2024: Ministério da Cultura regressa ao território passado um ano sobre reforma do património

A reforma do setor do património cultural concretizada no início do ano pelo Governo socialista foi contestada pelo novo executivo, convicto de que a medida está a paralisar as instituições patrimoniais, como museus e monumentos do país.

A reorganização do património cultural foi uma das medidas mais significativas implementadas pelo ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, levando à extinção da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e à criação de duas novas entidades a funcionar há quase um ano.

Para substituir a DGPC foram criadas a empresa pública Museus e Monumentos de Portugal (MMP) e o instituto público Património Cultural, com repartição de competências e gestão de equipamentos culturais, ao mesmo tempo que foram extintas as Direções Regionais de Cultura (DRC), com a redistribuição das respetivas competências para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do país.

Quando a reforma foi anunciada por Pedro Adão e Silva, em 2023, várias vozes destacadas do setor do património, entre elas o Conselho Internacional de Museus (ICOM Portugal) e a Associação Portuguesa de Museologia (APOM), manifestaram expectativas positivas para uma mudança nas “limitações da DGPC” em prestar um bom serviço público devido a dificuldades de recursos humanos e financeiros.

No entanto, a nível local, responsáveis de algumas autarquias e das CCDR mostraram-se céticos desde o início.

Depois de tomar posse, em abril, a ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, criticou publicamente, no Dia Internacional dos Museus, a forma como tinha sido feita a reestruturação do património cultural, considerando-a "desastrosa", vindo a repetir publicamente a desaprovação por diversas vezes, nomeadamente numa audição parlamentar, em julho.

Na Assembleia da República, a ministra defendeu que a reforma encetada pelo seu antecessor, Pedro Adão e Silva, deveria ser revertida no que dizia respeito ao "desaparecimento do Ministério da Cultura do território nacional", referindo-se, em particular, às consequências da extinção das DRC e a redistribuição de competências para as CCDR.

Dalila Rodrigues, ex-diretora do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém, afirmou, na altura, que um dos impactos negativos dessa reestruturação era a falta de proteção da "realidade patrimonial" do país, corporizada nos monumentos, catedrais, castelos, palácios, sítios arqueológicos do território.

Muito crítica desta reforma da DGPC, uma das primeiras decisões no cargo foi a exoneração do responsável da empresa Museus e Monumentos de Portugal, o gestor cultural Pedro Sobrado, substituído pelo historiador de arte Alexandre Pais, e do diretor do Património Cultural, arquiteto José Carlos Santos, substituído pelo investigador João Soalheiro.

Na sequência das críticas de Dalila Rodrigues, o grupo parlamentar do PS enviou uma pergunta o Governo manifestando “perplexidade e preocupação” perante as declarações da nova tutela, defendendo que a medida foi “a principal reforma do património feita nos últimos anos”, posta em prática pelo anterior governo socialista.

Os deputados socialistas sustentaram que aquela reestruturação permitiu construir uma moldura mais ágil na gestão dos museus e monumentos, e de maior capacidade de gerar recursos através do investimento e aproveitamento de fundos europeus e internacionais.

Ainda julho, a ministra referiu a constituição de Unidades Patrimoniais de Território (UPT) como uma das respostas à que considera uma "reforma desastrosa" do setor do património.

Em novembro, uma Nota Explicativa do programa orçamental da Cultura indicava a concretização da UPT para 2025, com uma dotação até dois milhões de euros. “Porque não unidades patrimoniais territoriais instaladas nas estruturas que são tuteladas pelo Ministério da Cultura e que agora ficaram ao abandono e em total desproteção?”, sugeriu Dalila Rodrigues.

Em dezembro foram conhecidas as oito localidades para acolher as UPT: São Martinho de Tibães (distrito de Braga), Santa Clara-a-Velha (Coimbra), Unidade Arqueológica do Freixo (Porto), São João de Tarouca (Viseu), São Bento de Cástris (Évora), Ruínas Romanas de Milreu (Faro), Miranda do Douro (Bragança) e Marvão (Portalegre).

No âmbito da "preservação e valorização do património" cultural, o programa orçamental da cultura vai dar prioridade à execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com uma dotação de 150,8 milhões de euros, neste segmento, segundo a mesma nota.

Em 2025, a área da Cultura conta com 207,2 milhões de euros do PRR, destinados não só ao património, mas também às redes culturais e à transição digital.

O programa orçamental da Cultura conta com uma despesa total consolidada de 597,3 milhões de euros, inscrita na proposta de OE2025, representando um aumento de 6,6% em relação à receita consolidada de 2024 (560,4 milhões, para uma despesa prevista de 518,7 milhões), e mais 25,6% sobre a execução orçamental estimada para o final deste ano (475,7 ME).

2025: Lançadas as bases para ser 'o ano #metoo' nas artes em Portugal

A denúncia de violação feita publicamente por uma artista contra um pianista impulsionou, em novembro, outras pessoas a partilharem histórias de assédio e abusos no meio artístico português, mas é incerto o desfecho destes casos.

O seu desenvolvimento, porém, pode fazer de 2025 o ano do #metoo nas artes em Portugal.

A DJ Liliana Cunha, conhecida no meio artístico como Tágide, que fez no início de novembro uma denúncia nas redes sociais identificando o pianista de jazz João Pedro Coelho como o alegado agressor, acredita que sim.

“Vai claramente, sim [ser o ano do #metoo]. Acho que construímos as bases para isso. Ainda há muitos casos a serem trabalhados, estamos a ultimar a recolha de testemunhos fiáveis e a investigação concreta. E também estamos a incentivar as vítimas a fazerem queixa, o que está a dar resultados”, referiu, em declarações à Lusa.

No espaço de mais ou menos um mês, Liliana Cunha contabilizou cerca de 170 denúncias de assédio, abuso, violação e agressão, relativas a mais de 40 pessoas do meio artístico, a larga maioria homens. De todas as denúncias, dez passaram a queixas apresentadas às autoridades.

A artista acredita que este número continuará a crescer. É tudo uma questão de conseguir que as vítimas “se sintam mais seguras” e fazer com que tenham “literacia suficiente sobre o que fazer com isso”, algo que para Liliana Cunha “também legitima o movimento”.

A primeira das dez queixas apresentadas foi a de Liliana Cunha.

Depois de denunciar publicamente o seu caso, a artista apresentou queixa na PSP contra o pianista João Pedro Coelho, acusando-o de violação e ‘stealthing’ (não-utilização ou retirada de preservativo sem consentimento do/a parceiro/a), numa situação alegadamente ocorrida em 2023.

Pouco depois de a denúncia ter sido tornada pública, o músico refutou as acusações e reclamou “total inocência” num breve comunicado nas redes sociais.

Este caso está agora em investigação no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa.

Na sequência da denúncia de Liliana Cunha, foi lançada em 16 de novembro uma petição ‘online’, com os signatários a pedirem uma alteração da lei portuguesa para criminalizar o ‘stealthing’ como “uma violação do consentimento sexual”, de modo a que as vítimas tenham “um processo claro para oficializar a denúncia e buscar justiça”.

Em quatro dias foram angariadas as 7.500 assinaturas necessárias para que seja discutida no Parlamento.

A nível político, o partido Pessoas Animais Natureza (PAN) entregou um projeto-lei para que o ‘stealthing’ seja considerado crime.

Embora não seja a primeira vez que vêm a público denúncias relativas a pessoas das Artes em Portugal, esta é a primeira vez em que surgem várias num mesmo momento em relação a diferentes pessoas.

Embora numa escala menor, o que está a acontecer remete para um movimento coletivo espontâneo de partilha de denúncias surgido em 2017 nas redes sociais, e de forma geral na Internet, com a designação agregadora ‘#metoo’ (#eutambém, tradução para português).

Aquele ‘hashtag’ começou a ser usado nos Estados Unidos para identificar publicações nas quais eram feitas denúncias de casos de assédio e abuso sexual, na sequência de dezenas de acusações contra o produtor norte-americano Harvey Weinstein, que envolveram atrizes como Gwyneth Paltrow, Ashley Judd e Angelina Jolie, reforçadas por investigações do jornal The New York Times e da revista The New Yorker.

O movimento estendeu-se a outros países como Reino Unido e França. Entre os alegados agressores surgiram realizadores, atores, humoristas, maestros, fotógrafos, cantores e diretores de empresas ligadas às artes e espetáculos.

Em Portugal, este ano, quando as primeiras denúncias vieram a público, a associação Plateia lamentou a inexistência de uma plataforma de recolha de queixas e de um sistema de “proteção eficaz” das vítimas, defendendo uma mudança estrutural, que ajude na prevenção e promova alterações legislativas.

Na mesma altura, outras associações contactadas pela agência Lusa manifestaram preocupação e apontaram a necessidade de reforço de medidas.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) apelou para que as denúncias fossem levadas a sério e que não desaparecessem “na espuma dos dias” e o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, Audiovisual e Músicos (Cena-STE) pediu uma Autoridade para as Condições do Trabalho “muito mais capaz e muito mais forte”.

A Associação Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento (MUTIM) e a Associação para as Artes Performativas em Portugal (Performart) também pediram canais oficiais, apropriados e eficazes para denúncias de abusos e assédio no setor.

Em 15 de novembro, o Hot Clube de Portugal (HCP), onde João Pedro Coelho chegou a dar aulas, anunciou ter criado uma comissão de inquérito interna para “apurar situações que possam ter ocorrido” de abuso ou assédio e que envolvam pessoas com ligação à instituição.

Desde então, as partilhas de testemunhos, nas redes sociais, de denúncias de casos de violação, abuso sexual e assédio no meio artístico continuaram a aumentar, ultrapassando o meio da música, e em particular do jazz, estendendo-se também a outras áreas, do teatro à dança, passando pela literatura e o cinema.

A investigação dos dados recolhidos ao longo do último mês pode fazer de 2025 o 'ano #metoo' nas artes em Portugal.