que alguns sonhem com um exército europeu, a União Europeia tem vindo a acentuar os meios para uma melhor cooperação na indústria da defesa, na inovação, na tecnologia e também na mobilidade militar.

Apesar disso, se os Estados Unidos deixassem a NATO, os europeus teriam de assumir o controlo da aliança, que tem como objetivo principal evitar a guerra. Como? Estando preparada para o pior. No fundo, é a sua capacidade de defesa que mantém a Europa em paz e que impede que estranhos arrisquem ou sejam tentados a avançar.

"Mas aqui voltamos a Trump, voltamos à saída do Reino Unido da União Europeia, que custou a deterioração das relações com a França, e voltamos ao facto de a Alemanha estar a ter muitas dificuldades em assumir um papel de liderança na defesa na Europa. Há muitas razões pelas quais a aliança está a dar a Putin oportunidades para causar mais danos", afirma Sten Rynnin, que defende o diálogo entre os Estados Unidos e a União Europeia, sobre a indústria da defesa.

"Já vimos a administração Biden tentar aprofundar esse diálogo, mas também vimos a administração Biden reagir à sua base interna sobre a necessidade de criar emprego industrial nos EUA, de combater a China e, com a Lei da Redução da Inflação, como foi chamada, ele atraiu massivamente investimentos para os Estados Unidos em detrimento da Europa". É a nova era da competição industrial e, para já, a Europa está a perdê-la.

A vice-governadora do Banco de Portugal, Clara Raposo, concorda: "O sucesso económico da União Europeia depende de nos entendermos e sabermos ganhar escala dentro das nossas (muitas) fronteiras, de termos uma estratégia para nos podermos assumir como uma potência económica com liderança. Isso implica aprofundar a União e gerar capacidade e vontade de investir (capital público e privado), com o grau de risco e inovação adequados, dentro do nosso espaço".

E lembra que "a poupança dos europeus (que são mais ricos quando comparados com o resto do mundo) continuar a sair para investir nos Estados Unidos e aí fazer crescer os negócios, em vez de os cultivar e desenvolver na Europa, pode não ser uma estratégia de futuro. Temos guerras aqui ao lado, alterações climáticas a darem sinais evidentes de impacto desastroso e dependência de gigantes tecnológicos americanos. Talvez a necessidade aguce o engenho e na Europa tomemos as rédeas do nosso futuro comum".

Outros economistas têm a mesma opinião. "O futuro da União Europeia dependerá dela própria e não dos Estados Unidos. A Europa tem de aumentar os seus níveis de produtividade e competitividade", diz o ex-ministro da Finanças Eduardo Catroga. "Trump aparece à partida como mais protecionista, mas talvez seja uma posição negocial, já que é um homem de negócios - disposto a defender os seus objetivos, mas também a fazer cedências".

De resto, acredita, não sendo uma união política, a UE nunca terá a força dos EUA, mas deverá procurar o reforço da unidade transatlântica e de entender que precisa de políticas mais viradas para os mercados para reforçar a economia das suas empresas, a inovação, e a defesa e segurança no quadro da NATO".

Economia e Direito entendem-se nesta matéria. "O problema do declínio económico da União Europeia é independente dos Estados Unidos, é um declínio tecnológico, perda de competitividade muito acentuada. A UE necessita urgentemente de perceber o mundo em que vive, mas tem uma enorme dificuldade em lidar com a realidade", considera o professor catedrático António Goucha Soares.

Assumir as rédeas do destino

Diplomata, Ana Gomes recorda que esteve 15 anos na sub-comissão de Segurança e Defesa do Parlamento Europeu: "Toda a vida falámos da imperatividade da autonomia estratégica da Europa, para não andarmos a reboque dos Estados Unidos. Se coincidirmos nos interesses, muito bem, trabalhamos em sinergia, se não, trabalhamos nos nossos interesses. Nada foi feito".

Os responsáveis, acusa, são "os establishments que foram poder, de direita e de esquerda, e os próprios militares, que alinharam num discurso americano que às segundas, quartas e sextas dizia que a Europa devia pagar a sua parte na NATO, às terças, quintas e sábados dizia vamos à prateleira americana buscar os equipamentos de que precisamos".

"Esses líderes foram muito responsáveis por nos terem posto nesta situação de total dependência no quadro da NATO. É evidente que, a partir de certa altura, já no fim da administração Bush filho, se começaram a dizer as coisas que Trump diz e Obama também disse, a Europa tem, obviamente, de pagar a sua própria segurança".

Par Ana Gomes, aliás, esta é a consequência positiva da eleição de Trump: "Os europeus, finalmente, têm de ser confrontados com a absoluta indispensabilidade de investirem em segurança e defesa e fazerem o que é preciso". Ou seja, "ter um orçamento para a defesa muito superior ao que existe, ter equipamentos produzidos na Europa. Não há autonomia estratégica da Europa sem uma base industrial e tecnológica autónoma. Mais esses equipamentos são hoje, necessariamente, de utilização dupla, para efeitos civis e militares. Temos de assumir isso, tem de ser um projeto europeu, de cooperação europeia.

Política e vereadora municipal eleita pelo CDS, Margarida Bentes Penedo vai mais longe: "Não podemos estar à espera que um presidente republicano seja um Bertrand Russell [pacifista], porque isso também nunca se exige aos democratas". E lembra o post de Alexandra Leitão no dia em que Trump ganhou as eleições, a dizer que venceu o ódio, a violência. "A democracia é uma coisa ótima, mas é quando é a deles. Eles não são democratas, aí é que está o ponto, não acreditam na democracia".

"Com uma coisa a Europa vai ter definitivamente de lidar, porque quer impor um modelo que é seu, mas quer que outros paguem", diz. Andaram convencidos que a Europa tinha sido uma construção europeia e tinha determinado a paz durante 70 anos, mas a UE é uma construção americana, a paz do pós-guerra foi assegurada pela NATO e pelos Estados Unidos, que agora estão a orientar-se para outro lado do Pacífico - e isso não é diferente em Trump ou na administração Biden".

"A Europa tem de se pôr esperta, essa é a primeira coisa. Tem de se pôr no seu lugar e perceber as coisas como elas são: agora já não vai no carro do paizinho para a escola, tem de ir pelo seu próprio pé. E tem de começar a cair na realidade", remata Margarida Bentes Penedo.