“É como a história de todas as guerras, normalmente não contempla o lado feminino, mas as mulheres sempre estiveram presentes, na chamada frente de casa, mas também nos serviços de apoio, nas fábricas de munições, na manutenção de alguma normalidade, dentro da anormalidade que é a guerra”, afirmou a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que falava à Lusa por telefone a partir de Roma.
No caso da guerra colonial portuguesa a autora do livro “África no Feminino – As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial” não tem dúvidas de que o regime usou a mulher como “elemento normalizador”, ao permitir que acompanhasse o marido em missão.
Paralelamente ao esforço de guerra decorria um esforço de colonização no meio de um conflito que não era assumido como uma guerra, mas como uma missão de soberania, por parte do Estado português.
“Essas mulheres foram com eles, executando muitas vezes algumas profissões. Foram professoras, enfermeiras, costureiras, dependendo da classe social dos maridos”, indicou.
Apesar de não assumir uma política de incentivos, o regime permitia que as mulheres viajassem para as colónias durante o período da guerra (1961 – 1974/75), por vezes acompanhadas pelos filhos, pagando a viagem e facilitando alojamento.
“Esse é um movimento, de facto, diferente”, reconheceu a investigadora, que recolheu o testemunho de muitas destas mulheres.
Nesta situação encontrou “muito poucas mulheres de soldados”, mas várias companheiras de sargentos, oficiais milicianos e muitos outros postos. Exerciam as profissões que levavam de Portugal, embora muitas não trabalhassem.
Nas três frentes de guerra (Angola, Moçambique e Guiné), um grupo de enfermeiras paraquedistas cumpriu a missão de assistir os feridos, estabilizá-los e acompanhar o transporte para os hospitais e para a metrópole (Lisboa), numa situação exigente do ponto vista clínico, mas também psicológico, sublinhou.
“Tiveram um papel absolutamente fundamental no apoio médico na guerra colonial (…) eram pessoas ligadas ao quadro militar, um grupo exclusivo da Força Aérea”, referiu.
A enfermagem no Estado Novo tinha uma característica muito específica, prosseguiu: “Eram pessoas normalmente até com alguma parte religiosa grande e com uma grande convicção em relação ao regime. Integravam as forças militares e exerciam a ética militar ligada à ética da enfermagem”.
“Algumas delas cobriram os 13 anos de guerra, uma coisa de uma exaustão moral, psicológica e emocional absoluta. São mulheres (já faleceram) de uma enorme determinação e dedicação”, assegurou a autora.
Não cumpriam a missão por mobilização geral como os homens, que eram obrigados a ir para o Ultramar, mas por voluntariado.
“Quando fiz o livro África no Feminino tive reações de alguns homens, maridos de mulheres com quem falei e outros, que nunca se tinham apercebido bem do que elas pensavam daquilo”, contou a investigadora.
Do ponto de vista privado, o fim da guerra era “uma coisa esperada por todos e sobretudo pelas mulheres”, observou.
Entre as mulheres “fora da moldura”, como lhes chamou, Margarida Calafate encontrou um grupo que, não tendo propriamente formação política, tal como os homens, pela vivência da guerra, adquire essa consciência e acaba por se empenhar em alguns movimentos.
“Estão por trás, muitas vezes, de algumas ações que acabam por conduzir ao 25 de Abril. Ou seja, quando veem o que era a sociedade colonial, o que era afinal o império português e qual era a exigência dos povos que estão colonizados – terem o controlo do seu país e a sua liberdade – solidarizam-se com esse ponto de vista”, sustentou.
Essa consciência política, que ganham no terreno, acaba por influenciar o desfecho do império, segundo a investigadora, para quem o Estado Novo foi perito a usar as mulheres, especialmente de oficiais de elevada patente, ao permitir que fossem para a guerra com os maridos.
“Isso dá muito que pensar, sobretudo sobre a longevidade da guerra. Se uma pessoa vai para a guerra em família, uma missão de dois anos ou três anos torna-se uma coisa muito mais aceitável do que estar absolutamente sozinho”, constatou.
No entanto, muitas dessas mulheres, ao estarem no terreno com os maridos, ao trabalharem na sociedade civil, acabam por sentir que estão “do lado errado”, que aquela guerra também não era deles.
“As mulheres dos capitães de Abril fizeram esse percurso. Estou a pensar, por exemplo, na mulher do Otelo Saraiva de Carvalho e outras que entrevistei, que tinham frequentemente essa conversa com os maridos, que a guerra acabava quando eles quisessem”, revelou Margarida Calafate.
Outras mulheres acabaram mesmo por se envolver nos movimentos de libertação.
“E essas, sim, é um salto no escuro: mulheres brancas, muitas vezes já com uma relação com a colónia, filhas de colonos, que vão para os movimentos de libertação”, admitiu a investigadora.
“Têm muitas vezes relações íntimas com pessoas dos movimentos de libertação. São mulheres completamente fora da moldura, porque se esperava que fossem da sociedade colonial e, perante aquela situação política, vão para o outro lado”, relatou.
Estas mulheres acabam por integrar os movimentos de libertação “sempre nesse papel muito ambíguo, muitas vezes, que é o papel da mulher de…”, acrescentou.
“Outras foram quadros importantíssimos, porque normalmente eram pessoas com uma situação social bastante boa. Tinham escolaridade, muitas vezes cursos universitários que eram uma mais-valia enorme nos movimentos de libertação”, exclamou.
Estas mulheres tiveram também “uma importância enorme” no início dos países, “precisamente porque eram pessoas com bastante determinação, capacidade de iniciativa e logística”, destacou a investigadora, confessando que esta é a matéria do livro que ainda não conseguiu escrever.
Também as mulheres africanas tiveram um “papel fundamental” na luta pela independência, da célebre guerrilheira angolana Deolinda Rodrigues, às mulheres da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que carregaram armas e asseguraram o cultivo dos campos para alimentar os guerrilheiros.
Do ponto de vista das tropas portuguesas, referiu, a mulher africana foi vista como vulnerável, prostituta, alvo de apoio diferenciado, frequentemente violada: “É uma história triste, a história de todas as guerras, mas a nossa foi muito violenta com as mulheres. São poucas as histórias de amor”.
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