A curta-metragem retrata um casal jovem, ela e ele. Sem nomes, só a história. A preto e branco, dura apenas dois minutos. Ele sugere que assistam um filme. A sugestão recai sobre “Irreversível”, filme de Gaspar Noé onde Alex (Monica Belluci) é violada por Marcus (Vicent Cassel), numa cena controversa e bastante perturbadora. Ela diz-lhe que não, “o que queres, vomitar?”, pergunta. “Vomitar, com a Monica Belluci? És difícil de satisfazer”, diz ele. E brinca: "tapo-te os olhos [nessa cena]." E beija-a, elogia-a, diz-lhe que é bonita. Continua a beijá-la, deita-se em cima dela. Ela diz que não não quer. Não quer ter relações sexuais. Diz que não, mostra-se desconfortável. Ele insiste. "O que se passa? Já não me queres?" E insiste, insiste. “Estou cansada e não me apetece”. Ela é bastante afirmativa, o corpo responde no mesmo sentido. Ele insiste e tapa-os com um lençol. Têm relações sexuais. Consentidas? A expressão no rosto deles responde à questão, a cara dele, satisfeita, diz que sim; a cara dela, apática, diz que não.
O vídeo foi publicado no canal de Vimeo da realizadora há mais de um mês e teve mais de 800 mil visualizações. Na versão com legendas em espanhol, partilhada há cerca de três semanas, conta também com mais de 600 mil visitas. Em ambos está acompanhado da legenda: “Se não te ofende, é porque és um deles”.
Chloé Fontaine, a realizadora que também é a protagonista da curta, contou ao El País que o que a levou a escrever a história foi uma discussão com uma amiga. “Contou-me que uma noite, depois de chegar a casa com o companheiro, ele queria fazer amor e ela não. Ele insistiu. Ela continuou a dizer-lhe que não lhe apetecia. E ele insistia”, diz a argumentista de 25 anos à publicação espanhola. Conta ainda que a amiga lhe confessou que “não queria, mas era a única solução [ter relações] para que ele a deixasse sossegada”. Pouco tempo depois, numa conversa com outra amiga, soube de um caso semelhante. Desta vez, Fonteine foi mais longe e respondeu que isso era “violação”. “Como é que é violação se é o meu namorado”, ouviu de volta.
As duas histórias levaram-na a procurar mais testemunhos e “infelizmente” não teve dificuldade em encontrá-los. “É uma situação que, infelizmente, acontece mais vezes do que parece”, contou ao jornal espanhol por e-mail.
“Je suis ordinaire” é o título em francês e em espanhol foi traduzido para “Soy ordinaria”. Em português, dada a justificação da escolha do nome pela realizadora, a ideia é de que “és mais uma”, ou seja, “sou comum”.
A curta-metragem já deu que falar, sobretudo em França e Espanha.
Sónia Reis, gestora da linha de apoio da Associação de Apoio à Vítima (APAV), contactada pelo SAPO24, explica que “em muitas situações de violência doméstica esta é uma das questões abordadas”. Apesar de não existirem números concretos sobre o tema em Portugal, o que acontece muitas vezes é que se apercebem pelos relatos das vítimas que estas não o entendem como um crime. “Ainda há um mito de que há deveres conjugais que devem ser cumpridos”, conta. “Não sendo consentido trata-se efetivamente de um crime”.
"A partir do momento em que não há consentimento, como a interpretação que faço desta curta, ou em situações de relações sexuais forçadas debaixo de força física ou emocional, como neste caso, pode constituir crime", explica.
A linha de apoio à vítima da APAV, através do 116 006, é gratuita e funciona das 09h00 às 19h00. Do outro lado "estará um técnico que poderá ouvir, informar, dar estratégias para que a pessoa se proteja e capaz de fazer o encaminhamento para a nossa rede de apoio", informa Sónia.
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