“Toda a vida pensei muito sobre um sentimento que o cirurgião guarda para si e sobre o qual raramente fala: o medo”, escreve João Lobo Antunes em “Um Neurocirurgião em Construção”, obra póstuma que será lançada na segunda-feira na Ordem dos Médicos, em Lisboa, mais de dois anos depois da sua morte.
Antes das intervenções cirúrgicas mais complicadas, o médico confessa que acordava mais cedo e permanecia “num estado de constrição, como que apertado por um colete”, até começar a desinfetar-se e a vestir os paramentos cirúrgicos.
A partir daí, o medo transformava-se “numa forma diferente de energia” que o impulsionava, e o neurocirurgião não recorda qualquer situação em que tenha perdido o controlo.
Lobo Antunes via-se como “fastidiosamente meticuloso” na cirurgia, um rigor que cumpriu sempre também enquanto estudante de Medicina, sendo aliás até hoje dos estudantes com notas mais elevadas da Faculdade de Lisboa.
Passou seis verões, entre 1962 e 1967, a estudar seguindo um “horário monacal”: das 09:00 às 13:00, das 15:00 às 20:00 e das 21:00 às 23:00. Ainda assim, foi um tempo “de felicidade resignada”.
Apesar do rigor, do método, do trabalho e do estudo permanente ao longo da vida, o neurocirurgião entendia que “o ato médico implicava um contrato pastoral”.
“Por isso, quando ouvia um chamamento, que parecia ser segredado pela minha consciência, respondia sempre”, descreve na obra.
Exemplo disso foi o caso de um colega neurologista que lhe telefonou sobre uma menina que tinha internada num hospital privado em Lisboa e que gostaria que a observasse. Lobo Antunes encontrava-se num almoço social e perguntou se era urgente. O colega disse-lhe que não parecia ser o caso e então dispôs-se a ir no dia seguinte.
“Poucos minutos depois, uma voz interior segredou-me: ‘Vai já’. Larguei o almoço, parti logo para Lisboa e, quando entrei no quarto, a menina entrara em coma. Foi necessária uma intervenção urgente, que lhe salvou a vida”, descreveu.
Na casa dos seis irmãos Lobo Antunes sempre se respirou Medicina e o número de médicos na família fazia suspeitar numa “intrigante razão genética”.
Mas no dia da matrícula na Faculdade, João Lobo Antunes saiu determinado a inscrever-se em Engenharia no Instituto Superior Técnico — sonhava ser bioquímico. Uma “epifania” levou-o a mudar o percurso na cidade e, numa decisão de momento, foi inscrever-se em Medicina, ainda num tempo sem ‘numerus clausus’.
Descreve-se como um homem “que a Medicina fez médico”, embora considerasse que a sua “medula intelectual” era de professor.
Além do início do seu percurso profissional e do tempo de trabalho nos Estados Unidos, as suas últimas memórias centram-se muito na infância que passou em Benfica (Lisboa), na adolescência no Liceu Camões e na vivência familiar.
A leitura e os livros ocuparam um espaço determinante na vida dos seis irmãos, um deles o escritor António Lobo Antunes.
“Fomos criados mais com livros do que com brinquedos”, escreveu, frisando que “a leitura foi muito importante para aqueles filhos”, tal como era para o pai, também médico.
Aprendeu a ler sem saber como, ao contrário do que aconteceu com os irmãos, todos ensinados pela mãe.
Nas várias facetas que compuseram a sua vida, Lobo Antunes dedicou ainda um capítulo ao período em que foi apresentador de televisão, na RTP, quando ainda era um jovem, com 15 anos, depois de, a convite, ter ido fazer testes para se tornar apresentador de um programa.
“Foi uma experiência muito importante para mim e para a minha formação como adulto”, escreve, justificando que a televisão lhe apurou o autocontrolo, a capacidade de improvisar e o sentido de trabalho.
Do livro que contém as suas últimas memórias, distingue-se um médico e um homem dedicado ao trabalho, ao estudo, à aprendizagem e à educação, que colocava em tudo um intuito de perfeição:
“No cerne da minha educação esteve sempre a necessidade de aprender tudo, desde o modo de colocar o doente na posição correta até ao uso adequado dos instrumentos e do cuidado como devem ser manuseados — todos eram para mim como um Stradivarius”.
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