Anastasiia sempre trabalhou e conviveu com russos quando vivia na Ucrânia: “Ainda tenho amigos, infelizmente até familiares que apoiam a guerra, mas algumas pessoas continuam a ser contra a guerra”, referiu.

“Muitos dos meus amigos e colegas saíram da Rússia a 24 de fevereiro, muita gente. Foram protestar contra a guerra, mas infelizmente foi mau para eles e tiveram de sair da Rússia”, contou.

O conflito armado está a dividir “muitas famílias”, assegurou. “Estou na Ucrânia e vejo bombas e dizes-lhes isso e eles dizem ´Não, não são bombas. O meu presidente disse-me que não são bombas. Ele protege-vos”.

“Vejo estas bombas a cair dentro das casas e eles não acreditam! É muito estranho, mas acho que a propaganda fez muito (…), mas ainda há muitas pessoas contra a guerra”, disse Anastasiia quando questionada sobre o contacto com o outro lado da fronteira.

Nem Anastasiia nem o marido pensaram que a guerra podia acontecer, apesar dos avanços russos sobre território ucraniano nos últimos anos, que já haviam ditado a anexação da Crimeia.

“Nunca pensei. Mesmo antes da guerra, as pessoas falavam que talvez a guerra acontecesse e eu dizia-lhes como podia acontecer, viriam tanques pelas ruas? Não, não acreditava. E o meu marido também não acreditava, não podíamos acreditar”, recordou.

Ao fim de um ano de guerra aberta, a jovem web designer não vê abertura para um acordo político que cesse o conflito iniciado a 24 de fevereiro de 2022 e que provocou a maior vaga de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial. Mais de 14 milhões de pessoas abandonaram as suas casas, entre deslocados internos (6,5 milhões) e refugiados em países europeus (mais de 7,9 milhões).

Na cidade onde nasceu, na Ucrânia central, muitos jovens da sua idade, com 28 e 29 anos, morreram na guerra. Odessa, onde vivia com o marido, também não escapou à incursão russa.

Anastasiia voltou à Ucrânia em outubro para visitar os pais e tentou demovê-los de continuarem no país: “Os meus pais tiveram muitos problemas de saúde, estavam muito nervosos. Pude sentir o que eles sentem na Ucrânia. É assustador, as pessoas habituam-se à guerra, habituaram-se aos 'rockets' e isso não é muito bom”.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou na semana passada que cerca de 10 milhões de ucranianos, quase um terço da população que permaneceu na Ucrânia após a invasão pela Rússia, sofrem de problemas mentais e “quatro milhões apresentam sintomas moderados e severos”.

Anastasiia acompanha as notícias da Ucrânia através da plataforma digital Telegram. “Estou sempre a ver, cada ataque e tudo o resto”, indicou.

Há quase um ano em Portugal, a decisão de regressar ao país fica adiada pelas circunstâncias: “Queremos ter filhos, mas não imagino crianças naquelas condições, sem eletricidade, sem aquecimento”.

Por enquanto, os esforços são de integração em Portugal, passando pela aprendizagem da língua, na qual vê mais do que uma vantagem. “Quando percebes português, consegues entender também um pouco de espanhol e um pouco de italiano. Aprendes uma língua, mas consegues compreender várias línguas ao mesmo tempo”, constatou.

Ainda se expressa com mais facilidade em inglês, mas gosta da língua portuguesa e de “canções portuguesas”, assim como da diversidade de culturas que lhe faz lembra Odessa, onde existem 140 nacionalidades. E do sol.

5.000 quilómetros de Odessa a Lisboa num Fiat 500

Com o dinheiro contado, a bagagem limitada a umas peças de roupa, e um computador, Anastasiia conseguiu fugir da Ucrânia com o marido, há quase um ano, num pequeno carro que lhes serviu de abrigo até chegarem a Portugal.

“Foi difícil sair do país e claro que não podíamos levar nada connosco. Eu tinha apenas a roupa e o meu computador”, contou à agência Lusa.

Anastasia e o marido não sabiam o que fazer, nem para onde ir. Percorreram quase 5.000 quilómetros, num Fiat 500, onde dormiram várias noites, durante a viagem de Odessa até Lisboa, com uma paragem de 10 dias na Bulgária.

“Quando a guerra começou fugimos do país. Foi uma longa história. Não havia gasolina nas estradas. Não conseguíamos arranjar dinheiro, mas conseguimos sair do país com uma família com uma criança de sete meses. Estávamos todos juntos num pequeno Fiat, um Fiat 500”, recordou.

O marido, que trabalha na área do turismo, perdeu o emprego assim que começou a guerra. Para ele, a decisão de sair foi imediata. Tudo parou. Não havia possibilidade de continuar a trabalhar. “As pessoas fugiram do país e não havia nenhuma empresa, nenhum emprego, nada”, lembrou Anastasiia, que precisou de duas semanas para interiorizar a partida.

Antes de atravessarem a Europa, dirigiram-se à Bulgária para deixarem o casal que os acompanhava com um bebé: “Eu e o meu marido falamos inglês, é mais fácil encontrarmos outros sítios para onde ir, mas eles só falam ucraniano. Foi por isso que os levámos para a Bulgária primeiro, para depois decidirmos o que fazer a seguir, porque estávamos num grande choque”.

“Não conseguíamos fazer nada e não conseguíamos entender o que estava a passar-se”, relatou, em entrevista à Lusa quase um ano depois dos acontecimentos, que hoje encara como uma aventura que a tornou mais capaz de lidar com novas situações. “Depois disto conseguimos lidar com tudo”, assegurou.

Não tiveram tempo de preparar o percurso, perderam-se em Itália e dormiram “muitos dias” dentro do carro, que conseguiram manter com a ajuda do responsável da empresa em que Anastasiia trabalhava. Após a opção por Portugal, que tinham visitado há quatro anos, a viagem foi feita passo a passo.

“Não sei como aconteceu, mas foi muito fácil e muito rápido, eu escolhi Portugal e o meu marido escolheu Portugal. Tínhamos carro, mas não sabíamos o que fazer com o carro, porque vir de carro é caro, mas ao mesmo tempo sentes que tens uma casa contigo, onde quer que vás tens uma casa que é o teu carro. E podes ir. É isto que gosto”, explicou, ao justificar a opção que o antigo CEO de Anastasiia tornou possível, ao financiar o combustível e algumas noites em hotel.

Por onde passavam, o carro chamava a atenção, pela cor, pela matrícula e pelo contraste entre a reduzida dimensão do veículo e a estatura do marido de Anastasiia, um ucraniano de Karkiv com 2,04 metros de altura.

Quando chegou a Lisboa, confessou, “só queria dormir”, num sítio quente.

A primeira noite foi passada em instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), “num espaço grande, com muitas camas”.

Entraram em contacto com voluntários para conseguirem um local para ficarem até terem a documentação necessária. Logo surgiram propostas de ajuda, tentando perceber o perfil e as necessidades dos recém-chegados, mas a qualquer pergunta Anastasiia respondia que só queria dormir num sítio quente - “Não conseguíamos dormir. Passámos muito tempo sem dormir”.

Surpreendeu-se com a solidariedade que encontrou em Portugal. Acabou por aceitar a oferta de acolhimento de um casal de Porto Salvo, Oeiras, (Fernando e Susana) que hoje vê como os pais portugueses.

“Ficámos com eles um mês e meio de graça, deram-nos tudo, roupas, tudo o que precisávamos. Ajudaram-nos também psicologicamente”, disse, acrescentando que graças a este casal conseguiram alugar um apartamento e apetrechar a casa. “Foram nossos fiadores”, referiu.

A fluência na língua inglesa permitiu ao marido de Anastasiia encontrar trabalho em Portugal, na área do turismo, ao fim de um mês e meio.

A casa, em Algés, estava vazia, mas, com a ajuda da nova família portuguesa, em dois dias conseguiram reunir o que precisavam. “Rezamos aos anjos e eles aparecem aqui”, brincou Anastasiia, contando, com entusiasmo, as visitas de Fernando e Susana: “Um dia apareceram lá em casa com uma máquina de café e disseram-nos que os portugueses têm o hábito de tomar café e é importante termos café de manhã para nos sentirmos bem, não esperava ter uma máquina de café! Outro dia levaram uma torradeira e disseram que é importante ter uma torradeira numa casa [risos]”.

Anastasiia passou o último ano a terminar o trabalho para a empresa cujo CEO a ajudou a chegar de carro a Portugal e dedicou o tempo livre a ajudar outros ucranianos a viajarem para Portugal, incluindo a sogra. Agora, a web designer está a elaborar o portfólio para começar a procurar emprego, uma vez que tenciona ficar, pelo menos, mais um ano em Portugal.

 *Por Ana Mendes Henriques/ LUSA