Na capital para o lançamento de dois livros, António Guterres deu como exemplo a disparidade de doses de vacina contra a covid-19 por cada cem habitantes disponíveis na União Europeia e no continente africano — 67,8 no primeiro caso versus 1,8 no segundo.
Esta diferença é não só “uma profunda injustiça”, como um erro estratégico, assinalou.
“Não estaremos todos bem se não estivermos, de facto, todos bem”, lembrou, defendendo um plano global de vacinação, que garanta “uma distribuição equitativa” das vacinas, enquanto “bem público global, acessível a todos e o mais depressa possível”.
“Um vírus pôs-nos de joelhos, em todo o mundo”, constatou, lembrando que estamos perto de atingir as quase quatro milhões de pessoas mortas, de norte a sul, de este a oeste.
Ora, neste cenário, “a comunidade internacional não foi capaz de se unir, em solidariedade, para fazer face ao vírus”, lamentou.
Em tempos de “enormes fragilidades, que não podem ser facilmente superáveis” apenas com a ajuda do desenvolvimento tecnológico, “nunca o multilateralismo foi tão importante e tão necessário como hoje”, considerou.
Guterres notou ainda que a resposta a outra das grandes “fragilidades”, as alterações climáticas, “ainda não é um movimento global”.
A razão principal para que isso aconteça — explicitou — é “uma falta de confiança entre os países mais desenvolvidos e as economias emergentes”, resultante do facto de os primeiros “não terem ainda cumprido as promessas que fizeram”, nomeadamente em termos de financiamento.
“Estamos à beira do abismo e, quando se está à beira do abismo, é preciso ter cuidado com o próximo passo”, avisou.
“A comunidade internacional tem de agir conjuntamente e em solidariedade e para isso necessita de instituições multilaterais (…) ainda mais fortes do que as que temos hoje”, sustentou.
“O nosso multilateralismo ainda é um multilateralismo largamente sem dentes e, às vezes, mesmo quando tem dentes, no caso do Conselho de Segurança, com pouca vontade de morder”, reconheceu.
Na sessão de lançamento dos livros “Portugal nas Nações Unidas: 65 Anos de Histórias” e “Portugal Multilateral”, no Palácio das Necessidades, o ex-primeiro-ministro vincou que “o Governo português está na primeira linha” da defesa do multilateralismo.
Portugal tem “um comportamento em matéria de direitos humanos excecionalmente positivo”, apreciou.
Guterres distinguiu a “primeira memória” que tem das Nações Unidas — “só ouvia dizer mal” — da segunda, relacionada com o processo de independência de Timor-Leste, em que o empenho da organização impediu “o que podia ter sido uma tragédia de dimensões incalculáveis”.
Realçando que, “com o 25 de Abril, as tensões e relações difíceis entre Portugal e as Nações Unidas desapareceram”, Guterres notou a “excelência da relação” que existe hoje em dia.
Presente na mesma sessão, o professor universitário e ex-ministro Nuno Severiano Teixeira, co-organizador de “Portugal Multilateral”, corroborou que Portugal evoluiu de “um multilateralismo relutante, quase que imposto, por necessidade”, para um multilateralismo que é “a base central da política externa”.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, presente na mesma sessão, lembrou que Portugal publicou oficialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos apenas em democracia, quando “entra de corpo inteiro e alma plena” no sistema multilateral.
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