Durante o discurso, depois de ter recebido o prémio Camões 2021, numa cerimónia em Lisboa, Paulina Chiziane partilhou que há na língua portuguesa “algumas especificidades” que fazem com que esta “por vezes” a “assuste”.
A escritora deu exemplos de definições que encontra em dicionários de língua portuguesa para algumas palavras, como catinga, “que vem como cheiro nauseabundo característico da raça negra”.
“Fico muito triste quando olho para aquilo. Será que tivemos tempo de olhar para estas questões?”, disse.
Paulina Chiziane nomeou também matriarcado, que aparece definido como “costume tribal africano”, em contraposição com patriarcado, “tradição heroica dos patriarcas”.
“Em África temos matriarcado, sobretudo na região norte de Moçambique. É um costume tribal, deita fora, é coisa de africano. Mas patriarcado já tem valor. Que machismo é esse?”, questionou.
A escritora partilhou ainda “uma última palavra, mas há muitas”: palhota, “habitação rústica característica dos negros”.
“Está provado que palhota é habitação ecológica. A língua portuguesa para ser nossa precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização”, defendeu.
Paulina Chiziane, vinda “de lugar nenhum” e que "aprendeu a escrever na areia do chão” e usou “o primeiro par de sapatos com 10 anos”, mostrou-se hoje “muito feliz” por receber o Prémio Camões, “um prémio tão importante, exatamente no Dia Mundial da Língua Portuguesa”.
“Para quem vem do chão, estar aqui diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que me comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prémio”, disse.
Dos vários agradecimentos que fez, o maior foi para os seus leitores, “em Moçambique e em todos os países que falam português”.
A “primeira negra a receber tão alto prémio” partilhou que “um dos primeiros aspetos para um bom escritor tem de ser a originalidade”. “A dignidade de um povo é feita pela sua originalidade”, disse.
Salientando o orgulho que tem por ser africana, Paulina Chiziane destacou a importância do sentido de afirmação.
“Se queres ser alguém na vida, no mundo, deves deixar marcas do teu pé gravadas de forma indelével, para que todos digam: por aqui passou alguém”, afirmou.
A escritora considera a afirmação uma questão “muito séria”, e recordou que quando começou a escrever diziam-lhe que os seus escritos “não eram bem bem bem em língua portuguesa” e que tinha que “escrever bem bem bem em língua portuguesa”.
“Mas achei que devia mostrar quem sou, a minha identidade como mulher, como negra, como africana, através da língua portuguesa”, disse.
Paulina Chiziane lembrou que “cada povo africano recebeu uma língua, que tem que preservar, guardar”. Essa língua é “herança divina”, mas depois, por “circunstâncias da história”, receberam outras línguas, “uma herança humana”. No caso do povo moçambicano, a língua portuguesa.
“O império colonial dizia ‘eu tenho, mas tu não tens’, e não é justo. Tenho uma língua materna e uma que me foi dada. Por que tenho de aprender a que me é dada? E por que não aprendem a minha?”, questionou a escritora, convidando todos a aprenderem línguas africanas.
Na altura da atribuição do prémio, em 2021, o júri justificou a escolha, por unanimidade, com a “vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da obra” de Paulina Chiziane.
O júri referiu também a importância que a escritora dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana, e sublinhou o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes.
Hoje, o presidente do júri, Carlos Mendes de Sousa, lembrou que “a voz, a claridade, a poesia, o puro encantamento das palavras ditas por Paulina Chiziane mostram uma estreita ligação entre o oral e o escrito”.
“Paulina Chiziane escreve como fala. Voz e escrita brotam do mesmo chão, onde vislumbramos a essencial pertença à cultura Bantu, à voz de África, que na sua voz ecoa”, disse.
No final do discurso, Paulina Chiziane salientou isso mesmo: “Sou da tradição oral. Gosto de contar histórias. Por vezes escrevo”.
Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, Moçambique, em 1955. Estudou Linguística em Maputo. Atualmente, vive e trabalha na Zambézia.
Ficcionista, publicou vários contos na imprensa. Publicou o seu primeiro romance, “Balada de Amor ao Vento” (1990), depois da independência do país, que é também o primeiro romance publicado de uma mulher moçambicana.
“Ventos do Apocalipse”, concluído em 1991, saiu em Maputo, em 1993, como edição da autora e foi publicado em Portugal, pela Caminho, em 1999, antecedendo “Balada de Amor ao Vento”, em Portugal, pela mesma editora, em 2003.
A Caminho possui aliás os títulos da autora publicados em Portugal: “Sétimo Juramento” (2000), “Niketche: Uma História de Poligamia” (2002), “O Alegre Canto da Perdiz” (2008).
Da sua obra fazem igualmente parte “As Andorinhas” (2009), “Na mão de Deus” e “Por Quem Vibram os Tambores do Além” (2013), “Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento” (2015), “O Canto dos Escravos” (2017), “O Curandeiro e o Novo Testamento” (2018).
Instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, e entregue pela primeira vez no ano seguinte, o Prémio Camões é o galardão de maior prestígio da língua portuguesa.
De caráter anual, presta homenagem a um escritor que, pela sua obra, contribua para o enriquecimento e projeção do património literário e cultural de língua portuguesa.
O Ministério da Cultura, através da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), organiza pela parte portuguesa a atribuição deste Prémio, que tem o valor pecuniário de cem mil euros, assumido em partes iguais pelos Governos de Portugal e do Brasil.
Nos termos do regulamento, Portugal e o Brasil organizam de forma alternada as reuniões e as cerimónias de entrega deste galardão.
(Artigo atualizado às 19h56)
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