Começou por ser um grupo de 132 pessoas, chegadas a Portugal no dia 13 de dezembro de 2021, provenientes do Afeganistão depois da tomada de poder por parte dos talibãs, acolhidas pela Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e alojadas temporariamente, em circunstâncias de emergência, numas instalações cedidas pelo Ministério da Defesa.

O plano inicial previa que permanecessem durante três meses no Hospital Militar de Belém, mas a resposta, que era para ser temporária, arrastou-se no tempo e já ultrapassou os seis meses.

“É a tensão acumulada de termos quase uma aldeia dentro de um prédio”

Pelo caminho, segundo contou à Lusa a coordenadora da Unidade de Acolhimento de Emergência da CVP, 35 pessoas abandonaram o programa, entre nove menores e 24 adultos, e a partir de abril, quando deveria terminar a fase de emergência, “as coisas começam a tornar-se mais intensas do ponto de vista negativo”, agravadas ainda com alguns casos de covid-19 e os obrigatórios confinamentos.

“É a tensão acumulada de termos quase uma aldeia dentro de um prédio”, descreveu Susana Gouveia.

Para Furogh, 31 anos, e professora de inglês do Instituto Nacional de Música do Afeganistão (ANIM, na sigla em inglês) durante 12 anos, a notícia da saída traz uma sensação de alívio, mas também de esperança perante o que o futuro em Portugal lhe reserva.

“A vida é um desafio. Só esperava sair do perigo e Portugal deu-me isso, apesar de a adaptação ser difícil”, disse à Lusa, salientando que, apesar de estar a gostar muito do país, a vida de refugiada é difícil, já que deixou tudo para trás.

Os seis meses de permanência no Hospital Militar também tiveram consequências na ligação entre Furogh e o instituto de música, do qual se desvinculou entretanto e com o qual não segue na etapa seguinte, em direção ao norte do país, entre Braga e Guimarães.

Furogh quer ficar em Lisboa, onde conseguiu há pouco tempo encontrar um emprego pelos seus próprios meios, e onde espera ter a sua própria casa, depois de “deixar este sítio”. Tem para si a certeza de que Portugal será a sua segunda casa.

“Houve desafios e viver num hospital foi um deles. Viver num grupo grande afeta e é difícil”, apontou, admitindo que se estivesse sozinha talvez já tivesse conseguido encontrar uma habitaçã há mais tempo.

Mohamed Tariq Hashmi tem 18 anos, é aluno do ANIM e é com a escola que chega a Portugal, deixando no Afeganistão todos os outros membros da família, entre pais, cinco irmãs, a avó e os tios.

“O meu único problema é este hospital. É muito difícil. Preferia estar com a minha família”

Diz que adora Portugal porque aqui pode estudar e praticar música, apesar de o sonho ser medicina, e revela que a sua maior ambição é conseguir trazer toda a família, explicando que são todos músicos e que isso neste momento é um problema grave no país de origem, onde a música foi proibida, o que os deixou a todos sem sustento.

“O meu único problema é este hospital. É muito difícil. Preferia estar com a minha família”, admitiu, revelando que também ele preferia ficar em Lisboa, onde vai tentar alugar um apartamento com mais três amigos.

“Quando vim para Portugal, senti que iria renascer”

A ligação entre a ANIM e Abdul Basir Mohid, 54, durou 20 anos. Músico conceituado, atuou em diferentes países e trabalhou durante 14 anos a dar aulas a raparigas afegãs, o que lhe valeu a visita em casa por parte dos talibãs e a ameaça de que voltariam para o matar.

“Quando vim para Portugal, senti que iria renascer”, disse à Lusa.

Relativiza os mais de seis meses vividos dentro de um hospital com a mulher e o filho porque diz que é melhor do que o que deixou para trás, revelando que tem pesadelos à noite em que acorda a pensar que ainda está no Afeganistão.

“Vou para qualquer cidade, só quero trabalhar”, afirmou.

Apesar das tensões e cansaço acumulados, Susana Gouveia avalia os seis meses de missão de emergência de forma positiva, durante os quais foram assegurados alimentação, alojamento, cuidados de saúde, aprendizagem de português ou aulas de música no conservatório nacional.

“Fomos além da missão de emergência porque nos preocupámos muito com a interação socioprofissional destas pessoas e com o estarem ocupadas do ponto de vista da saúde física e mental”, descreveu, acrescentando que houve acompanhamento psicológico e preocupação com atividades físicas.

Por outro lado, relativamente ao que não correu bem, a psicóloga e coordenadora da Unidade de Acolhimento de Emergência da CVP apontou a demora das entidades de integração em dar resposta, salientando que há “muitos menores não acompanhados e muitos processos em tribunal para atribuição de uma medida de proteção destes jovens e crianças e que isso traz um peso grande ao processo”.

“Estamos sempre no limite do que é mais desafiante, que é os jovens não terem uma estrutura familiar de apoio nem ninguém adulto de referência”, apontou, revelando que apesar de estes jovens terem vindo acompanhados com professores, houve “vários picos de tensões”, resultado de viverem num espaço que não está preparado para ser acolhedor.

“Tudo foi muito focado para a prontidão de resposta à Ucrânia e esqueceram-se que havia aqui uma série de pessoas com a vida suspensa durante já três meses”

Susana Gouveia acredita que março ou abril teria sido a altura ideal para encontrar uma solução para que este grupo deixasse o hospital, mas o momento coincidiu com o início da guerra na Ucrânia, “o que não ajudou nada estes afegãos”.

“Tudo foi muito focado para a prontidão de resposta à Ucrânia e esqueceram-se que havia aqui uma série de pessoas com a vida suspensa durante já três meses”, apontou, acrescentando que ao mesmo tempo aumentavam as expectativas entre os jovens sobre quando é que sairiam dali.

A responsável diz mesmo que “teria havido uma capacidade de gerir melhor esta crise se a guerra na Ucrânia não tivesse acontecido” e admitiu que, vendo a situação de um ponto de vista profissional, “há refugiados de primeira e de segunda”, referindo-se aos “muitos entraves” sentidos “pelo facto de não serem ucranianos”.

Segundo Susana Gouveia, o plano agora apresentado pelo governo português é que o grupo “a breve trecho será deslocado para o norte do país [para] poder prosseguir a sua efetiva integração profissional e social”.

Explicou que atualmente vivem 114 pessoas no Hospital Militar de Belém e que esta deslocalização será a solução para entre 90 a 100, uma vez que “há famílias que já não estão ligadas ao grupo ANIM” e que “praticamente 20 pessoas não vão com o grupo para norte”.

Adiantou também que a responsabilidade do alojamento será dividida entre o Alto-Comissariado para as Migrações e o Instituto da Segurança Social, este último responsável pelas crianças e jovens até aos 18 anos.

Especificamente em relação a estes, Susana Gouveia disse que poderão ficar em lares residenciais ou em apartamentos de pré-autonomia, e que a resposta de acolhimento familiar não está a ser considerada pela falta de famílias.

A mudança será feita durante o mês de julho, ainda sem data marcada, e entretanto a CVP “tem o desafio da missão hibrida”, ou seja, manter a missão de emergência ao mesmo tempo que trabalha projetos de vida para a fase de transição, algo atípico para esta entidade que desde 2016 e até ao ano passado acolheu 512 pessoas refugiadas.

Para Susana Gouveia, há aprendizagens a retirar de toda esta experiência, nomeadamente o tempo de emergência ou o rácio entre equipa e pessoas refugiadas, salientando que tem sido um processo desgastante, num “trabalho bastante intenso, intensivo e imersivo”, para o qual deveria haver uma equipa com maior número de pessoas.

Acredita, por isso, que, para a missão poder ter sido de pleno sucesso, deveria ter acabado há dois meses, mas que esse tempo a mais acabou por ajudar a conhecer melhor as pessoas e até a melhor identificar patologias que poderiam estar mais encobertas.

No fim, a sua última preocupação é que estas pessoas saiam para o novo projeto de vida levando uma “memória mais leve” dos meses passados no Hospital Militar de Belém e que algo melhor se sobreponha a essas memórias para que seja minimizado o impacto “que não é positivo”.