Hillary é detestada por muitos, mal vista por outros tantos, trapalhona, acomodada com os interesses instalados; contudo, nas voltas que a democracia permite, tornou-se uma tábua de salvação para o seu país e para tantos outros países interligados contra ou a favor do Império. Como esposa do 42º Presidente, ficou conhecida por ser publicamente traída. Como secretária de Estado do 44º Presidente, mostrou-se bastante inábil e meteu-se em algumas confusões que ainda a perseguem. Mas, do mal o menos; se for eleita, será a 45ª Presidente dum país onde as mulheres há muito que têm uma presença forte na política, mas sempre na segunda linha.

Há 144 anos, em 1872, outra mulher candidatou-se a Presidente: Victoria Woodhull. Ao contrário de Hillary teve uma infância difícil, meteu-se em vários negócios e assumiu posições politicas fortes, muito à frente do seu tempo. A América não estava pronta para ela, e muito menos para um vice-Presidente negro e ex-escravo, Frederick Douglass.

Filha ilegítima de uma mãe analfabeta e dum pai vendedor de banha da cobra – literalmente – Victoria nasceu em Homer, Ohio, no chamado Farwest, na época dos assaltos a diligências, corridas ao ouro e aquela truculência que vemos nos filmes de cowboys. Desde miúda que teve de lutar contra todos os preconceitos, estudou formalmente apenas três anos, e aos doze já estava casada com um pseudo-médico alcoólatra que lhe batia. Extremamente inteligente, estudou sozinha e desenvolveu os seus conceitos sociais. Era sufragista (pró voto feminino), igualitária e a favor do "amor livre". Tinha tudo para ser considerada uma prostituta, que nunca foi, apesar de ter trabalhado como empregada em prostíbulos. O conceito de "amor livre" nesse tempo significava apenas o direito da mulher se divorciar, viver a sua vida com quem quisesse e eventualmente casar novamente. Também era espiritualista e acreditava ser guiada por Demóstenes.

No meio de aventuras que dariam um bom filme, chegou a Nova Iorque, onde abriu uma corretora de valores com uma amiga – a primeira no mundo a ser dirigida por mulheres - e posteriormente um jornal para espalhar as suas ideias. Em 1866 casou com um veterano da Guerra Civil. Conheceu e teve contactos tempestuosos com a mais famosa sufragista norte-americana, Susan B. Antony, que era menos radical do que Victoria.

(Tivemos em Portugal, com o habitual atraso de 50 anos, duas figuras parecidas, Angelina Vidal e Carolina Beatriz Ângelo, mas isso é outra história.)

Em 1870 esteve na fundação do Partido dos Direitos Iguais (Equal Rights Party), basicamente uma plataforma politica para a emancipação feminina. Mas, entretanto, uma disputa à volta da história do amor livre custar-lhe-ia a candidatura. Um ministro protestante, proeminente em Nova Iorque, opôs-se publicamente ao conceito defendido por Victoria e ela publicou no jornal que o senhor era contra, mas tinha uma amante. Daí resultou um processo judicial, em que foi detida e, embora não condenada, perdeu o período eleitoral. Claro que a coisa cheirava a marosca política, mas o mal estava feito. Contudo, não é de supor que uma candidatura com uma libertária e um ex-escravo, ainda por cima casado com uma branca – na altura a miscigenação era muito mal vista... – tivesse alguma hipótese real.

Victoria participou na formação da Primeira Internacional, mas a associação de sindicatos dividiu-se em 1871, quando os alemães, com a aprovação de Marx, expulsaram os ingleses e os americanos. Perdida a oportunidade da presidência, Victoria divorciou-se e foi para Inglaterra com a sua sócia no jornal, Tennie Claflin. O multimilionário William Vanderbilt, cujo pai fora um amigo de sempre e apaixonado por Tennie, deu-lhes uma boa quantia para recomeçar a vida. Mas Victória não queria parar; começou a dar conferências – a mais famosa tinha como tema "O corpo humano, templo de Deus" – e casou com um banqueiro britânico. Ainda publicou um jornal, até se retirar para o campo, em 1901. Uma rica vida, cheia de peripécias.

Em 1884 o Partido dos Direitos Iguais concorreu novamente à Presidência, com uma candidata completamente diferente, Belva Ann Lockwood, e outra mulher para vice-presidente, Marietta Stow. Ambas sufragistas e defensoras dos direitos das mulheres, se bem que muito mais conservadoras do que Victoria Woodhull. Belva era advogada – numa época em que poucos juristas formados havia, e muito menos mulheres – e directora dum colégio prestigiado de Washington.

Em 1888, o Partido concorreu uma última vez. Inicialmente o vice-presidente era para ser um homem, o líder da União para a Paz Universal, Alfred Love, mas não aceitou a vergonha de ser segundo para uma mulher … Finalmente outro homem, Charles Weld, filho de um casal muito progressista, aceitou fazer uma figura que todos consideravam vexatória.

Como as mulheres não tinham direito a voto, as possibilidades da dupla eram muito reduzidas. Ficaram registados apenas 4.200 votos, o que mesmo assim é surpreendente, dado que toda a comunicação social era contra o sufrágio feminino. Até ao fim da vida Belva escreveu sobre as suas bandeiras, paz universal e igualdade de género, alem de continuar a dirigir o colégio.

O voto das mulheres foi uma das grandes questões do século XIX e na realidade só se resolveu em meados do século XX – no tempo das nossas mães e avós, não mais cedo. Nos Estados Unidos, vários Estados deram direitos parciais, lentamente, até à emenda da Constituição de 1920 que resolveu o problema definitivamente. Na Europa, o primeiro pais foi a Finlândia, em 1907. Em Portugal, a Constituição de 1911 não previa tal modernidade, porque os constituintes jacobinos achavam que o voto feminino seria influenciado pelos padres ... Só na Constituição de 1933 é que as mulheres puderem votar e ser votadas.

A assim chegamos a Hillary, a grande esperança da eleição do fim do ano, a 8 de Novembro, nos Estados Unidos. Uma mulher que se espera que tenha o apoio maioritário não só das mulheres, mas também dos hispanos, dos negros e, até, de muitos republicanos. O mundo vai assistir de coração na boca e braços virados ao céu.