Em 1955, o médico português Cancella de Abreu descreveu pela primeira vez a associação da inalação do pó da cortiça a um tipo de patologia crónica dos pulmões, considerada posteriormente como sendo uma doença profissional, chamada suberose. Agora, 65 anos depois, volta a ser um português a descrever a associação do pó da cortiça com um outro tipo de patologia, desta vez relacionada com um tipo de cancro da cabeça e pescoço.

Diogo Alpuim Costa, especialista em Oncologia Médica pelo Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPOL-FG) e atualmente a exercer funções na CUF Oncologia (CUF Descobertas, Cascais e Santarém) liderou o estudo pioneiro que permitiu relacionar a exposição prolongada ao pó da cortiça e um tipo de cancro das fossas e seios paranasais. O estudo foi publicado no passado dia 18 de setembro numa das revistas científicas mais importantes da área, "Frontiers in Oncology" com o título do trabalho "A Potential Link Between Prolonged Cork Exposure and Intestinal-Type Sinonasal Adenocarcinoma – Special Findings of a Retrospective Cohort Analysis".

Este estudo retrospetivo do IPOL-FG em articulação com o Registo Oncológico Regional – Sul (ROR-Sul) incluiu todos os doentes com o diagnóstico de cancro sinonasal do subtipo intestinal que foram tratados entre 1981 e 2018. Dos 379 doentes identificados pelo ROR-Sul, foram incluídos na análise final apenas 39 com o subtipo intestinal, o verdadeiro alvo deste estudo que procurava encontrar associações epidemiológicas deste tipo de cancro com agentes ocupacionais.

Mais de metade dos doentes (69%) apresentava uma exposição prolongada para agentes considerados carcinogénicos (aumentam o risco de cancro), nomeadamente pó da madeira/cortiça, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, formaldeído, carvão, isomastique e hidralite. No seio destes trabalhadores com exposição profissional a estes agentes, quase 70% tinham trabalhado no processamento da cortiça por períodos prolongados, com uma média de duração de exposição de 30 anos. No subgrupo de doentes com este tipo de cancro associado à cortiça, apenas 1/3 estava vivo volvidos de cinco anos do diagnóstico, reflexo da agressividade biológica deste tipo de neoplasia.

Ao longo do artigo recentemente publicado, os autores especulam as possíveis causas para esta associação improvável entre o pó da cortiça e o cancro das fossas nasais e seios paranasais: 1) emissão dos compostos orgânicos voláteis, particularmente o formaldeído e resinas, aquando do processamento fabril da cortiça; 2) inflamação crónica da mucosa das fossas nasais e seios paranasais por micropartículas do pó da cortiça; 3) resposta imunitária errática do hospedeiro aos agentes biológicos que estão presentes na cortiça, incluindo os múltiplos fungos presentes na sua estrutura orgânica; 4) alteração da flora local (microbiota) das fossas nasais e seios paranasais promovida pelo pó da cortiça; 5) suscetibilidade genética (polimorfismos) de determinados indivíduos em relação a outros.

A importância deste estudo retrospetivo de uma possível associação de um agente externo (cortiça) e um tipo de cancro ganha relevância por se tratar de uma possível doença profissional com morbilidade e mortalidade consideráveis e por constituir um problema de saúde facilmente evitável, se durante o processamento da cortiça e agentes derivados houver o cuidado em usar-se os equipamentos de proteção individual, nomeadamente uma máscara.

Portugal é o maior exportador mundial de cortiça com cerca de metade da produção mundial. O setor tinha mais de oito mil trabalhadores em 2018, segundo dados publicados num estudo da Associação Portuguesa de Cortiça (APCOR) deste ano que indica ainda um registo de 1.750 milhões de euros de volume de negócios no setor da cortiça, um crescimento de 35% face a 2014, e um resultado líquido de 78 milhões de euros, um aumento de 79% face ao verificado em 2014.

O autor do estudo deixa uma nota de agradecimento ao Dr. João Freire, diretor do IPO de Lisboa e um dos coautores deste trabalho, que faleceu recentemente.

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