Angola, que aboliu em outubro os vistos para 98 países, incluindo Portugal, quer entrar nas rotas do turismo africano, mas faltam por enquanto hotéis e restaurantes, estradas, transportes e operadores turísticos, além de água e energia em muitos pontos do país.
Nada que impeça, no entanto, os mais aventureiros, com meios e vontade de desbravar caminho, de se lançarem à descoberta, como aconteceu com uma caravana luso-angolana que percorreu, desde Luanda, milhares de quilómetros, até chegar à única reserva de conservação privada de Angola, no Cuatir, junto à fronteira com a Namíbia.
A iniciativa partiu do Clube Overland de Angola (COA) que decidiu organizar a primeira viagem por terra entre a capital angolana e o Cuatir, mobilizando quase 40 pessoas que, entre estradas, picadas e até atravessamento de um rio em jangada, cruzaram as províncias de Luanda, Cuanza-Sul, Huambo, Bié e Cuando Cubango nas suas poderosas viaturas todo-o-terreno.
Hidrisi Miguel “Aussländer”, um dos organizadores da expedição ao Cuatir e membro do COA, conta à Lusa que a ideia de ir até àquela região remota, a 1.500 quilómetros de Luanda se deveu à vontade de explorar mais um destino novo, nesta modalidade de turismo de aventura, feita em regime de autonomia, procurando chegar a locais remotos ou pouco conhecidos.
Fundado em janeiro de 2022, o COA conta atualmente com mais de 80 membros ativos, “uma família”, como descreve Hidrisi Miguel, explicando que o clube é aberto a qualquer pessoa “que tenha espírito” de “overlander”, mesmo que não tenha meio de transporte.
“Tem de ter aquele espírito de conseguir chegar lá, de ser solidário, emprestar material, ajudar a organizar as coisas, todos os membros são bem-vindos”, sublinha.
O “overland”, que exige alguma preparação prévia, já que é necessário assegurar toda a logística para permanecer autónomo por um determinado período, é uma modalidade adequada a um país como Angola onde muitas das potenciais atrações turísticas, que incluem praias desertas e paisagens intocadas, não dispõem de infraestruturas para receber os visitantes.
“É muito dura a viagem, são mil e tal quilómetros "
Carla Cardoso veio de Portugal com o marido para se juntar à caravana e atesta a boa convivência que encontrou nesta sua primeira visita a Angola, onde se juntou ao COA para participar “numa aventura única”, destacando a “rede muito própria” que encontrou em Angola: “é uma família, ninguém nos conhecia e fomos super bem recebidos, super bem tratados, todos nos integraram no grupo”.
Depois da experiência angolana, Carla Cardoso, residente em Estremoz, admite até vir agora a juntar-se a futuros “safaris” por terras alentejanas, certamente menos selvagens.
O mais difícil, confessa, foi o cansaço: “é muito dura a viagem, são mil e tal quilómetros (..) para quem não está habituado é duro, nós somos meninos de loja, estamos sentadinhos no nosso conforto, é um desafio enorme”, que, no entanto, “superou todas e quaisquer expetativas”, diz, mostrando-se preparada para mais viagens.
Divididos entre “Princesas”, “Espadas” e “Solitários”, os “overlanders” saíram de Luanda no início de novembro, seguindo em caravanas que facilitam a entreajuda quando surgem problemas.
A regra é não deixar ninguém para trás, à medida que as areias quentes e as estradas esburacadas vão castigando os veículos e, nalguns casos, exigindo reparações.
Entretendo-se entre o asfalto e a picada, esquivando-se a buracos, animais e outros obstáculos que vão surgindo no caminho, os “overlanders” desfilam quilómetros e vão trocando, via rádio, indicações sobre o estado da via, avarias e picardias, ajudando a afastar o sono que vai invadindo os condutores nas longas horas de estrada.
O grupo é heterogéneo, com pessoas de diferentes idades, profissões e experiências, que têm em comum o gosto pelos motores e pela natureza, pela viagem e pelo convívio, mas também pela solidariedade e pela vertente social, como realça Paulo Diogo, outro dos membros do COA.
Recorda, a propósito, que durante a pandemia de covid-19 descobriu que o mau estado das estradas estava a dificultar o trabalho dos missionários portugueses na missão do Gungo (Cuanza Sul).
“E decidi: é aí que eu vou”, salienta o proprietário de uma oficina, acrescentando que desde essa data um grupo de “overlanders” continua a visitar a missão para “partilhar um bocadinho” do que têm “e voltar com a alma lavada”.
"Vamos até onde a vontade nos der, onde o mundo nos permitir”
Com a “família overland”, Paulo Diogo, proprietário de uma oficina, partilha o entusiasmo pelo todo-o-terreno e pela aventura.
“Somos autossuficientes, pegamos na viatura e vamos até onde a vontade nos der, onde o mundo nos permitir”, assinala, dizendo que sempre gostou de “montar a barraca”, um gosto que não perdeu desde que chegou, há 20 anos, a Angola.
Nas viaturas nada falta, do gelo para o whisky à “boa comida”, passando pela imprescindível máquina no café, brinca.
“Princesas”, “Espadas” e “Solitários” juntaram-se em Menongue, capital do Cuando Cubango, seguindo a partir daí numa caravana única, que exigiu mais algumas horas nas areias que levam até ao Cuatir.
A chegada é saudada com entusiasmo e, sobretudo, alívio. É hora de descanso para máquinas e pessoas. Montam-se as tendas e preparam-se os petiscos, enquanto os mecânicos espreitam os motores e outros se divertem com a petanca.
Existem “overlanders” em todo o mundo e alguns viajam durante anos. Muitos passam por África, incluindo Angola, onde se encontram com a rede local que os apoia em tudo o que é necessário, explica Hidrisi Miguel, engenheiro civil.
Para Paulo Diogo, pertencer à “família overland” e partilhar um objetivo comum: “ir até querer” e “chegar onde os outros não chegam”.
Comentários