Em vésperas de celebrar o centenário de José Saramago, que se assinala no dia 16 de novembro, Pilar del Rio, companheira do escritor por “quase 30 anos”, e com quem continua a viver através da memória, trabalhando para perpetuar a sua obra e pensamento, fala à agência Lusa da descoberta de uma universalidade do escritor maior do que imaginava.
Fazendo o balanço de um ano de comemorações do centenário, que arrancaram oficialmente no dia 16 de novembro de 2021, quando o escritor faria 99 anos, Pilar del Rio, que preside à Fundação José Saramago, diz que “há mais leitores” do que imaginava e mais carinho pelo escritor” do que supunha, e que “a sociedade é generosa quando se trata de agradecer a um homem que compartilhou o que tinha, as suas reflexões, a sua capacidade de efabular, o seu olhar e até a sua casa”.
Questionada sobre se ainda há muito trabalho a fazer na divulgação de José Saramago e da sua obra, Pilar del Rio respondeu, numa entrevista por escrito, afirmando ter dúvidas de que “em Portugal existam muitas casas onde não haja pelo menos um livro de José Saramago”.
“Sei que há casas sem livros, isso é uma dor, porque se não há livros é sinal de que há outras carências, inclusive de comida. Mas nas casas com livros seguramente há um exemplar de José Saramago, é um bem português, os leitores de Portugal sabem-no e cuidam-no”.
Apesar de já terem passado 12 anos sobre a morte do escritor, a sua obra mantém-se atual, porventura mais ainda, considera Pilar, assinalando que José Saramago é “um autor contemporâneo que reflete sobre a cegueira da sociedade, sobre as mentiras e as ocultações da história, ou sobre a perversidade das guerras”.
E questiona: “O seu livro publicado, inacabado, ‘Alabardas’, diz que se existem fábricas de armas é preciso criar outras fábricas que gerem conflitos, é o que vemos hoje. É ou não atual?”.
“Sem dúvida, é um contemporâneo que fala das nossas perplexidades como seres humanos, das sociedades em que vivemos e nos movimentos que se projetam para trazer e levar a massa humana de um lugar ao outro, muitas vezes parece que em direção ao precipício. Quando vemos como o número de excluídos aumenta no mundo e em Portugal, gente que nasce pobre e pobre morrerá, é justo fazer a pergunta que Saramago fazia: quem assinou isto em meu nome? Milhões e milhões de excluídos no mundo, isso é democracia? Perguntava-se Saramago. É ou não atual essa pergunta?”, acrescenta Pilar.
Para a presidente da Fundação José Saramago, as ideias e o pensamento do escritor, presentes em obras como “Ensaio sobre a cegueira”, “A caverna”, “Ensaio sobre a lucidez” e “As intermitências da morte”, continuam a dialogar com os dias de hoje.
“Penso que a cidade dos cegos, a do voto em branco, a das intermitências da morte, é o mundo: em todas as partes há cegos que vendo, não veem, há gente com vontade de fazer um mundo melhor, que é o que se conta no ‘Ensaio sobre a Lucidez’. E em todos os lugares queremos que o amor nos salve da dor da morte: com amor a morte é menos selvagem”.
Refletindo sobre os anos vividos sem a presença de Saramago, mas com o sentimento de que continuam “juntos” e uma dedicação ao enorme legado do Nobel, que ajudou a construir, Pilar explica que a fundação tem “o ‘mandato Saramago’ como trabalho e também como vocação”.
“Continuamos, todos os dias, a obra de José Saramago, a literatura e o pensamento, as ideias humanistas e de progresso que eram suas e que assumimos como nossas ao trabalharmos nesse projeto que é a fundação”, disse, garantindo ser sua intenção continuar, “seguir adiante, agora com força renascida ao ver tantas pessoas no mundo todo que leem e valorizam a obra de José Saramago”.
“A nossa função é preservar esse legado, e também o legado do carinho”, acrescenta.
Sobre a possibilidade de virem ainda a encontrar-se inéditos de José Saramago, como aconteceu com algumas notas, teatro e até um romance, Pilar é taxativa ao afirmar que já “não há surpresas”.
“Há inéditos da juventude que serão publicados em edições de estudo para que se conheça melhor o autor, mas não há obras acabadas que não foram publicadas, nem outro ‘Caderno de Lanzarote’ ou outra ‘Claraboia’. Lamentavelmente, José Saramago não tinha uma arca como [Fernando] Pessoa, mas mesmo assim deu-nos muito, deu-nos a vida toda”, esclarece aquela que foi a companheira do escritor desde 1988 [apesar de se terem conhecido em 1986] até à sua morte, em 2010.
Uma das iniciativas desenvolvidas por Pilar del Rio no âmbito daquela que considera ser a sua missão de perpetuar as ideias e o pensamento de José Saramago, foi a conceção de uma “Carta Universal dos Deveres e Obrigações dos Seres Humanos”, idealizada pelo escritor no discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, em 1998.
Essa carta foi elaborada por mais de dois mil especialistas de todo o mundo e foi entregue em 2018 à ONU, para ser dada a conhecer mundialmente.
Questionada sobre o retorno que tem tido dessa iniciativa, a responsável afirma que a fundação tem “recebido de pessoas e entidades sociais muitas e boas respostas”, mas está ciente de que “o mundo é extenso e profundo e nós [portugueses] pequenos e poucos”.
“Seria maravilhoso que um país desse o exemplo de colocar os Direitos e Deveres como uma disciplina escolar obrigatória. Talvez alguns alunos e professores protestassem, mas teríamos gerações a crescerem sabendo que são seres de direitos e de obrigações para com os próximos e para com o planeta, seriam sem dúvida gerações melhores. Seria maravilhoso que um país dissesse: este documento, a Declaração Universal de Direitos Humanos, é o documento mais importante do século XX. Então tratemos de estudá-lo para assimilá-lo. E, além disso, estudemos a Declaração de Deveres, que é simetrica à dos direitos. Porque os seres humanos precisam de ser levados em conta”, defendeu.
No entanto, reconhece que isso “não será feito” e lamentou: “Os Estados têm outras prioridades, e nós seguiremos caminhando e cada um a tentar salvar-se com aqueles que tiver por perto”.
Sediada na Casa dos Bicos, edifício emblemático de Lisboa construído em inícios do século XVI, a Fundação José Saramago assinou com a autarquia lisboeta, em 2008, um protocolo de Cedência e Utilização Precária da Casa dos Bicos por dez anos.
Quando passam já quatro anos sobre o fim do prazo e questionada sobre esta matéria e o futuro da fundação, Pilar del Rio afirmou não ter data para deixar aquele espaço, justificando que “a câmara confia na fundação e a fundação confia na câmara”.
“Em relação ao espólio [de José Saramago], foi legado a Portugal, através da Biblioteca Nacional. Não foi vendido a uma universidade estrangeira nem nada do estilo, decidimos entregá-lo ao Estado Português”, sublinhou.
Sobre o seu futuro, e um possível regresso a Lanzarote ou a permanência em Portugal, Pilar diz não saber e não ter planos, a não ser a certeza de que continuará a trabalhar em José Saramago.
“Como dizia no começo desta conversa, na fundação temos um mandato e eu sou parte da fundação: continuar Saramago”.
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