Há mais de um ano a Assembleia da República votou a favor da criação de uma classe exclusiva para motociclos para cobrança de portagens, com preços pela metade. É a resolução n.º21 de 2018, aprovada a 5 de Janeiro e publicada em Diário da República no dia 25 do mesmo mês, sem consequências práticas até hoje.

A resolução recomenda ao governo liderado por António Costa que, ponto um: "Crie uma nova classe de veículos para aplicação de uma mesma tarifa de portagem, correspondente aos motociclos, independentemente do seu método de pagamento" e, ponto dois: "Defina que a tarifa de portagem para aplicação aos motociclos seja equivalente a 50% do valor correspondente à classe 1".

Acontece que, mais de um ano depois, está tudo na mesma. Tão igual que a Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias de Auto-estradas ou Pontes com Portagens disse ao SAPO24 que entende que "o assunto extinguiu-se "per se"", "tendo passado mais de um ano sem que nenhuma medida legislativa tenha sido tomada na sequência dessa recomendação".

O advogado Rodrigo Esteves de Oliveira, professor na Universidade de Coimbra e sócio da Vieira de Almeida, Sociedade de Advogados, explica que a resolução "é uma figura híbrida, juridicamente esquisita e heterogénea. É reconhecida pela Constituição, mas o seu valor é residual". Isto porque "não vincula o governo". Mas, como "não tem prazos legais", também "não caduca". Ou seja, tem valia política e não legal, pelo menos não são conhecidos casos em que uma resolução tenha sido impugnada nos tribunais, por exemplo.

O ministro do Planeamento e Infra-estruturas Pedro Marques que era quem tinha esta pasta até ao final de fevereiro, antes de ser apontado para o Parlamento Europeu, optou por não comentar, nem agora nem há um ano. O seu assessor de imprensa, João Morgado Fernandes, limitou-se a dizer, há meses, que "quando achar oportuno o governo pensará no assunto". Quando? "Não tem de dar satisfações".

O controlo da aplicação das recomendações cabe aos deputados, que são quem propõe e vota as resoluções, chumbando-as ou aprovando-as. Só que, no caso, é a segunda vez que aprovam a mesma medida, com cinco anos de diferença. A pergunta impõe-se: para que servem então as resoluções da Assembleia da República?

José Ribeiro e Castro, advogado e político, já esteve dos dois lados, governo (foi secretário de Estado-adjunto do vice-primeiro-ministro Diogo Freitas do Amaral) e deputado (em seis legislaturas): "A resolução não se pode banalizar ou cai no ridículo e já ninguém liga", afirma. "Da mesma forma que não se fazem leis à trouxe-mouxe, também não se podem fazer resoluções. As resoluções devem ser reservadas para grandes momentos da política e do Parlamento".

O que se passa hoje é bem diferente. "Se há um problema de falta de tesouras ou de material cirúrgico num hospital, não é preciso uma resolução. No entanto, porque um partido a apresenta, os outros não querem ficar atrás. E então há um chuveiro de resoluções, uma coisa sem pés nem cabeça", continua Ribeiro e Castro. "Para isso, há as chamadas resoluções de compromisso, que é quando existem vários textos sobre a mesma matéria: força-se um texto conjunto. Mas no Parlamento gerou-se o hábito de as pessoas gostarem de votar opiniões, quando não tem nada que o fazer. Sobre o problema muito grave da falta de tesouras e equipamentos cirúrgicos, faz-se uma intervenção, uma declaração política, uma interpelação. O problema, aqui, são as agendas partidárias. Penso que devia haver alguma economia [neste instrumento] ou desprestigia-se por completo. Graças a Deus os cidadãos não lêem o Diário da República, caso contrário percebiam o caos".

De facto, na última edição em foi publicada a resolução sobre os motociclos, foram publicadas outras resoluções. Só na mesma página, aliás, há mais três: a Assembleia da República "recomenda ao governo a realização de um estudo sobre as implicações da saída do Reino Unido da União Europeia para a economia portuguesa", "recomenda ao governo a construção imediata do IC35 entre Penafiel e Entre-os-Rios" e "recomenda ao governo que crie um grupo de trabalho para prevenir e lidar com casos da 'Síndrome de Noé', mais conhecida por acumulação de animais". Todas assinadas por Eduardo Ferro Rodrigues.

O caso dos motociclos é ainda mais particular, dado que é a segunda vez que a Assembleia da República aprova uma resolução no mesmo sentido. A resolução é, muitas vezes, "uma solução um pouco preguiçosa. O Parlamento pode sempre recorrer ao instrumento legislativo: faz uma lei e muda as coisas. Mas isso dá trabalho, e implica assumir a responsabilidade, política e financeira, é mais fácil atirar barro à parede e gerar a discussão: a Assembleia da República deu a ordem para ser feito e o governo não faz", conclui José Ribeiro e Castro.

O que dizem os deputados motoqueiros

O projecto de resolução em causa foi apresentado pelo Bloco de Esquerda e aprovado com a abstenção do PSD e uma declaração de voto do PCP. O CDS votou a favor. O deputado Pedro Mota Soares, ex-ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, critica o governo: "O que me parece grave é o governo ter ignorado a recomendação da Assembleia da República". "As resoluções têm o valor que o governo lhes quiser dar, só que o povo é soberano e está representado pela Assembleia da República, portanto, o governo tem de lhe responder. Muitos portugueses precisam das suas motas para terem uma mobilidade normal".

Pedro Mota Soares desloca-se quase todos os dias na sua Scooter 125, entre Cascais e Lisboa. E também é a favor de tarifas mais baixas para motociclos, "que não provocam o mesmo desgaste da estrada que outros veículos Classe 1", como os automóveis ligeiros. No entanto, o governo PSD-CDS, de que fez parte, também não cumpriu esta resolução quando ela foi aprovada pela primeira vez, em 2013.

"Em 2013 não houve renegociação de concessões e estávamos num cenário diferente, com a saída da bancarrota e o país limitado nas suas escolhas. Agora já está em condições de suposta normalidade", contesta. "Mesmo assim este governo não assumiu esta medida, nem como uma prioridade nem como recomendação a ter em conta. Não a assumiu de todo".

Para Pedro Mota Soares fazia sentido um estudo para medir impactos, quer do desgaste das auto-estradas pelos motociclos em comparação com outros veículos, quer financeiros. "Sabemos que implica renegociar contratos e que leva tempo, mas é revoltante que o governo nada faça", diz. A renegociação de contratos com os concessionários é, aliás, um dos motivos por que o deputado do CDS considera que a Assembleia da República optou por não legislar sobre o assunto: os dados estão do lado do governo.

Esta é uma reivindicação antiga, e os argumentos dos motociclistas são vários: as motas têm um peso bastante inferior a um automóvel ligeiro e outros Classe 1 e uma superfície de contacto menor, o que resulta numa menor acção de desgaste da estrada. Tem ainda benefícios quanto à emissão de gases poluente e deixa fluir o trânsito, além de ocupar menos espaço na faixa de rodagem. "Nos grandes centros urbanos alivia estradas e transportes públicos", diz o deputado.

Quem se desloca de motociclo e tem Via Verde tem um desconto de 30%, mas as SCUT ficam de fora e a ponte Vasco da Gama também. Sobre este facto, a Comissão Nacional de Protecção de dados (CNPD) emitiu um comunicado a lembrar que nenhum cidadão deve ser discriminado por ser ou não cliente da Via Verde.

Apesar da abstenção do PSD, o SAPO24 quis saber juntos dos deputados deste grupo parlamentar que se deslocam de mota se concordam ou não com a redução dos preços das portagens para motociclos. São três - Miguel Santos, Simão Ribeiro e António Leitão Amaro - e a opinião foi unânime: sim.

O deputado Miguel Santos absteve-se, seguindo a disciplina de voto dos sociais-democratas. Mas concorda que o facto de o governo não cumprir as recomendações da Assembleia da República "mostra que as resoluções só para inglês ver". "Esta é uma reflexão que temos de fazer", já que uma resolução não é mais do que "a manifestação de um desejo que as coisas aconteçam num determinado sentido", mas sem qualquer vinculação para o governo.

Vale então a pena votar estas resoluções e publicá-las em Diário da República ou é isso uma perda de tempo? Miguel Santos acredita que um dos mecanismos de eficácias é "o controlo político", mas admite que "as matérias vão-se sucedendo e o mediatismo de uns assuntos abafa outros". No caso específico das portagens para motociclos, lembra que "o facto de o Bloco de Esquerda e de o PCP articularem tudo com o governo pressupõe que as recomendações vão ser postas em prática", mas "cada vez há mais portugueses a descobrir que o seu primeiro-ministro é um aldrabão". Dono de uma BMW de 2006 "em terceira mão" em que faz muitas vezes o percurso Porto-Lisboa-Porto, o deputado não conhece nenhum estudo técnico que indique que uma mota provoque o mesmo desgaste que um automóvel Classe 1.

Simão Ribeiro tem uma BMW R 1200 GS e que faz muitas vezes o percurso na companhia de Miguel Santos. Utiliza a mota mais "para fins recreativos e passeios de fim-de-semana", até porque, como vive em hotel, a sua vida exige outra logística. Mas considera-se "um aficionado" e diz que "a mota é muito mais prática em termos de trânsito". Confessa que se absteve na votação, "não porque não concorde com a resolução - porque concordo -, mas por posicionamento político. A proposta foi apresentada pelo Bloco de Esquerda, e entendemos que não devia ter a nossa [PSD] reprovação, mas devia ser assumida pela maioria que suporta a governo. Como a resolução não está a ser cumprida, o BE vai ter de repisar o assunto e prestar contas em matéria de fiscalização [do seu cumprimento]. Mariana Mortágua, no entanto, não respondeu às perguntas dirigidas ao Bloco de Esquerda.

Como os outros que têm mota, Simão Ribeiro afirma que nesta altura "trata-se de maneira igual o que é desigual". "Um motociclo não se pode comparar com um veículo normal a vários níveis, desde o menor desgaste que provoca na via, pelo peso e volume que ocupa, à capacidade de não criar filas e permitir mais fluidez do trânsito, até à poluição que provoca, que é inferior à de um ligeiro. Além disso, há pessoas a quem faz mesmo diferença em termos de orçamento", uma mota é mais barata do que um automóvel.

Posto isto, o deputado concorda que "nos últimos anos as recomendações ao governo foram-se generalizando, senão banalizando" e "o governo em exercício coloca estas e outras resoluções na gaveta". Apesar disso, diz, "há valor político em projectos desta natureza e o grupo parlamentar do PSD coloca nesta agenda política matéria que considera importante e que não tem outra forma de apresentar [ao executivo]". Quando o governo não cumpre, é sempre possível recorrer a outras formas de pressão, "como perguntas escritas e orais, debates plenários ou voltar e introduzir o tema na agenda". Os motociclistas vão-se organizando em manifestações de descontentamento, como aquela que ocorreu no início de fevereiro e que terminou na Praça dos Restauradores, em Lisboa. Quanto à Assembleia da República, dizem que à terceira é de vez.

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